sexta-feira, 11 de julho de 2014

Mulheres: sujeitos femininos de saber teológico


Entrevista especial com Neiva Furlin:  “Uma Teologia Feminista funcionando como um setor entre outros só tem sentido se influi no todo, senão acaba ajudando a perpetuar a cultura e a prática do não lugar das mulheres na construção do saber teológico”, pontua a socióloga.


O ensino superior de Teologia no Brasil “se estruturou como um ‘não lugar’ para as mulheres, já que para elas o ministério ordenado lhes foi negado”, diz Neiva Furlin, autora da tese intitulada Relações de Gênero, Subjetividades e Docência Feminina: Um estudo a partir do universo do Ensino Superior em Teologia Católica, na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.

Segundo ela, a pouca participação das mulheres nas universidades, seja como docentes, seja como discentes, está relacionada com a origem dos cursos de Teologia, os quais surgiram “em vista da formação de homens ‘vocacionados’ para o serviço do ministério presbiteral, na hierarquia eclesial”, os quais “deram legitimidade somente ao sujeito masculino e celibatário para ações nas instâncias de poder eclesial, tanto em relação à produção do saber como nas decisões sobre cargos e contratação de agentes do ensino”.

Neiva Furlin pesquisou como as mulheres “que ingressam o universo do saber teológico” desde os anos 1960 e 70 no país “se produzem e se legitimam sujeitos femininos de saber, em um espaço que, ao longo dos séculos, foi estruturado como um lugar não inteligível para as mulheres”. Na entrevista a seguir, ela comenta os principais resultados de sua pesquisa, que consiste em analisar a participação das mulheres nas universidades católicas. Das 71 instituições que ofereciam o curso de Teologia no Brasil até o ano de 2008, 40 delas participaram da pesquisa.

Entre as conclusões do estudo, pontua, “não se pode negar que a inserção de mulheres na docência, ainda que reduzida, desafia os códigos convencionais deste universo acadêmico. Ou seja, trata-se de uma presença que é, ao mesmo tempo, simbólica e política, porque transgride uma convenção social estabelecida, de um lugar estruturado, historicamente, como não inteligível para as mulheres, e politicamente elas podem se afirmar como sujeitos femininos também dotados de capacidade intelectual ou de razão teológica”.

Neiva Furlin é doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, com doutorado sanduíche pelo Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades - CEIICH da Universidade Nacional Autónoma de México - UNAM. Integrou a equipe de Assessoria Executiva da Conferência dos Religiosos do Brasil durante os anos de 2003-2006, contribuindo na formação de diferentes grupos. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica, Métodos e Técnicas de Pesquisa, Cultura e Sociedade, Trabalho e Relações de Gênero. É membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Gênero da UFPR.


Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as principais temáticas abordadas na sua tese intitulada Relações de Gênero, Subjetividades e Docência Feminina: Um estudo a partir do universo do Ensino Superior em Teologia Católica?

Neiva Furlin – Trata-se de um estudo sobre a docência feminina em instituições católicas de ensino superior. Um primeiro objetivo desse estudo foi evidenciar os índices da participação masculina e feminina nos quadros da docência, no ensino da teologia. Isso nos possibilitou objetivar o mundo social dos sujeitos que atuam no universo do saber teológico.

Contudo, o principal foco da pesquisa foi compreender como as mulheres que ingressam o universo do saber teológico se produzem e se legitimam sujeitos femininos de saber, em um espaço que, ao longo dos séculos, foi estruturado como um lugar não inteligível para as mulheres. Nesse sentido, buscamos evidenciar como as dinâmicas de poder da lógica simbólica masculina atravessam os processos de inserção, de subjetivação e de construção da docência feminina.

O estudo também revela as estratégias políticas que as docentes entrevistadas constroem no processo do seu devir sujeitos de saber, os espaços que ocupam, as iniciativas que conseguem inaugurar e até que ponto as suas práticas produzem ou não novos significados nas relações acadêmicas e na estrutura das instituições de ensino superior. Acredito que a relevância desse estudo, além de visibilizar as relações de gênero no universo acadêmico da teologia e a ação das mulheres no processo de se constituírem sujeitos de saber/poder, está em trazer à tona um tema pouco estudado no universo da sociologia e em contribuir com o rol dos estudos feministas sobre ciência e gênero e carreiras profissionais majoritariamente masculinas.

IHU On-Line – De que maneira a pesquisa foi realizada?

Neiva Furlin – A realização dessa pesquisa passou por grandes desafios de modo que considero importante relatar sobre as técnicas e a metodologia assumida para que este estudo fosse possível.

a) Sobre as técnicas de pesquisa adotadas: Para a coleta das informações e o levantamento dos dados empíricos necessários para atender aos objetivos da pesquisa exigiu-se uma combinação de técnicas, que incluiu pesquisa bibliográfica, consulta a páginas eletrônicas das instituições católicas de ensino teológico, aplicação de questionário, participação observante em congressos de teologia, análise de programas de ensino e a realização de entrevistas aprofundadas. Quando procuramos dados sobre participação de mulheres no ensino superior em teologia, encontramos na página do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP algumas informações mais gerais, que incluíam 93 instituições de teologia de diferentes confissões religiosas — presbiterianas, luteranas, batistas — que, até o ano de 2005, tinham seus cursos de graduação em Teologia credenciados junto ao MEC, reconhecidos ou autorizados. Com esses dados, foi possível fazer uma comparação entre a teologia e as demais áreas de saber.

Como a pesquisa se referia ao ensino de teologia católica, foi necessário elaborar um questionário específico que foi enviado a todas as instituições católicas que ofereciam a graduação em teologia. Para isso, contamos com a ajuda da CNBB e da Conferência dos Religiosos do Brasil e tivemos o retorno de 40 questionários, ou seja, 56,3% das instituições existentes participaram da pesquisa, o que tornou possível estabelecer um quadro de evidência aproximado acerca da representação feminina e masculina na docência do ensino superior de teologia. Vale lembrar que nesse período havia em torno de 71 instituições que ofereciam o curso regular de teologia, reconhecido ou não pelo MEC [1]. Essa visão geral tornou possível a seleção de três instituições, nas quais buscamos as interlocutoras da pesquisa, isto é, em duas universidades e uma faculdade, situadas em diferentes Estados.


