Entrevista especial com Neiva Furlin: “Uma Teologia Feminista funcionando como um
setor entre outros só tem sentido se influi no todo, senão acaba ajudando a
perpetuar a cultura e a prática do não lugar das mulheres na construção do
saber teológico”, pontua a socióloga.
O ensino superior de Teologia no Brasil “se estruturou como
um ‘não lugar’ para as mulheres, já que para elas o ministério ordenado lhes
foi negado”, diz Neiva Furlin, autora da tese intitulada Relações de Gênero,
Subjetividades e Docência Feminina: Um estudo a partir do universo do Ensino
Superior em Teologia Católica, na entrevista a seguir, concedida por e-mail à
IHU On-Line.
Segundo ela, a pouca participação das mulheres nas
universidades, seja como docentes, seja como discentes, está relacionada com a
origem dos cursos de Teologia, os quais surgiram “em vista da formação de
homens ‘vocacionados’ para o serviço do ministério presbiteral, na hierarquia
eclesial”, os quais “deram legitimidade somente ao sujeito masculino e
celibatário para ações nas instâncias de poder eclesial, tanto em relação à
produção do saber como nas decisões sobre cargos e contratação de agentes do
ensino”.
Neiva Furlin pesquisou como as mulheres “que ingressam o
universo do saber teológico” desde os anos 1960 e 70 no país “se produzem e se
legitimam sujeitos femininos de saber, em um espaço que, ao longo dos séculos,
foi estruturado como um lugar não inteligível para as mulheres”. Na entrevista
a seguir, ela comenta os principais resultados de sua pesquisa, que consiste em
analisar a participação das mulheres nas universidades católicas. Das 71
instituições que ofereciam o curso de Teologia no Brasil até o ano de 2008, 40
delas participaram da pesquisa.
Entre as conclusões do estudo, pontua, “não se pode negar
que a inserção de mulheres na docência, ainda que reduzida, desafia os códigos
convencionais deste universo acadêmico. Ou seja, trata-se de uma presença que
é, ao mesmo tempo, simbólica e política, porque transgride uma convenção social
estabelecida, de um lugar estruturado, historicamente, como não inteligível
para as mulheres, e politicamente elas podem se afirmar como sujeitos femininos
também dotados de capacidade intelectual ou de razão teológica”.
Neiva Furlin é doutora em Sociologia pela Universidade
Federal do Paraná – UFPR, com doutorado sanduíche pelo Centro de
Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades - CEIICH da
Universidade Nacional Autónoma de México - UNAM. Integrou a equipe de
Assessoria Executiva da Conferência dos Religiosos do Brasil durante os anos de
2003-2006, contribuindo na formação de diferentes grupos. Tem experiência na
área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica, Métodos e Técnicas de
Pesquisa, Cultura e Sociedade, Trabalho e Relações de Gênero. É membro do
Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Gênero da UFPR.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as principais temáticas abordadas na
sua tese intitulada Relações de Gênero, Subjetividades e Docência Feminina: Um
estudo a partir do universo do Ensino Superior em Teologia Católica?
Neiva Furlin – Trata-se de um estudo sobre a docência
feminina em instituições católicas de ensino superior. Um primeiro objetivo
desse estudo foi evidenciar os índices da participação masculina e feminina nos
quadros da docência, no ensino da teologia. Isso nos possibilitou objetivar o
mundo social dos sujeitos que atuam no universo do saber teológico.
Contudo, o principal foco da pesquisa foi compreender como
as mulheres que ingressam o universo do saber teológico se produzem e se
legitimam sujeitos femininos de saber, em um espaço que, ao longo dos séculos,
foi estruturado como um lugar não inteligível para as mulheres. Nesse sentido,
buscamos evidenciar como as dinâmicas de poder da lógica simbólica masculina
atravessam os processos de inserção, de subjetivação e de construção da
docência feminina.
O estudo também revela as estratégias políticas que as
docentes entrevistadas constroem no processo do seu devir sujeitos de saber, os
espaços que ocupam, as iniciativas que conseguem inaugurar e até que ponto as
suas práticas produzem ou não novos significados nas relações acadêmicas e na
estrutura das instituições de ensino superior. Acredito que a relevância desse
estudo, além de visibilizar as relações de gênero no universo acadêmico da
teologia e a ação das mulheres no processo de se constituírem sujeitos de
saber/poder, está em trazer à tona um tema pouco estudado no universo da
sociologia e em contribuir com o rol dos estudos feministas sobre ciência e
gênero e carreiras profissionais majoritariamente masculinas.
IHU On-Line – De que maneira a pesquisa foi realizada?
Neiva Furlin – A realização dessa pesquisa passou por
grandes desafios de modo que considero importante relatar sobre as técnicas e a
metodologia assumida para que este estudo fosse possível.
a) Sobre as técnicas de pesquisa adotadas: Para a coleta das
informações e o levantamento dos dados empíricos necessários para atender aos
objetivos da pesquisa exigiu-se uma combinação de técnicas, que incluiu
pesquisa bibliográfica, consulta a páginas eletrônicas das instituições
católicas de ensino teológico, aplicação de questionário, participação
observante em congressos de teologia, análise de programas de ensino e a
realização de entrevistas aprofundadas. Quando procuramos dados sobre
participação de mulheres no ensino superior em teologia, encontramos na página
do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira –
INEP algumas informações mais gerais, que incluíam 93 instituições de teologia
de diferentes confissões religiosas — presbiterianas, luteranas, batistas —
que, até o ano de 2005, tinham seus cursos de graduação em Teologia
credenciados junto ao MEC, reconhecidos ou autorizados. Com esses dados, foi
possível fazer uma comparação entre a teologia e as demais áreas de saber.
