Um dos cartazes da campanha em massa Não Há Desculpas,
realizada por Conapees, Instituto da Criança e do Adolescente do Uruguai e
Unicef. Foto: Cortesia do Conapees
Karina Núñez Rodríguez tinha
apenas 12 anos quando se viu empurrada para a prostituição. Agora, com meio
século de vida e seis filhos, é uma das vozes mais eloquentes contra a
exploração sexual de meninas e adolescentes no Uruguai, país que insiste em não
reconhecer essa crescente chaga.
Seu sobrenome materno, Rodríguez,
“tem tudo a ver com o que faço e com o que sou”, disse à IPS esta mulher ao
explicar porque deseja usar ambos. Apesar de suas múltiplas contribuições, ela
não tem outra renda que não a procedente do trabalho sexual.
Tal como sua avó, sua mãe também
foi uma menina explorada. Agora ela se orgulha de ter quebrado este círculo
familiar de servidão e marca uma data simbólica: quando sua filha mais nova
completou 12 anos sendo uma menina alegre e pronta para entrar no ensino
secundário.
No Uruguai, uma grande quantidade
de menores, a grande maioria de meninas, é arrancada de sua infância e
oferecida como mercadoria em troca de pagamentos variáveis: um maço de
cigarros, uma dose de droga, um cartão de telefone celular, comida, roupa,
abrigo ou dinheiro. São explorados por membros de suas famílias, vizinhos ou
redes criminosas, pequenas ou mais organizadas.
A dona de um negócio alimentar
organiza bailes em sua loja nos dias de pagamento dos peões rurais do lugar e
convida meninas de 12 anos da vizinhança. Estas passam suas noites bebendo,
dançando e mantendo relações sexuais nas instalações externas de uma capela
próxima.
O proprietário, de 74 anos, de um
hotel em uma zona turística paga a viagem de uma jovem de 15 anos, que vive a
centenas de quilômetros, para ter sexo com ela. Depois, envia dinheiro aos seus
exploradores, mas evita ser processado alegando ignorar que a adolescente era
menor de 18 anos.
Um alto funcionário de uma
província organiza uma festa com adolescentes, álcool e cocaína em um prédio
governamental e é pego em flagrante quando, já bêbado, se vai em seu automóvel
com uma das jovens.
Uma rede formada por
caminhoneiros e os pais de duas das vítimas, obriga várias meninas a manterem
relações sexuais com motoristas de caminhões em três povoados diferentes.
Casos com esses são notícia a
cada semana no Uruguai. Em 2010, o governo declarou 7 de dezembro como dia
nacional contra a exploração sexual de meninos, meninas e adolescentes. Mas
ainda não pode medir o alcance do crime, punido com até 12 anos de prisão por
uma lei de 2004. A prostituição adulta é legal no país e regulada pelo Estado.
Pelo menos 1,8 milhão de menores
são explorados na prostituição ou pornografia no mundo, segundo a Ecpat, uma
rede mundial de organizações dedicadas a combater esses crimes. Quase 80% do
tráfico de pessoas é para exploração sexual, e mais de 20% das vítimas são
meninos e meninas. De 2010 a setembro do ano passado, a justiça processou 79
casos envolvendo 127 acusados. Apenas 43 deles foram condenados, segundo um
informe divulgado pelo Poder Judiciário.
Mas as denúncias policiais
aumentam. Em 2007 foram 20, em 2011 chegaram a 40, em 2013 a 70, e nos dez
primeiros meses de 2014 passaram de 80. “Cada caso afeta não só uma menina ou
um menino. Pode implicar quatro ou cinco”, disse à IPS o presidente do Comitê
Nacional para a Erradicação da Exploração Sexual Comercial e Não Comercial de
Meninas, Meninos e Adolescentes (Conapees), Luis Purtscher. Além disso, os
violadores superam em número as vítimas. “Em uma só noite, uma menina pode
manter dez relações”, acrescentou.
Nos últimos cinco anos, o
Conapees treinou 1.500 funcionários públicos, incluindo educadores,
trabalhadores sociais, agentes policiais e fiscais. “Temos três mil olhos e
ouvidos a mais, com algum grau de treinamento para detectar e denunciar”,
afirmou Purtscher, como outro motivo para o aumento das denúncias.
