Fiquei chocada como a mocinha é preconceituosa,
mesquinha, machista e extremamente moralista. Fiquei incomodada como esse
romance é misógino, como o galã — um cara de 27 anos — tem uma mentalidade mais
atrasada que a do meu pai, que se fosse vivo teria 80 anos. E fiquei incomodada
com outras coisas que não soube elaborar, não soube apontar. Fiquei intrigada,
como um livro tão bobo, tão pobre em BDSM podia ser considerado um marco no
segmento e podia ser consumido tão vorazmente.
Texto de Liliane Gusmão para as
Blogueiras Feministas.
O filme ’50 tons de Cinza’ chega
finalmente aos cinemas. E com ele voltam as questões sobre a trilogia. Eu li os
livros, mais de uma vez. Eu li sobre os livros em vários locais diferentes. E
fiquei intrigada em descobrir por quê esse livro, que me provocou tanto
incomodo, fez e faz tanto sucesso. Eu não sei se descobri, mas queria
compartilhar o que penso com vocês.
Para começar, eu li o livro em
inglês numa cópia de revisão que foi disponibilizada na internet quando o livro
foi lançado em português. Eu li porque sou curiosa. Nunca tinha lido nenhum
livro de literatura erótica e o mais perto que cheguei de pornografia foi
‘Delta de Vênus’ de Anaïs Nin.
Antes de ler o livro, li sobre
ele. Muita gente, dizendo que não leu e não gostou. Gente dizendo que era muito
mal escrito e que não passou da página 20. Gente dizendo que não leu porque era
ofensivo demais. Enfim, era um consenso, nas minhas relações, que todo mundo
achava que o livro era uma porcaria. E foi ai que ele me conquistou. Eu tinha
que ler esse lixo pra ter minha opinião sobre isso. Foi por isso que eu li o
Alquimista de Paulo Coelho, todo mundo falava tanto sobre o livro que eu tive
que ler.
A primeira coisa sobre o livro é
que, como literatura erótica, ele é uma decepção. Especialmente para quem, como
eu, queria ler um livro sobre BDSM. O livro é érotico, mas mesmo para uma
pessoa como eu — heterossexual e monogâmica com mais de 40 — é um livro bobo. É
um romance de banca de revista, escrito por alguém com um catálogo de sex toys
do lado, só que o manual dos sex toys é ultrapassado.
Mas isso não descobri lendo o
livro. Lendo o livro eu fiquei incomodada com o roteiro. Uma história tipo
Júlia, moça linda e pobre se acha horrível e encontra rapaz lindo e rico que se
apaixona por ela, se casam e terminam todos felizes no gramado da mansão dele,
com suas crianças lindas ao redor. Um livro extremamente clichê.
Eu fiquei incomodada com o que é
dito sobre BDSM no livro, o BDSM é tratado como um desvio de caráter, uma
doença cuja cura é o amor. Fiquei chocada como a mocinha é preconceituosa,
mesquinha, machista e extremamente moralista. Fiquei incomodada como esse
romance é misógino, como o galã — um cara de 27 anos — tem uma mentalidade mais
atrasada que a do meu pai, que se fosse vivo teria 80 anos. E fiquei incomodada
com outras coisas que não soube elaborar, não soube apontar. Fiquei intrigada,
como um livro tão bobo, tão pobre em BDSM podia ser considerado um marco no
segmento e podia ser consumido tão vorazmente.
Então, comecei a buscar pessoas
que tivessem lido o livro e estivessem dispostas a discutir sobre ele. E isso
se provou impossível. A maioria das pessoas da minha entourage não estava nem
aí pro livro. Então, alguém me indicou um blog que estava resenhando o livro.
E, partindo daí, eu encontrei a Jenny Trout, que é escritora de romances
eróticos e que tem um blog onde encontrei uma resenha dos livros da série,
capítulo por capítulo, apontando todos os absurdos e foi aí que eu percebi o
que tanto me incomodava.