Como a pesquisa se referia ao ensino de teologia católica, foi
necessário elaborar um questionário específico que foi enviado a todas as
instituições católicas que ofereciam a graduação em teologia. Para isso,
contamos com a ajuda da CNBB e da Conferência dos Religiosos do Brasil e
tivemos o retorno de 40 questionários, ou seja, 56,3% das instituições
existentes participaram da pesquisa, o que tornou possível estabelecer um
quadro de evidência aproximado acerca da representação feminina e masculina na
docência do ensino superior de teologia. Vale lembrar que nesse período havia
em torno de 71 instituições que ofereciam o curso regular de teologia,
reconhecido ou não pelo MEC [1]. Essa visão geral tornou possível a seleção de
três instituições, nas quais buscamos as interlocutoras da pesquisa, isto é, em
duas universidades e uma faculdade, situadas em diferentes Estados.
"Os dados revelam que este espaço (universidades
católicas) segue sendo hierárquico e com forte tendência da permanência
majoritária do sujeito que é homem e clérigo"
Nesse processo, levamos em consideração as que tinham mais
mulheres nos quadros da docência e que podiam responder aos critérios que
estabelecemos para a investigação, ou seja: docentes com formação teológica,
que ministrassem aulas no curso de graduação em Teologia [2], que tivessem produção
na perspectiva feminista ou de gênero ou que tivessem tido algum contato com as
teorias de gênero e do feminismo [3] durante o processo de formação acadêmica,
que fossem professoras de instituições com o curso de Teologia, autorizado ou
reconhecido pelo MEC. Desse modo, realizamos quatorze entrevistas, por meio das
quais procuramos dar voz às mulheres e, a partir de suas narrativas,
compreender as dinâmicas envolvidas no processo de inserção; visibilizar como
as relações de gênero e de poder se articulam no universo do saber teológico;
tornar explícita a forma como elas se compreendem e se constroem na profissão
da docência, como criam as suas possibilidades de agência em um lugar que, ao
longo da história, não foi pensado por e para elas.
b) Sobre a metodologia assumida: Priorizamos uma abordagem
qualitativa, fundamentada na perspectiva hermenêutica, que permitiu a relação
intersubjetiva entre a pesquisadora e as docentes no processo da produção do
conhecimento. Essa perspectiva nos faz tomar consciência de que o resultado
deste estudo é apenas uma interpretação entre tantas outras possibilidades que
poderiam ser assumidas desde outros lugares teóricos ou hermenêuticos.
Integrada a proposta hermenêutica, para o tratamento dos
elementos históricos, assumimos a metodologia genealógica, inspirada nos
estudos de Michel Foucault e de Teresa de Lauretis, uma vez que não se
pretendia interpretar e compreender a história de maneira linear. Por meio da
genealogia, buscamos compreender as condições nas quais os processos de
subjetivação feminina ocorreram no universo do saber teológico. Assim, de um
lado, tomamos os discursos teológicos tradicionais nos aspectos que se remetiam
às representações e imagens simbólicas de gênero, para perceber os seus efeitos
na constituição da subjetividade feminina. De outro lado, as narrativas das
docentes, a partir da singularidade dos acontecimentos do cotidiano da
profissão e das relações com seus pares, para compreender a ação e os
significados contidos nas memórias de suas experiências situadas, buscando
perceber como elas se reinventam ou ressignificam a subjetividade feminina,
produzindo-se sujeitos de saber ou de razão teológica. Nesse processo
analítico, a categoria de gênero, segundo as concepções de Joan Scott e Tereza
de Lauretis, foi um instrumental teórico necessário para a desnaturalização e a
problematização dos discursos.
Contudo, outras categorias teórico-analíticas enriqueceram a
compreensão sobre as relações de poder e de gênero, inscritas nas práticas e
nas memórias vividas e narradas pelas docentes, tais como: o conceito de poder
como uma relação produtiva, segundo a teoria de Michel Foucault e Judith
Butler; a noção de subjetividade ética, pensada como processo de resistência
política, de reflexividade e de produção de atos de liberdade, segundo as
concepções de Foucault; a noção de subjetividade nômade, que permite pensar os
deslocamentos subjetivos que ocorrem por meio de experiências incorporadas na
história presente, mas sempre em processo de devir, no sentido de Rosi
Braidotti; a Diferença Sexual tomada como um projeto político de afirmação
positiva do feminino, segundo a teoria de Braidotti; a noção de agência como
capacidade de ação movida pelo desejo, segundo a compreensão de Butler e
Braidotti; e a categoria de “Mulher”, como uma categoria política, no sentido
coletivo e agregador dos múltiplos marcadores sociais de identidade. Isto é,
como uma posição política do sujeito, tomada como resultado de uma experiência
histórica, que se distancia de um sentido puramente essencialista.
IHU On-Line - Como as mulheres se produzem sujeitos
femininos de saber teológico, num lugar marcado por uma lógica de gênero da
ordem simbólica masculina?