"Os dados revelam que este espaço (universidades católicas) segue sendo hierárquico e com forte tendência da permanência majoritária do sujeito que é homem e clérigo"
Nesse processo, levamos em consideração as que tinham mais mulheres nos quadros da docência e que podiam responder aos critérios que estabelecemos para a investigação, ou seja: docentes com formação teológica, que ministrassem aulas no curso de graduação em Teologia [2], que tivessem produção na perspectiva feminista ou de gênero ou que tivessem tido algum contato com as teorias de gênero e do feminismo [3] durante o processo de formação acadêmica, que fossem professoras de instituições com o curso de Teologia, autorizado ou reconhecido pelo MEC. Desse modo, realizamos quatorze entrevistas, por meio das quais procuramos dar voz às mulheres e, a partir de suas narrativas, compreender as dinâmicas envolvidas no processo de inserção; visibilizar como as relações de gênero e de poder se articulam no universo do saber teológico; tornar explícita a forma como elas se compreendem e se constroem na profissão da docência, como criam as suas possibilidades de agência em um lugar que, ao longo da história, não foi pensado por e para elas.
b) Sobre a metodologia assumida: Priorizamos uma abordagem qualitativa, fundamentada na perspectiva hermenêutica, que permitiu a relação intersubjetiva entre a pesquisadora e as docentes no processo da produção do conhecimento. Essa perspectiva nos faz tomar consciência de que o resultado deste estudo é apenas uma interpretação entre tantas outras possibilidades que poderiam ser assumidas desde outros lugares teóricos ou hermenêuticos.

Integrada a proposta hermenêutica, para o tratamento dos elementos históricos, assumimos a metodologia genealógica, inspirada nos estudos de Michel Foucault e de Teresa de Lauretis, uma vez que não se pretendia interpretar e compreender a história de maneira linear. Por meio da genealogia, buscamos compreender as condições nas quais os processos de subjetivação feminina ocorreram no universo do saber teológico. Assim, de um lado, tomamos os discursos teológicos tradicionais nos aspectos que se remetiam às representações e imagens simbólicas de gênero, para perceber os seus efeitos na constituição da subjetividade feminina. De outro lado, as narrativas das docentes, a partir da singularidade dos acontecimentos do cotidiano da profissão e das relações com seus pares, para compreender a ação e os significados contidos nas memórias de suas experiências situadas, buscando perceber como elas se reinventam ou ressignificam a subjetividade feminina, produzindo-se sujeitos de saber ou de razão teológica. Nesse processo analítico, a categoria de gênero, segundo as concepções de Joan Scott e Tereza de Lauretis, foi um instrumental teórico necessário para a desnaturalização e a problematização dos discursos.

Contudo, outras categorias teórico-analíticas enriqueceram a compreensão sobre as relações de poder e de gênero, inscritas nas práticas e nas memórias vividas e narradas pelas docentes, tais como: o conceito de poder como uma relação produtiva, segundo a teoria de Michel Foucault e Judith Butler; a noção de subjetividade ética, pensada como processo de resistência política, de reflexividade e de produção de atos de liberdade, segundo as concepções de Foucault; a noção de subjetividade nômade, que permite pensar os deslocamentos subjetivos que ocorrem por meio de experiências incorporadas na história presente, mas sempre em processo de devir, no sentido de Rosi Braidotti; a Diferença Sexual tomada como um projeto político de afirmação positiva do feminino, segundo a teoria de Braidotti; a noção de agência como capacidade de ação movida pelo desejo, segundo a compreensão de Butler e Braidotti; e a categoria de “Mulher”, como uma categoria política, no sentido coletivo e agregador dos múltiplos marcadores sociais de identidade. Isto é, como uma posição política do sujeito, tomada como resultado de uma experiência histórica, que se distancia de um sentido puramente essencialista.

IHU On-Line - Como as mulheres se produzem sujeitos femininos de saber teológico, num lugar marcado por uma lógica de gênero da ordem simbólica masculina?

Neiva Furlin – É de nosso conhecimento que as instituições de ensino em teologia, como parte do campo eclesial, são estruturas de saber/poder hierárquicas, masculinas e celibatárias, que se legitimaram, ao longo da história, com o respaldo de um poder simbólico e sagrado. Desse modo, o tornar-se sujeito feminino de saber teológico, nesse lugar, parece que só pode ser compreendido dentro de um campo de luta cultural, epistêmica e simbólica.

Assim, para compreender como as mulheres se produzem sujeitos femininos de saber, levamos em consideração as experiências vividas que nos foram narradas pelas docentes entrevistadas, sobre as suas trajetórias, que vai desde a motivação pela formação teológica, que é uma das ferramentas que as qualifica para a inserção nesse campo de saber, até as relações de poder que são estabelecidas no processo de formação, de inserção e de permanência nas instituições de ensino teológico. A pesquisa mostrou que as mulheres entrevistadas têm assumido uma posição ética de si mesmas, no sentido foucaultiano, que ocorre por meio da resistência à lógica do poder hierárquico e masculino, de processos de reflexividade e de atos de liberdade ou autonomia. Trata-se de um agenciamento de si que ocorre no cotidiano da experiência, mas sempre em devir, que é perpassado por relações de tensões com os discursos e as práticas de uma estrutura masculina e celibatária. Uma estrutura que não produz só limites para as mulheres, mas também possibilidades para iniciativas autônomas e criativas que emergem desde as margens do poder central. Nesse processo de agenciamento ético, em que as docentes reivindicam o direito de ensinar e de produzir saber e o reconhecimento de seu potencial, elas não só enfatizam o critério da formação profissional adquirida, mas também as experiências cotidianas, de um sujeito que é “mulher” e que tem uma contribuição a dar ao universo da teologia. De modo que existe uma reivindicação pelo reconhecimento positivo da alteridade e por igualdade de direitos.