A violência de gênero também tem
um papel relevante. Na lista de 12 países latino-americanos, mais Espanha e
Portugal, o Uruguai tem a mais alta taxa de mulheres assassinadas por seus
parceiros, atuais ou passados, para cada cem mil habitantes, segundo informe
divulgado pelo Observatório de Igualdade de Gênero da América Latina e do
Caribe.
Dentro da campanha de
sensibilização, o Conapees publicou um aviso em jornais e revistas dizendo
“Meninas, muito meninas”, seguido de um número de telefone que recebeu cem
chamadas no primeiro dia e 500 no primeiro final de semana.
Núñez Rodríguez se converteu em
ativista após presenciar o sofrimento de jovens submetidas ao “processo de
amaciar” nas “whiskerias” (prostíbulos e locais de venda de bebida alcoólica):
“torturas, penetrações forçadas e coletivas, golpes”, destinadas a criar “tal
laço de temor entre a vítima e o explorador que a menina possa ficar toda a
noite parada em uma esquina em qualquer parte sem nem mesmo pensar em ir à
polícia”, descreveu.
Ela contou como conseguiu
apresentar 27 denúncias às autoridades. Desses casos, “participei em nove
processos e tenho a honra de as pessoas confiarem em mim e me apresentarem mais
e mais provas concretas”, detalhou. Revisa pessoalmente os dados e se apoia em
uma rede de oito amigas e colegas em diferentes cidades do país. “Graças a
Deus, temos WhatsApp”, afirmou, sorrindo.
Em 2007, junto com outras
companheiras, criou o Grupo Visão Noturna, para promover uma postura
independente das autoridades em questões de saúde vinculadas à prostituição e
para exigir respeito com as trabalhadoras sexuais.
Em 2009, pouco depois de
denunciar na delegacia de uma pequena cidade do interior que duas adolescentes
seriam traficadas, um suposto cliente a convidou para seu carro. Viajaram 20
quilômetros até a periferia. “Nove homens me deram uma surra. Fiquei 11 dias
sob cuidados intensivos e três meses sem poder caminhar”, contou. Depois da
recuperação, “voltei a denunciar o mesmo crime”, destacou. Ela sofre ameaças de
morte e disse que alguma pode se concretizar.
Na zona oeste de Montevidéu,
terminais de ônibus, parques, autopistas, cantinas e até casas particulares são
os locais onde se comete crimes sexuais contra meninas e meninos, diz o informe
Um Segredo Em Voz Alta, escrito por Purtscher e outros sete especialistas que
entrevistaram mais de 50 pessoas.
A área está atraindo grandes
investidores e mão de obra masculina, o que pode agravar a situação, mas carece
de mecanismos para ajudar as vítimas, segundo várias fontes. Tampouco o país os
possui. Um programa governamental de assistência criado em 2013 com esse fim
está sem financiamento e conta com apenas duas equipes próprias. Essa lenta
resposta oficial exaspera Núñez Rodríguez. “Quando uma criança é explorada, não
se pode esperar”, afirmou.
Por todos os lados
Denunciar é perigoso, mas esses
crimes e suas vítimas não estão ocultos. A fotógrafa belga Susette Kok
registrou muitos locais públicos em uma exibição e um livro em que retrata 27
pessoas que foram vítimas infantis de exploração sexual e agora,
invariavelmente, são trabalhadoras sexuais. “Foi muito fácil encontrar a
exploração. Está por todos os lados”, disse à IPS.
A “casinha do amor”, um conjunto
de muros em pedaços, com o chão coberto por camisinhas usadas, aparece ao lado
de uma igreja em Fray Bentos, no sudoeste uruguaio. Um enferrujado “contêiner
de paixões” emerge em uma instalação esportiva e, outra vez, ao lado de uma
igreja, à entrada de Young, no ocidente do país.
Dezenas de lugares semelhantes se
espalham pelo país: um banco em um campo de futebol da vizinhança, uma grossa
árvore junto a uma ponte, que a ironia batizou de “sexo ecológico”, cabanas,
clubes e “bares de camareiras”.
Fonte: Envolverde/IPS
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