Neiva Furlin – É de nosso conhecimento que as instituições
de ensino em teologia, como parte do campo eclesial, são estruturas de
saber/poder hierárquicas, masculinas e celibatárias, que se legitimaram, ao
longo da história, com o respaldo de um poder simbólico e sagrado. Desse modo,
o tornar-se sujeito feminino de saber teológico, nesse lugar, parece que só
pode ser compreendido dentro de um campo de luta cultural, epistêmica e
simbólica.
Assim, para compreender como as mulheres se produzem
sujeitos femininos de saber, levamos em consideração as experiências vividas
que nos foram narradas pelas docentes entrevistadas, sobre as suas trajetórias,
que vai desde a motivação pela formação teológica, que é uma das ferramentas
que as qualifica para a inserção nesse campo de saber, até as relações de poder
que são estabelecidas no processo de formação, de inserção e de permanência nas
instituições de ensino teológico. A pesquisa mostrou que as mulheres
entrevistadas têm assumido uma posição ética de si mesmas, no sentido
foucaultiano, que ocorre por meio da resistência à lógica do poder hierárquico
e masculino, de processos de reflexividade e de atos de liberdade ou autonomia.
Trata-se de um agenciamento de si que ocorre no cotidiano da experiência, mas
sempre em devir, que é perpassado por relações de tensões com os discursos e as
práticas de uma estrutura masculina e celibatária. Uma estrutura que não produz
só limites para as mulheres, mas também possibilidades para iniciativas
autônomas e criativas que emergem desde as margens do poder central. Nesse
processo de agenciamento ético, em que as docentes reivindicam o direito de
ensinar e de produzir saber e o reconhecimento de seu potencial, elas não só
enfatizam o critério da formação profissional adquirida, mas também as
experiências cotidianas, de um sujeito que é “mulher” e que tem uma
contribuição a dar ao universo da teologia. De modo que existe uma
reivindicação pelo reconhecimento positivo da alteridade e por igualdade de
direitos.
Estratégia política
de afirmação positiva do feminino
E, concretamente, como isso aparece? As docentes se
apropriam do poder de um discurso recorrente nesse meio e a todo o tempo o
reiteram. Trata-se do discurso de que elas “fazem a diferença”, pelas
experiências que vêm do cotidiano da vida das mulheres. Desse modo, as
experiências, que no discurso tradicional da teologia as desqualificavam para
as atividades intelectuais, agora funcionam como uma estratégia política de
afirmação positiva do feminino, porque são legitimadas pelas ações situadas que
elas protagonizam no meio acadêmico. Por outro lado, as docentes também usam do
critério da qualificação profissional para reivindicar o direito de igualdade e
por uma justa distribuição de poder, no interior da instituição teológica.
Assim, elas negociam ou ocupam espaços de liderança, assumem disciplinas de sua
área de formação, aproveitam brechas ou concessões advindas de méritos e das
relações que estabelecem no meio acadêmico. Por meio dessas experiências
situadas, as docentes se reafirmam sujeitos capazes de ação racional e de
exercer liderança e, politicamente, acabam produzindo um significado positivo
para a diferença sexual, que legitima o seu devir sujeito feminino de saber
teológico. Isso, pensando a partir das concepções de Rosi Braidotti, funciona
como contramemória a uma visão negativa, essencializada e reducionista de
feminino, que havia sido produzida e reproduzida pelas representações de gênero
do discurso da teologia masculina e tradicional.
Contudo, foi possível perceber que produzirem-se sujeitos
femininos de saber teológico é um processo que ocorre em meio à contradição de
essas docentes estarem, ao mesmo tempo, dentro e fora da lógica de gênero do
sistema simbólico masculino. Ou seja, a sua subjetividade é perpassada por
processos de assujeitamento, tanto pelas convenções culturais, sociais e
religiosas internalizadas durante a socialização familiar e eclesial como pela
relativa submissão às normas de gênero que operam no universo do saber
teológico e que, sutilmente, requer das mulheres um esforço muito maior para se
legitimarem sujeitos da docência, em relação do que é exigido aos seus pares
masculinos. Mas, ao mesmo tempo, elas se constituem por processos de
resistência, na medida em que as suas ações, movidas pelo desejo do “vir a
ser”, se contrapõem e se afastam de um modelo de subjetividade feminina, ditado
pelas convenções da cultura patriarcal e da moral católica.
Sujeitos femininos
Podemos dizer que as docentes se constituem sujeitos
femininos de saber teológico pelas ações que elas mobilizam, na consciência de
que esse lugar também é um direito seu, porque possuem uma qualificação
profissional que lhes garante a função de ensinar e produzir saber.
Esse constituir-se também tem a ver com os novos
significados que elas produzem para a alteridade, e isso não resulta somente
das práticas acadêmicas que elas assumem e inauguram ou dos discursos que elas
produzem ou ressignificam. Ou seja, passa ainda pela autorrepresentação de si,
quando ao contarem-se, elas constroem narrativas reflexivas, em que selecionam
e interpretam, de forma coerente e crítica, as suas ações e experiências, na
relação com as convenções normativas, com os seus pares masculinos e com as
práticas das instituições onde atuam. Tais narrativas aparecem como memórias de
experiências vividas, recordadas e compartilhadas, que ocorrem no movimento da
vida, encarnadas em um contexto situado, perpassado por dispositivos de poder.