Estratégia política de afirmação positiva do feminino

E, concretamente, como isso aparece? As docentes se apropriam do poder de um discurso recorrente nesse meio e a todo o tempo o reiteram. Trata-se do discurso de que elas “fazem a diferença”, pelas experiências que vêm do cotidiano da vida das mulheres. Desse modo, as experiências, que no discurso tradicional da teologia as desqualificavam para as atividades intelectuais, agora funcionam como uma estratégia política de afirmação positiva do feminino, porque são legitimadas pelas ações situadas que elas protagonizam no meio acadêmico. Por outro lado, as docentes também usam do critério da qualificação profissional para reivindicar o direito de igualdade e por uma justa distribuição de poder, no interior da instituição teológica. Assim, elas negociam ou ocupam espaços de liderança, assumem disciplinas de sua área de formação, aproveitam brechas ou concessões advindas de méritos e das relações que estabelecem no meio acadêmico. Por meio dessas experiências situadas, as docentes se reafirmam sujeitos capazes de ação racional e de exercer liderança e, politicamente, acabam produzindo um significado positivo para a diferença sexual, que legitima o seu devir sujeito feminino de saber teológico. Isso, pensando a partir das concepções de Rosi Braidotti, funciona como contramemória a uma visão negativa, essencializada e reducionista de feminino, que havia sido produzida e reproduzida pelas representações de gênero do discurso da teologia masculina e tradicional.

Contudo, foi possível perceber que produzirem-se sujeitos femininos de saber teológico é um processo que ocorre em meio à contradição de essas docentes estarem, ao mesmo tempo, dentro e fora da lógica de gênero do sistema simbólico masculino. Ou seja, a sua subjetividade é perpassada por processos de assujeitamento, tanto pelas convenções culturais, sociais e religiosas internalizadas durante a socialização familiar e eclesial como pela relativa submissão às normas de gênero que operam no universo do saber teológico e que, sutilmente, requer das mulheres um esforço muito maior para se legitimarem sujeitos da docência, em relação do que é exigido aos seus pares masculinos. Mas, ao mesmo tempo, elas se constituem por processos de resistência, na medida em que as suas ações, movidas pelo desejo do “vir a ser”, se contrapõem e se afastam de um modelo de subjetividade feminina, ditado pelas convenções da cultura patriarcal e da moral católica.

Sujeitos femininos

Podemos dizer que as docentes se constituem sujeitos femininos de saber teológico pelas ações que elas mobilizam, na consciência de que esse lugar também é um direito seu, porque possuem uma qualificação profissional que lhes garante a função de ensinar e produzir saber.

Esse constituir-se também tem a ver com os novos significados que elas produzem para a alteridade, e isso não resulta somente das práticas acadêmicas que elas assumem e inauguram ou dos discursos que elas produzem ou ressignificam. Ou seja, passa ainda pela autorrepresentação de si, quando ao contarem-se, elas constroem narrativas reflexivas, em que selecionam e interpretam, de forma coerente e crítica, as suas ações e experiências, na relação com as convenções normativas, com os seus pares masculinos e com as práticas das instituições onde atuam. Tais narrativas aparecem como memórias de experiências vividas, recordadas e compartilhadas, que ocorrem no movimento da vida, encarnadas em um contexto situado, perpassado por dispositivos de poder. Essas narrativas reflexivas, agora rearticuladas em situação de entrevista, pareciam produzir um novo significado, em termos de produção e objetivação de si e de sua ação. Em outras palavras, elas se objetivam sujeitos femininos de saber, cuja alteridade passa a ser positiva, porque se sentem mulheres capazes de ação, em um lugar simbólico e masculino, até há pouco tempo, considerado não inteligível para elas. Desse modo, ao se afastarem do modelo de subjetividade do sistema simbólico da moral católica tradicional, pode-se considerar que há processos de desconstrução e desnaturalização dos significados da cultura patriarcal, que elas mesmas haviam assimilado. Com isso, elas produzem deslocamentos subjetivos, ou uma produção ética de si, que se constitui pela experiência vivida, em contextos situados da história presente. Porém, é um processo nunca concluído, porque a luta contra os efeitos do poder é contínua. Trata-se de uma subjetividade nômade, segundo as concepções de Rosi Braidotti, que está sempre em devir e que se reafirma pela estratégia política da positivação da diferença sexual.


"Outro caminho que, certamente, poderia mudar esse cenário seria as congregações religiosas femininas criarem as suas próprias instituições teológicas"
IHU On-Line – Como as mulheres foram conquistando espaço na docência em Teologia?

Neiva Furlin – O curso de teologia no Brasil, nas suas origens, surgiu em vista da formação de homens “vocacionados” para o serviço do ministério presbiteral, na hierarquia eclesial.

Portanto, esse espaço de saber se estruturou como um “não lugar” para as mulheres, já que para elas o ministério ordenado lhes foi negado. Assim, ao longo da história essas instituições foram marcadas por formas de organização androcêntricas, que deram legitimidade somente ao sujeito masculino e celibatário para ações nas instâncias de poder eclesial, tanto em relação à produção do saber como nas decisões sobre cargos e contratação de agentes do ensino. A inserção de mulheres no ensino teológico se tornou possível a partir de um conjunto de transformações socioculturais que ocorreram na década de 1960 e início dos anos 1970. Um contexto que se tornou favorável à ampliação da escolarização feminina e, consequentemente, ao crescente processo de inserção de mulheres em diferentes áreas profissionais e acadêmicas que, também, foi sendo impulsionado pelas mobilizações feministas que reivindicavam a igualdade de direitos e de oportunidades. Essas transformações influenciaram o universo eclesial, de modo que, na América Latina, os documentos finais das Conferências de Medellin (1968) e de Puebla (1979) mostraram-se sensíveis a essa nova realidade conjuntural, isso porque em suas conclusões acenaram sobre a importância da luta pela dignidade das mulheres e da necessidade da valorização de sua participação nas esferas da sociedade e em algumas instâncias eclesiais.