A trilogia dos ’50 Tons de Cinza’
é uma fanfiction baseada na série ‘Crepúsculo’ de Stephenie Meyer (lembram do
vampiro apaixonado?), que fez um baita sucesso entre os leitores e foi adaptado
(ou seja, mudaram os nomes dos personagens) para poder ser vendido como obra
original. Sim, amiguinhes esse é o mercado editorial.
Para quem lê inglês e se
interessa pelo tema, mas não quer ler o livro, eu sugiro a leitura da resenha
feita por Jenny. Ela é hilária e expõe toda a problemática do livro. Para quem
quer ler literatura erótica, ela também é uma boa opção.
E agora, faço um resumo do que é
problemático. Christian é um stalker, manipulador, extremamente machista e
condescendente. Ana é moralista, mesquinha, preconceituosa e sem nenhuma
autoestima. Ele teoricamente seria o mentor de BDSM dela, mas não se comporta
assim. Ele nunca informa a ela nada sobre as cenas que eles vão fazer. E por
isso ela nunca pode consentir, que é o mais importante nesse tipo de prática,
sobre o que vai ser feito. Ela não tem parâmetros para entender o que está
vivendo (a relação BDSM) e ele se aproveita disso, da fragilidade e
desinformação dela. No que tange o BDSM, o livro é um manual do que não deve
ser feito e a utilização de brinquedos sexuais é limitadíssima. E olha que eu
não sou praticante de BDSM e pelo livro fica claro que a escritora também não
é.
Os personagens são rasos e sem
nenhuma consistência ou humanidade. As cenas de BDSM são poucas e muito
repetitivas, as cenas de sexo tediosas até. Em certo ponto da trilogia eu
pulava as cenas de sexo porque é sempre mais do mesmo. As personagens não falam
abertamente de sexo, os genitais não são nomeados, em alguns momentos tive a
impressão que o romance tinha sido escrito por mim, aos 11 anos de idade.
Em mais de 1500 páginas de um
romance erótico, a palavra pênis aparece uma única vez, e não me lembro de ter
lido a palavra vagina ou clitóris ou qualquer um de seus apelidos no livro
inteiro. Ela fala de sexo anal como algo sujo, proibido e pecaminoso. Quando ela se refere ao pênis de Christian é
sempre como “a ereção”, o que me levou a pensar que ele na verdade era o dono
da farmacêutica que produz o viagra.
A mocinha é tão pudica e alienada
que acredita em cavaleiros que resgatam princesas. Ela repete insistentemente
que o amor dela vai libertar ele das trevas que são seus desejos, ou seja o
BDSM. E foi aí que eu entendi porque esse livro faz tanto sucesso. E é bem
triste que ele faça tanto sucesso. O sucesso dos ’50 Tons de Cinza’ é baseado
no preconceito, na repressão sexual e no machismo da nossa sociedade.
Penso em ver o filme. Há notícias
de que algumas características e diálogos do livro foram modificadas e por isso
a própria autora estaria propondo um boicote. Há também ativistas propondo um
boicote ao filme, por glamourizar relações de abuso e violência doméstica. A
autora se defende dizendo que a história relata uma fantasia e que todas as
mulheres tem direito a elas. Lamento apenas que seja a fantasia do príncipe
encantando reeditada com todo seu moralismo. Como diz Natalia Engler em sua
crítica: “o público merecia mais. E não só em termos de sexo. Mas isso não deve
ser um problema para a bilheteria”.
No fim, acredito que muitas
pessoas gostam dessa trilogia porque os livros são o moralismo fantasiado de
sacanagem. É uma relação entre duas pessoas em que uma é extremamente
controladora e a outra, que não tem voz no relacionamento, é a salvadora. Não há
novidades, nem mesmo no que se refere ao prazer feminino, muito menos aos
papeis que homens e mulheres representam. É tudo preto no branco.
Fonte: Blogueiras Feministas
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