Essas narrativas reflexivas, agora rearticuladas em situação de entrevista,
pareciam produzir um novo significado, em termos de produção e objetivação de
si e de sua ação. Em outras palavras, elas se objetivam sujeitos femininos de
saber, cuja alteridade passa a ser positiva, porque se sentem mulheres capazes
de ação, em um lugar simbólico e masculino, até há pouco tempo, considerado não
inteligível para elas. Desse modo, ao se afastarem do modelo de subjetividade
do sistema simbólico da moral católica tradicional, pode-se considerar que há
processos de desconstrução e desnaturalização dos significados da cultura
patriarcal, que elas mesmas haviam assimilado. Com isso, elas produzem
deslocamentos subjetivos, ou uma produção ética de si, que se constitui pela
experiência vivida, em contextos situados da história presente. Porém, é um
processo nunca concluído, porque a luta contra os efeitos do poder é contínua.
Trata-se de uma subjetividade nômade, segundo as concepções de Rosi Braidotti,
que está sempre em devir e que se reafirma pela estratégia política da
positivação da diferença sexual.
"Outro caminho que, certamente, poderia mudar esse
cenário seria as congregações religiosas femininas criarem as suas próprias
instituições teológicas"
IHU On-Line – Como as mulheres foram conquistando espaço na
docência em Teologia?
Neiva Furlin – O curso de teologia no Brasil, nas suas
origens, surgiu em vista da formação de homens “vocacionados” para o serviço do
ministério presbiteral, na hierarquia eclesial.
Portanto, esse espaço de saber se estruturou como um “não
lugar” para as mulheres, já que para elas o ministério ordenado lhes foi
negado. Assim, ao longo da história essas instituições foram marcadas por
formas de organização androcêntricas, que deram legitimidade somente ao sujeito
masculino e celibatário para ações nas instâncias de poder eclesial, tanto em
relação à produção do saber como nas decisões sobre cargos e contratação de
agentes do ensino. A inserção de mulheres no ensino teológico se tornou possível
a partir de um conjunto de transformações socioculturais que ocorreram na
década de 1960 e início dos anos 1970. Um contexto que se tornou favorável à
ampliação da escolarização feminina e, consequentemente, ao crescente processo
de inserção de mulheres em diferentes áreas profissionais e acadêmicas que,
também, foi sendo impulsionado pelas mobilizações feministas que reivindicavam
a igualdade de direitos e de oportunidades. Essas transformações influenciaram
o universo eclesial, de modo que, na América Latina, os documentos finais das
Conferências de Medellin (1968) e de Puebla (1979) mostraram-se sensíveis a
essa nova realidade conjuntural, isso porque em suas conclusões acenaram sobre
a importância da luta pela dignidade das mulheres e da necessidade da
valorização de sua participação nas esferas da sociedade e em algumas
instâncias eclesiais.
Inserção das mulheres
Assim, nos anos de 1980, havia todo um discurso de
democratização do poder na estrutura eclesial, trazida pela Teologia da
Libertação, de valorização discursiva do feminino e da presença das mulheres
nas pastorais e na liderança nas comunidades eclesiais de base. Pode-se dizer
que existia uma conexão e uma interlocução com o momento histórico e com o
discurso temporal, político e cultural da sociedade. No entanto, essa
conjuntura favorável, no contexto eclesial, esteve permeada de contradições e
ambiguidades, porque as mulheres não tiveram acesso às instâncias de decisão e,
muitas vezes, a sua presença foi mais simbólica do que efetiva, em termos de
mudanças nas estruturas. Entretanto, foram “brechas” que se abriram para as
mulheres e favoreceram a sua inserção nas universidades como estudantes e
também como professoras, em um lugar em que elas estiveram, por muito tempo,
ausentes.
Nessa conjuntura, nossa pesquisa aponta que as próprias
mulheres, ao perceberem as “brechas” abertas e ao tomarem consciência do seu
protagonismo como sujeitos históricos, e em sintonia com as diversas
mobilizações feministas que reivindicavam direitos igualitários, foram
construindo os seus espaços de ação dentro da estrutura eclesial, ainda que
limitados.
Contudo, constatamos que são poucas as que conseguem um
lugar no ensino na teologia e essa “conquista”, para além de uma conjuntura
eclesial favorável, também tem a ver com as estratégias que elas produziram
para que essa inserção fosse possível, tais como: a qualificação profissional,
o estabelecimento de redes de contato, entre outras.
Por outro lado, os dados quantitativos da pesquisa
evidenciam que, em geral, a presença de mulheres na docência e em disciplinas
importantes dentro da grade curricular do curso de teologia, ainda que
reduzida, é mais significativa quando esta instituição é uma Universidade
Católica ou uma Faculdade que tem como mantenedora diversas congregações
religiosas.