Inserção das mulheres

Assim, nos anos de 1980, havia todo um discurso de democratização do poder na estrutura eclesial, trazida pela Teologia da Libertação, de valorização discursiva do feminino e da presença das mulheres nas pastorais e na liderança nas comunidades eclesiais de base. Pode-se dizer que existia uma conexão e uma interlocução com o momento histórico e com o discurso temporal, político e cultural da sociedade. No entanto, essa conjuntura favorável, no contexto eclesial, esteve permeada de contradições e ambiguidades, porque as mulheres não tiveram acesso às instâncias de decisão e, muitas vezes, a sua presença foi mais simbólica do que efetiva, em termos de mudanças nas estruturas. Entretanto, foram “brechas” que se abriram para as mulheres e favoreceram a sua inserção nas universidades como estudantes e também como professoras, em um lugar em que elas estiveram, por muito tempo, ausentes.

Nessa conjuntura, nossa pesquisa aponta que as próprias mulheres, ao perceberem as “brechas” abertas e ao tomarem consciência do seu protagonismo como sujeitos históricos, e em sintonia com as diversas mobilizações feministas que reivindicavam direitos igualitários, foram construindo os seus espaços de ação dentro da estrutura eclesial, ainda que limitados.

Contudo, constatamos que são poucas as que conseguem um lugar no ensino na teologia e essa “conquista”, para além de uma conjuntura eclesial favorável, também tem a ver com as estratégias que elas produziram para que essa inserção fosse possível, tais como: a qualificação profissional, o estabelecimento de redes de contato, entre outras.

Por outro lado, os dados quantitativos da pesquisa evidenciam que, em geral, a presença de mulheres na docência e em disciplinas importantes dentro da grade curricular do curso de teologia, ainda que reduzida, é mais significativa quando esta instituição é uma Universidade Católica ou uma Faculdade que tem como mantenedora diversas congregações religiosas.

Já quando se trata de um Instituto Diocesano de Teologia, a presença feminina na docência é praticamente inexistente [4]. Também, se consideramos os dados do censo de 2005 [5] realizado pelo INEP/MEC sobre a docência no ensino superior, constatamos que na grande área das humanidades e artes, que é onde se situa a teologia [6], esta é a que apresenta o índice mais alto de assimetria entre a participação masculina e feminina. Essa assimetria se amplia quando direcionamos o nosso olhar, especificamente, para a teologia católica, que foi o recorte de nossa pesquisa. Enfim, os dados revelam que este espaço segue sendo hierárquico e com forte tendência da permanência majoritária do sujeito que é homem e clérigo. Por outro lado, não se pode negar que a inserção de mulheres na docência, ainda que reduzida, desafia os códigos convencionais deste universo acadêmico. Ou seja, trata-se de uma presença que é, ao mesmo tempo, simbólica e política, porque transgride uma convenção social estabelecida, de um lugar estruturado, historicamente, como não inteligível para as mulheres, e politicamente elas podem se afirmar como sujeitos femininos também dotados de capacidade intelectual ou de razão teológica.

IHU On-Line – Que relações de poder na cultura teológica do catolicismo são capazes de explicar a maior ausência das mulheres neste espaço acadêmico de saber?

Neiva Furlin – Partindo de uma concepção foucaultiana de que o poder se inscreve nas práticas e nas relações cotidianas e se efetua e se exerce em diferentes direções e de maneira múltipla, inclusive por meio da linguagem (discursos, representações...), podemos considerar que a presença reduzida de mulheres ou mesmo a sua ausência em muitos Institutos ou Faculdades de Teologia, pode ser explicada a partir dos efeitos do poder inscritos em distintas práticas discursivas e institucionais. Uma dessas explicações tem a ver com o discurso teológico tradicional que deu fundamento à doutrina oficial da Igreja, em relação às mulheres, e que circulou nas esferas eclesiais até pouco tempo atrás.

Porém, vale lembrar que a teologia é um discurso histórico, milenar e complexo, que passou por uma série de desdobramentos, por conta de tensões culturais e históricas. Por isso, a trajetória de sua constituição não é uniforme, homogênea, nem linear, porque se inscreve dentro de uma série de percalços, crises e conflitos internos e externos.

Contudo, na sua história milenar, teve a influência das explicações dicotômicas de Aristóteles e da clássica oposição puro/impuro da tradição judaico-cristã, que sustentava a existência “natural” de uma hierarquia desigual entre o universo masculino e feminino. Tais concepções foram definindo normas, valores, comportamentos e papéis distintos que deveriam ser exercidos pelas mulheres e homens no universo religioso, familiar e, inclusive, nas esferas da sociedade. Essas representações de gênero foram produzidas a partir de uma leitura biologizada e essencializada dos corpos, que enaltecia a superioridade masculina e justificava a inferioridade das mulheres para as atividades intelectuais, cujas ideias influenciaram o pensamento filosófico e teológico de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, dois personagens que se tornaram grandes inspiradores da teologia na Idade Média e Moderna.

Esse legado discursivo tem exercido poder dentro das instituições teológicas, até recentemente, por se reproduzir culturalmente nas práticas e no imaginário dos sujeitos hegemônicos deste campo de saber e que justificava o afastamento das mulheres de determinadas instâncias de poder/saber.

Resquício de um imaginário construído

Nossa pesquisa evidenciou que os resquícios desse imaginário continuam construindo barreiras de gênero que limitam a inserção e a ação das mulheres no ensino e na produção do conhecimento, mesmo diante de suas conquistas contemporâneas nos diferentes espaços da sociedade. Outra explicação se deve ao fato de que as instituições teológicas, apesar de terem aberto janelas para a atuação de mulheres e leigos, em geral, são mantidas pelas dioceses, ou pelas congregações religiosas masculinas, nas quais a principal instância de poder, mesmo estando na mão de um diretor ou coordenador, em geral, clérigo, tem a interferência direta de um bispo ou de um provincial [7], cuja liderança exerce influência nos processos organizacionais das instituições e no contrato dos agentes do ensino que, de certa maneira, tende a garantir uma ordem simbólica, em termos de hierarquia de poder e de gênero.
Práticas sexistas

Nesse contexto, a pesquisa realizada mostrou que as poucas mulheres que são inseridas nos quadros da docência têm relação com alguns aspectos, tais como a falta de professores masculinos com formação em determinadas áreas, a influência que essa mulher poderá ter ou ao status que dará à instituição, quando é portadora de um capital cultural reconhecido e valorizado no universo teológico ou, ainda, das energias investidas pelas próprias mulheres em suas estratégias políticas para se fazer conhecidas no seu potencial ou qualificação profissional.