Já quando se trata de um Instituto Diocesano de Teologia, a
presença feminina na docência é praticamente inexistente [4]. Também, se
consideramos os dados do censo de 2005 [5] realizado pelo INEP/MEC sobre a
docência no ensino superior, constatamos que na grande área das humanidades e
artes, que é onde se situa a teologia [6], esta é a que apresenta o índice mais
alto de assimetria entre a participação masculina e feminina. Essa assimetria
se amplia quando direcionamos o nosso olhar, especificamente, para a teologia
católica, que foi o recorte de nossa pesquisa. Enfim, os dados revelam que este
espaço segue sendo hierárquico e com forte tendência da permanência majoritária
do sujeito que é homem e clérigo. Por outro lado, não se pode negar que a
inserção de mulheres na docência, ainda que reduzida, desafia os códigos
convencionais deste universo acadêmico. Ou seja, trata-se de uma presença que
é, ao mesmo tempo, simbólica e política, porque transgride uma convenção social
estabelecida, de um lugar estruturado, historicamente, como não inteligível
para as mulheres, e politicamente elas podem se afirmar como sujeitos femininos
também dotados de capacidade intelectual ou de razão teológica.
IHU On-Line – Que relações de poder na cultura teológica do
catolicismo são capazes de explicar a maior ausência das mulheres neste espaço
acadêmico de saber?
Neiva Furlin – Partindo de uma concepção foucaultiana de que
o poder se inscreve nas práticas e nas relações cotidianas e se efetua e se
exerce em diferentes direções e de maneira múltipla, inclusive por meio da
linguagem (discursos, representações...), podemos considerar que a presença
reduzida de mulheres ou mesmo a sua ausência em muitos Institutos ou Faculdades
de Teologia, pode ser explicada a partir dos efeitos do poder inscritos em
distintas práticas discursivas e institucionais. Uma dessas explicações tem a
ver com o discurso teológico tradicional que deu fundamento à doutrina oficial
da Igreja, em relação às mulheres, e que circulou nas esferas eclesiais até
pouco tempo atrás.
Porém, vale lembrar que a teologia é um discurso histórico,
milenar e complexo, que passou por uma série de desdobramentos, por conta de
tensões culturais e históricas. Por isso, a trajetória de sua constituição não
é uniforme, homogênea, nem linear, porque se inscreve dentro de uma série de
percalços, crises e conflitos internos e externos.
Contudo, na sua história milenar, teve a influência das
explicações dicotômicas de Aristóteles e da clássica oposição puro/impuro da
tradição judaico-cristã, que sustentava a existência “natural” de uma
hierarquia desigual entre o universo masculino e feminino. Tais concepções
foram definindo normas, valores, comportamentos e papéis distintos que deveriam
ser exercidos pelas mulheres e homens no universo religioso, familiar e,
inclusive, nas esferas da sociedade. Essas representações de gênero foram
produzidas a partir de uma leitura biologizada e essencializada dos corpos, que
enaltecia a superioridade masculina e justificava a inferioridade das mulheres
para as atividades intelectuais, cujas ideias influenciaram o pensamento
filosófico e teológico de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, dois
personagens que se tornaram grandes inspiradores da teologia na Idade Média e
Moderna.
Esse legado discursivo tem exercido poder dentro das
instituições teológicas, até recentemente, por se reproduzir culturalmente nas
práticas e no imaginário dos sujeitos hegemônicos deste campo de saber e que
justificava o afastamento das mulheres de determinadas instâncias de
poder/saber.
Resquício de um imaginário construído
Nossa pesquisa evidenciou que os resquícios desse imaginário
continuam construindo barreiras de gênero que limitam a inserção e a ação das
mulheres no ensino e na produção do conhecimento, mesmo diante de suas
conquistas contemporâneas nos diferentes espaços da sociedade. Outra explicação
se deve ao fato de que as instituições teológicas, apesar de terem aberto
janelas para a atuação de mulheres e leigos, em geral, são mantidas pelas
dioceses, ou pelas congregações religiosas masculinas, nas quais a principal
instância de poder, mesmo estando na mão de um diretor ou coordenador, em
geral, clérigo, tem a interferência direta de um bispo ou de um provincial [7],
cuja liderança exerce influência nos processos organizacionais das instituições
e no contrato dos agentes do ensino que, de certa maneira, tende a garantir uma
ordem simbólica, em termos de hierarquia de poder e de gênero.
Práticas sexistas
Nesse contexto, a pesquisa realizada mostrou que as poucas
mulheres que são inseridas nos quadros da docência têm relação com alguns
aspectos, tais como a falta de professores masculinos com formação em
determinadas áreas, a influência que essa mulher poderá ter ou ao status que
dará à instituição, quando é portadora de um capital cultural reconhecido e
valorizado no universo teológico ou, ainda, das energias investidas pelas
próprias mulheres em suas estratégias políticas para se fazer conhecidas no seu
potencial ou qualificação profissional.
Contudo, ainda se constatam práticas sexistas, isso porque
quando um homem e uma mulher possuem o mesmo grau de qualificação, a
preferência é dada ao sujeito que é portador do capital simbólico mais valorizado
nesse lugar de saber, que é o fato de ser do sexo masculino, de ter uma
identidade clerical e, de preferência, ter cursado o mestrado ou o doutorado em
Roma, cujo lugar geográfico, para o universo eclesial, vem carregado de
significado simbólico. Vale lembrar que esses mesmos critérios também definem
posições e lugares de reconhecimento e de poder nas relações intragênero. Desse
modo, podemos dizer que, devido à finalidade histórica da formação teológica e
das práticas culturais dessas instituições, elas ainda se caracterizaram como
um reduto majoritariamente masculino e celibatário.
A teologia e outras áreas do saber
Mas, então, o que caracteriza ou o que diferencia a teologia
de outras áreas de saber como, por exemplo, das engenharias e da física, que
ainda são áreas majoritariamente masculinas?
Parece-nos que a grande diferença se deve ao fato de que a
teologia justifica as suas práticas por meio de um poder discursivo, simbólico
e cultural, fundado no plano do sagrado. E, por causa disso, os processos de
mudanças são mais demorados nesta área e, ainda, o famoso teto de vidro se
interpõe para as mulheres já no final da graduação em teologia, uma vez que
elas não podem ser ordenadas e poucas são as perspectivas profissionais em
termos de continuidade dos estudos e de inserção no campo acadêmico. Isso nos
faz afirmar que existe uma cultura católica que se reproduz nas práticas
eclesiais e que tem uma relação direta com a grande ausência de mulheres nesse
universo de saber. Nesse sentido, os dados quantitativos coletados junto às
instituições católicas de ensino teológico mostram que, das mulheres que
acessam a formação teológica, a maioria chega até o nível da especialização.
Isso parece apontar a existência de uma divisão sexual de
trabalho, em que a busca pela formação teológica para o universo feminino se
volta mais para a prática pastoral, enquanto aos homens lhes dá direito a um
lugar de poder na hierarquia eclesial, em que o grau de valorização e de
reconhecimento simbólico é superior.
Outra questão é que nesse contexto em que as práticas
institucionais priorizam a formação para o homem clérigo, as mulheres parecem
encontrar pouco ou nenhum incentivo, no que diz respeito à concessão de bolsas,
para continuarem seus estudos nos níveis de mestrado e de doutorado e, somado a
isso, a falta de perspectiva de ter uma carreira profissional garantida no
futuro, no universo acadêmico e eclesial. Evidentemente, acenamos, aqui,
algumas das múltiplas dinâmicas de poder inscritas na reprodução da cultura católica,
que podem explicar o fenômeno da presença reduzida ou da ausência de mulheres
nos quadros da docência em teologia. Trata-se de um campo complexo e
diversificado que pode, ainda, ser compreendido a partir de outros olhares ou
perspectivas teóricas.
IHU On-Line – E quando se trata dos processos de inserção e
de construção da docência feminina, que dinâmicas de poder e de gênero estão em
jogo, de modo geral?
Neiva Furlin – Se existem dinâmicas de poder que limitam a
presença das mulheres na docência, como acabamos de falar, de certa maneira,
elas também se conectam com os processos de inserção. Isso porque, na
perspectiva teórica de Michel Foucault e de Judith Butler, é no interior do
próprio jogo ou das dinâmicas de poder que produzem os limites, que se
encontram as possibilidades de potência, de criatividade ou até mesmo de
transgressão. Potência entendida como capacidade de ação mobilizada pelo desejo
que, nesse caso, trata-se do desejo de ser sujeito da prática docente e da
produção de saber teológico, em um contexto, historicamente, regido pela norma
masculina e celibatária. De acordo com as narrativas das docentes, a sua
inserção no ensino não ocorreu por meio de concurso, com exceção em uma
situação. Os espaços foram sendo percebidos ou concedidos, diante da
necessidade ou substituição de professores/as. Contudo, houve condições que
foram sendo produzidas por elas e que se tornaram favoráveis, ou seja, muitas
delas eram próximas e conhecidas de professores que tinham o poder de recrutar
os agentes de ensino, seja pelo seu desempenho acadêmico, seja pela sua
formação ou mesmo por compartilhar com eles a mesma linha de pensamento
teológico. Por outro lado, os conteúdos das narrativas das docentes deixam
evidente a diversidade de dinâmicas de poder que operam em diferentes espaços
institucionais, quando está em jogo a contratação de docentes. Alguns
processos, ainda, são demarcados por conteúdos de gênero e por práticas
culturais e institucionais que garantem a hegemonia masculina e, por isso, a
condição de sexo e a identidade clerical ainda determinam a possibilidade de
inserção, sobrepondo-se ao nível de formação ou competência profissional.
Outras instituições valorizam mais a posição profissional do/a docente a ser
contratado/a.
A inexistência de concursos nos Departamentos de Teologia,
para a seleção de professores acaba produzindo critérios seletivos, nem sempre
justos, embora tidos como legítimos dentro da dinâmica de uma cultura
androcêntrica e hierárquica. Outra questão analisada em nossa pesquisa foi das
estratégias políticas que as docentes produzem para conseguir lecionar as
disciplinas de sua área de formação. Tais processos nem sempre são fáceis. Em
geral, essa “conquista” resulta de uma longa espera ou da produção de
estratégias políticas, nas quais as docentes acionam a qualificação
profissional, como um critério de direito, sobretudo, quando essas disciplinas
são consideradas centrais na grade curricular do curso. Essas posturas
evidenciam que estar inseridas em um universo atravessado por dinâmicas e
práticas institucionais de poder, que são generezidas [8] no masculino, exige
das mulheres um esforço maior na construção da legitimidade da docência
feminina ou, em outras palavras, no processo de “se tornarem” sujeitos
femininos de poder/saber teológico. Enquanto para o sujeito masculino o espaço
e a posição de poder aparece como algo que lhes é legítimo e que se justifica
no plano simbólico e do sagrado.