Contudo, ainda se constatam práticas sexistas, isso porque quando um homem e uma mulher possuem o mesmo grau de qualificação, a preferência é dada ao sujeito que é portador do capital simbólico mais valorizado nesse lugar de saber, que é o fato de ser do sexo masculino, de ter uma identidade clerical e, de preferência, ter cursado o mestrado ou o doutorado em Roma, cujo lugar geográfico, para o universo eclesial, vem carregado de significado simbólico. Vale lembrar que esses mesmos critérios também definem posições e lugares de reconhecimento e de poder nas relações intragênero. Desse modo, podemos dizer que, devido à finalidade histórica da formação teológica e das práticas culturais dessas instituições, elas ainda se caracterizaram como um reduto majoritariamente masculino e celibatário.

A teologia e outras áreas do saber

Mas, então, o que caracteriza ou o que diferencia a teologia de outras áreas de saber como, por exemplo, das engenharias e da física, que ainda são áreas majoritariamente masculinas?

Parece-nos que a grande diferença se deve ao fato de que a teologia justifica as suas práticas por meio de um poder discursivo, simbólico e cultural, fundado no plano do sagrado. E, por causa disso, os processos de mudanças são mais demorados nesta área e, ainda, o famoso teto de vidro se interpõe para as mulheres já no final da graduação em teologia, uma vez que elas não podem ser ordenadas e poucas são as perspectivas profissionais em termos de continuidade dos estudos e de inserção no campo acadêmico. Isso nos faz afirmar que existe uma cultura católica que se reproduz nas práticas eclesiais e que tem uma relação direta com a grande ausência de mulheres nesse universo de saber. Nesse sentido, os dados quantitativos coletados junto às instituições católicas de ensino teológico mostram que, das mulheres que acessam a formação teológica, a maioria chega até o nível da especialização.

Isso parece apontar a existência de uma divisão sexual de trabalho, em que a busca pela formação teológica para o universo feminino se volta mais para a prática pastoral, enquanto aos homens lhes dá direito a um lugar de poder na hierarquia eclesial, em que o grau de valorização e de reconhecimento simbólico é superior.

Outra questão é que nesse contexto em que as práticas institucionais priorizam a formação para o homem clérigo, as mulheres parecem encontrar pouco ou nenhum incentivo, no que diz respeito à concessão de bolsas, para continuarem seus estudos nos níveis de mestrado e de doutorado e, somado a isso, a falta de perspectiva de ter uma carreira profissional garantida no futuro, no universo acadêmico e eclesial. Evidentemente, acenamos, aqui, algumas das múltiplas dinâmicas de poder inscritas na reprodução da cultura católica, que podem explicar o fenômeno da presença reduzida ou da ausência de mulheres nos quadros da docência em teologia. Trata-se de um campo complexo e diversificado que pode, ainda, ser compreendido a partir de outros olhares ou perspectivas teóricas.

IHU On-Line – E quando se trata dos processos de inserção e de construção da docência feminina, que dinâmicas de poder e de gênero estão em jogo, de modo geral?

Neiva Furlin – Se existem dinâmicas de poder que limitam a presença das mulheres na docência, como acabamos de falar, de certa maneira, elas também se conectam com os processos de inserção. Isso porque, na perspectiva teórica de Michel Foucault e de Judith Butler, é no interior do próprio jogo ou das dinâmicas de poder que produzem os limites, que se encontram as possibilidades de potência, de criatividade ou até mesmo de transgressão. Potência entendida como capacidade de ação mobilizada pelo desejo que, nesse caso, trata-se do desejo de ser sujeito da prática docente e da produção de saber teológico, em um contexto, historicamente, regido pela norma masculina e celibatária. De acordo com as narrativas das docentes, a sua inserção no ensino não ocorreu por meio de concurso, com exceção em uma situação. Os espaços foram sendo percebidos ou concedidos, diante da necessidade ou substituição de professores/as. Contudo, houve condições que foram sendo produzidas por elas e que se tornaram favoráveis, ou seja, muitas delas eram próximas e conhecidas de professores que tinham o poder de recrutar os agentes de ensino, seja pelo seu desempenho acadêmico, seja pela sua formação ou mesmo por compartilhar com eles a mesma linha de pensamento teológico. Por outro lado, os conteúdos das narrativas das docentes deixam evidente a diversidade de dinâmicas de poder que operam em diferentes espaços institucionais, quando está em jogo a contratação de docentes. Alguns processos, ainda, são demarcados por conteúdos de gênero e por práticas culturais e institucionais que garantem a hegemonia masculina e, por isso, a condição de sexo e a identidade clerical ainda determinam a possibilidade de inserção, sobrepondo-se ao nível de formação ou competência profissional. Outras instituições valorizam mais a posição profissional do/a docente a ser contratado/a.

A inexistência de concursos nos Departamentos de Teologia, para a seleção de professores acaba produzindo critérios seletivos, nem sempre justos, embora tidos como legítimos dentro da dinâmica de uma cultura androcêntrica e hierárquica. Outra questão analisada em nossa pesquisa foi das estratégias políticas que as docentes produzem para conseguir lecionar as disciplinas de sua área de formação. Tais processos nem sempre são fáceis. Em geral, essa “conquista” resulta de uma longa espera ou da produção de estratégias políticas, nas quais as docentes acionam a qualificação profissional, como um critério de direito, sobretudo, quando essas disciplinas são consideradas centrais na grade curricular do curso. Essas posturas evidenciam que estar inseridas em um universo atravessado por dinâmicas e práticas institucionais de poder, que são generezidas [8] no masculino, exige das mulheres um esforço maior na construção da legitimidade da docência feminina ou, em outras palavras, no processo de “se tornarem” sujeitos femininos de poder/saber teológico. Enquanto para o sujeito masculino o espaço e a posição de poder aparece como algo que lhes é legítimo e que se justifica no plano simbólico e do sagrado.