Negociações
A lógica de gênero da ordem simbólica masculina faz com que
as mulheres precisem estar sempre negociando seus espaços, afirmando-se e
visibilizando-se como sujeitos capazes de liderança e de ação racional. E,
nesse sentido, o desejo de se constituírem sujeitos femininos de saber
teológico faz com que elas se adéquem e correspondam às convenções normativas
de gênero e de poder que impõem condições desiguais para homens e mulheres.
Porém, com essa postura, paradoxalmente, elas produzem novos significados de
gênero na produção de si. De modo que existe a reivindicação pelo reconhecimento
de uma identidade feminina que é positiva, que não está isenta de poder, porque
há uma disputa por recursos simbólicos e posições sociais reconhecidas dentro
do universo teológico. Assim, é nessa lógica que se pode compreender o esforço
que elas fazem, em condições desiguais, para exercer de forma eficiente e
produtiva a liderança que assumem, e para manter um bom nível de produção
acadêmica, seja de artigos publicados, seja de orientações de trabalhos de
conclusão de curso.
IHU On-Line – Como você explica a constituição “ética de si”
no processo de devir sujeitos femininos de saber, em uma instituição que foi
estruturada dentro dos padrões normativos masculinos?
Neiva Furlin – Creio que esta questão nos remete ao que
aprofundamos em uma das primeiras perguntas, quando falamos sobre o
constituir-se sujeito feminino de saber.
Contudo, nos parece importante situar isso também do ponto
de vista teórico. Segundo Michel Foucault, já no final de sua vida, a
constituição ética de si é pensada como a possibilidade do sujeito que ocorre
por meio da resistência aos poderes discursivos e disciplinares. Tem a ver com
a ação de um sujeito que decide sobre suas condutas e escolhas, como uma
postura de resistência crítica aos códigos normativos ou ao poder que o produz.
Nessa visão, a “ética de si” se constitui em uma ação política, porque abre um
campo de possibilidades na arte de resistir e de produzir-se, na relação com as
dinâmicas dos poderes. É um ato de produzir-se sujeito, que se realiza por meio
de práticas de resistência, de liberdade e de reflexividade. Trata-se de uma
relação interativa e crítica que enfraquece os limites e as fronteiras
estabelecidas pelos poderes normativos.
A ética em si e a
resistência a um modelo de femino
Essa posição de uma ética de si foi possível verificar nas
memórias das experiências vividas que foram relatadas pelas docentes, uma vez
que a todo tempo elas buscam resistir a um modelo de feminino do sistema
simbólico masculino, propondo um simbólico alternativo, o qual se reafirma por
meio das práticas acadêmicas que elas realizam no universo do saber teológico.
De modo que essa ética de si é parte do projeto de afirmação positiva da
diferença sexual, que valoriza a experiência corporal vivida pelas mulheres,
rejeitando a alteridade produzida por um pensamento abstrato e desencarnado. Ou
seja, o fato das docentes resistirem à imagem de um sujeito feminino
desqualificado e se reafirmarem como sujeito “Mulher” que tem uma ação concreta
e situada, um sujeito que pode agir, falar, pensar e produzir teologia crítica
é, sem dúvida, uma produção ética de si ou uma reinvenção de si, de um novo
modo de viver e de sentir-se sujeito feminino, dentro das instituições
católicas de teologia que seguem os padrões normativos masculinos. E esse processo,
segundo a nossa pesquisa, se inicia desde o ingresso na formação acadêmica em
teologia e perpassa toda a trajetória que elas fazem para constituírem-se
sujeitos femininos de saber teológico que, ao mesmo tempo, se concretiza no
presente, permanece sempre como devir.
IHU On-Line – As docentes têm conseguido inaugurar novas
práticas dentro do universo acadêmico da teologia? Até que ponto essas ações
interferem ou não na organização ou na mudança das estruturas das instituições
católicas?
Neiva Furlin – Em parte pode-se dizer que as mulheres, como
sujeitos reflexivos, têm conseguido inaugurar algumas práticas que, de certa
maneira, objetivam mudanças nas estruturas do pensamento teológico ou até mesmo
na produção de novas relações de gênero no universo das instituições católicas.
Contudo, essas práticas têm gerado tensões, sobretudo quando
se relacionam diretamente com as perspectivas dos estudos de gênero e da teoria
feminista. Não vamos abordar, aqui, as estratégias que foram sendo produzidas
pelas docentes para a concretização dessas práticas, nem os detalhes das
tensões que foram apreendidos em nossa pesquisa, mas apenas nomeamos essas
ações e a percepção dos efeitos que elas têm produzido. Definimos essas novas
ações de práticas inovadoras, no sentido proposto pela filósofa francesa Júlia
Kristeva, entendida como novas possibilidades que surgem e que até então eram
excluídas em um determinado contexto social. E, segundo a filósofa María Luisa
Femenías, as práticas inovadoras podem, eventualmente, normalizar-se como novas
formas discursivas ou modificações que renovam as práticas sociais e culturais.