Negociações

A lógica de gênero da ordem simbólica masculina faz com que as mulheres precisem estar sempre negociando seus espaços, afirmando-se e visibilizando-se como sujeitos capazes de liderança e de ação racional. E, nesse sentido, o desejo de se constituírem sujeitos femininos de saber teológico faz com que elas se adéquem e correspondam às convenções normativas de gênero e de poder que impõem condições desiguais para homens e mulheres. Porém, com essa postura, paradoxalmente, elas produzem novos significados de gênero na produção de si. De modo que existe a reivindicação pelo reconhecimento de uma identidade feminina que é positiva, que não está isenta de poder, porque há uma disputa por recursos simbólicos e posições sociais reconhecidas dentro do universo teológico. Assim, é nessa lógica que se pode compreender o esforço que elas fazem, em condições desiguais, para exercer de forma eficiente e produtiva a liderança que assumem, e para manter um bom nível de produção acadêmica, seja de artigos publicados, seja de orientações de trabalhos de conclusão de curso.

IHU On-Line – Como você explica a constituição “ética de si” no processo de devir sujeitos femininos de saber, em uma instituição que foi estruturada dentro dos padrões normativos masculinos?

Neiva Furlin – Creio que esta questão nos remete ao que aprofundamos em uma das primeiras perguntas, quando falamos sobre o constituir-se sujeito feminino de saber.

Contudo, nos parece importante situar isso também do ponto de vista teórico. Segundo Michel Foucault, já no final de sua vida, a constituição ética de si é pensada como a possibilidade do sujeito que ocorre por meio da resistência aos poderes discursivos e disciplinares. Tem a ver com a ação de um sujeito que decide sobre suas condutas e escolhas, como uma postura de resistência crítica aos códigos normativos ou ao poder que o produz. Nessa visão, a “ética de si” se constitui em uma ação política, porque abre um campo de possibilidades na arte de resistir e de produzir-se, na relação com as dinâmicas dos poderes. É um ato de produzir-se sujeito, que se realiza por meio de práticas de resistência, de liberdade e de reflexividade. Trata-se de uma relação interativa e crítica que enfraquece os limites e as fronteiras estabelecidas pelos poderes normativos.

A ética em si e a resistência a um modelo de femino

Essa posição de uma ética de si foi possível verificar nas memórias das experiências vividas que foram relatadas pelas docentes, uma vez que a todo tempo elas buscam resistir a um modelo de feminino do sistema simbólico masculino, propondo um simbólico alternativo, o qual se reafirma por meio das práticas acadêmicas que elas realizam no universo do saber teológico. De modo que essa ética de si é parte do projeto de afirmação positiva da diferença sexual, que valoriza a experiência corporal vivida pelas mulheres, rejeitando a alteridade produzida por um pensamento abstrato e desencarnado. Ou seja, o fato das docentes resistirem à imagem de um sujeito feminino desqualificado e se reafirmarem como sujeito “Mulher” que tem uma ação concreta e situada, um sujeito que pode agir, falar, pensar e produzir teologia crítica é, sem dúvida, uma produção ética de si ou uma reinvenção de si, de um novo modo de viver e de sentir-se sujeito feminino, dentro das instituições católicas de teologia que seguem os padrões normativos masculinos. E esse processo, segundo a nossa pesquisa, se inicia desde o ingresso na formação acadêmica em teologia e perpassa toda a trajetória que elas fazem para constituírem-se sujeitos femininos de saber teológico que, ao mesmo tempo, se concretiza no presente, permanece sempre como devir.

IHU On-Line – As docentes têm conseguido inaugurar novas práticas dentro do universo acadêmico da teologia? Até que ponto essas ações interferem ou não na organização ou na mudança das estruturas das instituições católicas?

Neiva Furlin – Em parte pode-se dizer que as mulheres, como sujeitos reflexivos, têm conseguido inaugurar algumas práticas que, de certa maneira, objetivam mudanças nas estruturas do pensamento teológico ou até mesmo na produção de novas relações de gênero no universo das instituições católicas.

Contudo, essas práticas têm gerado tensões, sobretudo quando se relacionam diretamente com as perspectivas dos estudos de gênero e da teoria feminista. Não vamos abordar, aqui, as estratégias que foram sendo produzidas pelas docentes para a concretização dessas práticas, nem os detalhes das tensões que foram apreendidos em nossa pesquisa, mas apenas nomeamos essas ações e a percepção dos efeitos que elas têm produzido. Definimos essas novas ações de práticas inovadoras, no sentido proposto pela filósofa francesa Júlia Kristeva, entendida como novas possibilidades que surgem e que até então eram excluídas em um determinado contexto social. E, segundo a filósofa María Luisa Femenías, as práticas inovadoras podem, eventualmente, normalizar-se como novas formas discursivas ou modificações que renovam as práticas sociais e culturais.


"As mulheres entrevistadas têm assumido uma posição ética de si mesmas, no sentido foucaultiano, que ocorre por meio da resistência à lógica do poder hierárquico e masculino"
Conquistas

No universo acadêmico da teologia católica, pode-se dizer que são práticas inovadoras: a presença de mulheres nas conferências e mesas de eventos e congressos teológicos; o espaço conquistado para a organização de mesas e grupos temáticos de trabalho acerca da Teologia Feminista ou de gênero; a luta pelo uso de uma linguagem inclusiva; a inserção de referências de autoras feministas nas disciplinas que as docentes ministram e a inclusão de novas disciplinas, entre essas: a de Teologia Feminista, como disciplina obrigatória para a graduação em uma das instituições, e a disciplina de Teologia e Gênero, como optativa para curso de pós-graduação em duas universidades. Tais disciplinas permitem que os/as discentes acessem novos conteúdos ou discursos produzidos por outras perspectivas e podem ser importantes para despertar um olhar crítico sobre os conteúdos de gênero da teologia tradicional. Essa ação pode produzir efeitos no processo de desconstrução de um imaginário de gênero e, até mesmo, levar algumas das futuras lideranças masculinas da Igreja a pensar de um modo diferente, comprometendo-se com a construção de novas relações de gênero, como é o objetivo dessas disciplinas. Contudo, isso é um nada diante do grande universo das instituições teológicas, que nem sequer tocam nesses temas e continuam reproduzindo conceitos e representações de um discurso que reforça o simbólico masculino como norma.

A teologia produzida com a mediação das categorias dos estudos de gênero e da teoria feminista, conhecida como Teologia Feminista, se evidencia como outra prática inovadora que, na visão das docentes, tem sido a maior contribuição que elas deram ao universo acadêmico da teologia. Essa teologia pode ser considerada alternativa em relação à tradicional, pelos novos significados que ela produz no processo de reinvenção da subjetividade feminina, sobretudo, para o conjunto das mulheres que acessam a este saber.

Entretanto, essas novas práticas não parecem ser incorporadas nas estruturas acadêmicas e tampouco assumidas pelos seus pares. Elas só existem e funcionam pelo exercício do poder de ação das docentes, enquanto elas estão inseridas neste lugar de saber. Por mais inovadoras que possam ser, pela contribuição que trazem para a teologia, elas produzem pouco ou nenhum efeito na ordem institucional e não provocam mudanças estruturais. Os efeitos mais significativos parecem ocorrer na relação docente/discente e na relação do “si mesmo para todas as mulheres”. Desse modo, as suas práticas podem ser consideradas como parte de um projeto político de ressignificação do sistema simbólico de gênero, em favor de uma afirmação positiva da identidade feminina e da emergência do sujeito “mulher”, que também é dotado de capacidade para produzir saberes. São práticas que ocorrem em um tecido social que limita e, ao mesmo tempo, cria as possibilidades de ação, inscrevendo novos significados na lógica do campo de saber teológico. No entanto, as possibilidades de ação, nessa estrutura limitadora, são potencializadas pelas próprias mulheres como parte de uma missão pela qual se sentem vocacionadas e pelo desejo por devir sujeito feminino de saber, em um lugar em que sempre estiveram ausentes. Um devir imaginado que as lança para um futuro melhor e possível para si e para todas as mulheres, mobilizando suas energias e ações no presente.

IHU On-Line – Que desafios estão postos à superação da relação histórica de desigualdade e assimetria de gênero em um campo das Ciências Humanas, como é o caso da teologia?

Neiva Furlin – Após o Vaticano II houve muitos esforços na reconfiguração dos cursos de teologia, os quais se abriram, também, para as lideranças cristãs (mulheres e homens) que buscavam a formação teológica para melhor atuar em atividades pastorais e sociais. Contudo, tais medidas não foram suficientes quando se leva em conta as possibilidades de acesso igualitário às distintas instâncias de ação e de poder. No que se refere à ação da docência feminina nas instituições teológicas, não parece justo que elas precisem empreender mais energias e uma carga de trabalho supra-humano para se legitimarem como sujeitos de saber teológico e garantir a continuidade de sua presença nesse espaço, que ainda parece não se apresentar como um lugar legítimo para o seu sexo. A pesquisa deixa evidente que nas estruturas das instituições católicas continuam vigentes convenções culturais e normativas de gênero de uma hierarquia sexista, que reproduz relações desiguais e demarca o acesso ou não a determinados espaços de poder para as mulheres. Isso porque alguns lugares se tornam inatingíveis ou não inteligíveis para um sujeito de sexo feminino, mesmo que este sujeito esteja em iguais condições de direito, pela sua formação profissional ou pelo capital simbólico acumulado.

Processos de mudanças

Tal realidade mostra que, nessas instituições de ensino, se faz urgente um processo de mudanças, tanto nas estruturas do pensamento como nas práticas organizacionais para que sejam possíveis relações igualitárias de gênero. Esse seria um primeiro desafio e uma política de ação que precisa ser abraçada pelos sujeitos masculinos e femininos, como um projeto coletivo. Além desse desafio, consideramos importante repensar o modo de contratação dos agentes do ensino para a teologia. Levando em conta que hoje o ensino teológico no Brasil já é reconhecido pelo Ministério da Educação e integra a grande Área das Humanidades e Artes, não pareceria interessante se o próprio MEC pressionasse a criação de políticas pautadas por princípios de não discriminação ou de equidade de gênero, nos processos de recrutamento de agentes para a profissão docente? Vale lembrar que, em geral, as instituições católicas são mantidas pelas dioceses ou por congregações religiosas masculinas, por isso a tendência é que estas continuem priorizando a inserção de homens clérigos. A inexistência de concursos nos processos de seleção para professores/as nos departamentos de teologia acaba favorecendo essa realidade. Uma política de cotas poderia ser um caminho, mas isso não resolveria, em si, o problema mais profundo da desigualdade de gênero deste lugar de saber. Talvez uma saída, em curto prazo, fosse ao menos garantir concursos internos, em que os critérios de formação e de profissionalização estivessem acima da condição de sexo e da identidade clerical do sujeito. Contudo, faz-se necessário construir políticas de equidade de gênero, que integrem também o princípio da igualdade, para que se tenha claro que o problema não pode ser resolvido somente com a incorporação de mais mulheres nas instituições acadêmicas de teologia. Antes, faz-se necessário articular os princípios da igualdade e da diferença para que, de fato, chegue-se à dimensão política, na qual as mudanças se tornam possíveis.

Desigualdade de gênero

Nesse sentido, é importante pontuar que os Departamentos ou Faculdades de Teologia não resolvem a questão da desigualdade de gênero simplesmente com a inserção de mulheres, porque o problema é profundamente cultural, embora sua presença, em números mais significativos, até possa ser importante para se efetuarem mudanças socioculturais e políticas, em um espaço onde o religioso ainda exerce poder simbólico na sacralização de certas hierarquias. Talvez pareça ser uma utopia sonhar com a possibilidade de uma inserção significativa de mulheres na docência, e porque não também de homens, que juntos estivessem comprometidos com a construção de novas relações de gênero e, estando dentro dos Departamentos ou Faculdades de Teologia, encontrassem pressupostos que lhes possibilitassem efetuar as mudanças nas estruturas e nas mentalidades dos sujeitos —masculinos e femininos —, estabelecendo novas regras, novas práticas e novos conteúdos e perspectivas epistemológicas na produção do conhecimento.

Assim, parece que um grande desafio está em recriar o espaço da construção do saber teológico, o que requer a consciência de que são necessárias medidas institucionais e teóricas coletivas. Uma Teologia Feminista funcionando como um setor entre outros só tem sentido se influi no todo, senão acaba ajudando a perpetuar a cultura e a prática do não lugar das mulheres na construção do saber teológico.

Outro caminho que, certamente, poderia mudar esse cenário seria as congregações religiosas femininas criarem as suas próprias instituições teológicas. Sem dúvida, tal situação levaria mais mulheres a se profissionalizarem na área da teologia e a ocuparem esse espaço de ação e de produção de saber. Por evidente, isso possibilitaria maior liberdade na produção do pensamento e na construção das propostas curriculares e tornaria a teologia produzida pelas mulheres mais visível, se não mais reconhecida academicamente, mesmo que não estivesse totalmente isenta do controle das instâncias hierárquicas da Igreja Romana. Porém, o paradoxo dessa iniciativa seria uma nova segregação se não houver abertura para a inserção de estudantes e docentes do sexo masculino.

Outra possibilidade que poderia contribuir com a construção de relações igualitárias de gênero, em termos de participação e de produção do saber teológico, seria a criação de cursos de teologia com perspectiva ecumênica (interconfessionais) dentro das universidades públicas ou privadas. Isso desvincularia o saber teológico da estrutura da hierarquia eclesial e masculina. É Utopia?

É um delírio? Parece que essa possibilidade estaria posta nas entrelinhas dos últimos pareceres do Conselho Nacional de Educação (CNE) e Câmara de Ensino Superior (CES) para a Teologia e na minuta em estudo das Diretrizes Curriculares para a Graduação de Teologia. Contudo, isso careceria de uma profunda reflexão.

Enfim, isso tudo pode parecer uma amontoado de ideias soltas, mas são desafios que estão postos para a superação de uma histórica relação de desigualdade e assimetria de gênero no campo do saber teológico. Enquanto essa realidade continua sendo uma utopia, certamente as mulheres precisam continuar aproveitando as oportunidades que surgem para se inserirem na docência e, desde esse lugar hierárquico e masculino, produzirem estratégias políticas para garantir a legitimidade de sua presença, de suas ações e de sua teologia.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Neiva Furlin – Sim, gostaria ainda de enfatizar dois pontos. Primeiro, que o projeto da construção ética de si, como sujeito feminino de saber teológico, não aparece como um projeto puramente individual, mas também voltado para o coletivo das mulheres, que estão inseridas na mesma estrutura acadêmica. Isto é, um “si mesmo para todas as mulheres”, no sentido de Rosi Braidotti, que se articula por afinidades ou pontos nodais que, neste caso, trata-se da consciência de uma história comum de desqualificação do feminino e de discriminação sexista; de ausência histórica nos processos de produção do saber, em um espaço em que o normativo é o masculino; de uma espiritualidade compartilhada no sentido de sentirem-se vocacionadas para uma missão na teologia, do desejo de marcar o universo da teologia por uma alteridade positiva e de um imaginário utópico do devir sujeito feminino de saber teológico com reconhecimento acadêmico, que mobiliza ações no presente na esperança de um futuro melhor.

Segundo, se consideramos uma história de discriminação e de ausência histórica das mulheres no universo do ensino e da produção teológica e que, na atualidade, elas ainda continuam às margens do poder eclesial, pode-se dizer que as práticas de agenciamento que elas produzem, por menor que sejam, tornam-se importantes, porque estabelecem certa autonomia em relação a uma estrutura hierárquica e masculina. Isso nos faz concordar com o pensamento de Ward L Kaiser, que “o ‘revolucionário’ não se encontra só nos grandes processos de transformação social que se concretizam no tempo e no espaço, mas também na produção de novos significados ou nas pequenas mudanças que ocorrem nas microrrelações sociais, que são tecidas no cotidiano da vida, como um modo novo de viver, de se produzir e de se reconhecer sujeito”.

NOTAS

[1] A pesquisa de campo foi realizada no final do ano de 2008 e início de 2009.

[2] Isso porque nas Pontifícias Universidades Católicas existem docentes da área de teologia que ministram disciplinas de cultura religiosa, em diferentes cursos acadêmicos.

[3] Acredita-se que a pessoa que teve contato ou produz com essa perspectiva de conhecimento consegue perceber e problematizar melhor as dinâmicas de gênero que circulam no cotidiano das práticas sociais, e isso se tornou um critério importante, diante da proposta de nossa pesquisa.

[4] Esses dados e outros podem ser encontrados em FULIN, N. Teologia e Gênero: A docência feminina em instituições católicas, Revista Eclesiástica Brasileira, n. 284, p.880-910, out. 2011.

[5] Posterior a esse, não encontramos outro Censo da Educação Superior, segundo o sexo dos/as docentes por áreas de atuação. Os mais recentes apenas registram a docência masculina e feminina de modo mais geral.

[6] Posterior a esse, não encontramos outro Censo da Educação Superior, segundo o sexo dos/as docentes por áreas de atuação. Os mais recentes apenas registram a docência masculina e feminina de modo mais geral.


[7] Denominação dada à pessoa que exerce a principal liderança no interior de uma ordem ou congregação religiosa.

[8] O termo “generizada” é usado pela feminista Londa Schienbinger para se referir aos comportamentos, interesses, ou valores culturais tipicamente masculinos ou femininos, cujas características não são concebidas inatas e nem arbitrárias, mas como realidades construídas por circunstâncias históricas que, por isso mesmo, podem mudar por outras circunstâncias históricas. Ao usar esse mesmo termo, estarei me referindo às mesmas questões assinaladas pela autora.

Fonte: Ihu

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