"As mulheres entrevistadas têm assumido uma posição
ética de si mesmas, no sentido foucaultiano, que ocorre por meio da resistência
à lógica do poder hierárquico e masculino"
Conquistas
No universo acadêmico da teologia católica, pode-se dizer
que são práticas inovadoras: a presença de mulheres nas conferências e mesas de
eventos e congressos teológicos; o espaço conquistado para a organização de
mesas e grupos temáticos de trabalho acerca da Teologia Feminista ou de gênero;
a luta pelo uso de uma linguagem inclusiva; a inserção de referências de
autoras feministas nas disciplinas que as docentes ministram e a inclusão de
novas disciplinas, entre essas: a de Teologia Feminista, como disciplina
obrigatória para a graduação em uma das instituições, e a disciplina de
Teologia e Gênero, como optativa para curso de pós-graduação em duas
universidades. Tais disciplinas permitem que os/as discentes acessem novos
conteúdos ou discursos produzidos por outras perspectivas e podem ser
importantes para despertar um olhar crítico sobre os conteúdos de gênero da
teologia tradicional. Essa ação pode produzir efeitos no processo de
desconstrução de um imaginário de gênero e, até mesmo, levar algumas das futuras
lideranças masculinas da Igreja a pensar de um modo diferente, comprometendo-se
com a construção de novas relações de gênero, como é o objetivo dessas
disciplinas. Contudo, isso é um nada diante do grande universo das instituições
teológicas, que nem sequer tocam nesses temas e continuam reproduzindo
conceitos e representações de um discurso que reforça o simbólico masculino
como norma.
A teologia produzida com a mediação das categorias dos
estudos de gênero e da teoria feminista, conhecida como Teologia Feminista, se
evidencia como outra prática inovadora que, na visão das docentes, tem sido a
maior contribuição que elas deram ao universo acadêmico da teologia. Essa
teologia pode ser considerada alternativa em relação à tradicional, pelos novos
significados que ela produz no processo de reinvenção da subjetividade
feminina, sobretudo, para o conjunto das mulheres que acessam a este saber.
Entretanto, essas novas práticas não parecem ser
incorporadas nas estruturas acadêmicas e tampouco assumidas pelos seus pares.
Elas só existem e funcionam pelo exercício do poder de ação das docentes,
enquanto elas estão inseridas neste lugar de saber. Por mais inovadoras que
possam ser, pela contribuição que trazem para a teologia, elas produzem pouco
ou nenhum efeito na ordem institucional e não provocam mudanças estruturais. Os
efeitos mais significativos parecem ocorrer na relação docente/discente e na
relação do “si mesmo para todas as mulheres”. Desse modo, as suas práticas
podem ser consideradas como parte de um projeto político de ressignificação do
sistema simbólico de gênero, em favor de uma afirmação positiva da identidade
feminina e da emergência do sujeito “mulher”, que também é dotado de capacidade
para produzir saberes. São práticas que ocorrem em um tecido social que limita
e, ao mesmo tempo, cria as possibilidades de ação, inscrevendo novos
significados na lógica do campo de saber teológico. No entanto, as
possibilidades de ação, nessa estrutura limitadora, são potencializadas pelas
próprias mulheres como parte de uma missão pela qual se sentem vocacionadas e
pelo desejo por devir sujeito feminino de saber, em um lugar em que sempre
estiveram ausentes. Um devir imaginado que as lança para um futuro melhor e
possível para si e para todas as mulheres, mobilizando suas energias e ações no
presente.
IHU On-Line – Que desafios estão postos à superação da
relação histórica de desigualdade e assimetria de gênero em um campo das
Ciências Humanas, como é o caso da teologia?
Neiva Furlin – Após o Vaticano II houve muitos esforços na
reconfiguração dos cursos de teologia, os quais se abriram, também, para as
lideranças cristãs (mulheres e homens) que buscavam a formação teológica para
melhor atuar em atividades pastorais e sociais. Contudo, tais medidas não foram
suficientes quando se leva em conta as possibilidades de acesso igualitário às
distintas instâncias de ação e de poder. No que se refere à ação da docência
feminina nas instituições teológicas, não parece justo que elas precisem
empreender mais energias e uma carga de trabalho supra-humano para se
legitimarem como sujeitos de saber teológico e garantir a continuidade de sua
presença nesse espaço, que ainda parece não se apresentar como um lugar
legítimo para o seu sexo. A pesquisa deixa evidente que nas estruturas das
instituições católicas continuam vigentes convenções culturais e normativas de
gênero de uma hierarquia sexista, que reproduz relações desiguais e demarca o
acesso ou não a determinados espaços de poder para as mulheres. Isso porque
alguns lugares se tornam inatingíveis ou não inteligíveis para um sujeito de
sexo feminino, mesmo que este sujeito esteja em iguais condições de direito,
pela sua formação profissional ou pelo capital simbólico acumulado.
Processos de mudanças
Tal realidade mostra que, nessas instituições de ensino, se
faz urgente um processo de mudanças, tanto nas estruturas do pensamento como
nas práticas organizacionais para que sejam possíveis relações igualitárias de
gênero. Esse seria um primeiro desafio e uma política de ação que precisa ser
abraçada pelos sujeitos masculinos e femininos, como um projeto coletivo. Além
desse desafio, consideramos importante repensar o modo de contratação dos
agentes do ensino para a teologia. Levando em conta que hoje o ensino teológico
no Brasil já é reconhecido pelo Ministério da Educação e integra a grande Área
das Humanidades e Artes, não pareceria interessante se o próprio MEC
pressionasse a criação de políticas pautadas por princípios de não
discriminação ou de equidade de gênero, nos processos de recrutamento de
agentes para a profissão docente? Vale lembrar que, em geral, as instituições
católicas são mantidas pelas dioceses ou por congregações religiosas
masculinas, por isso a tendência é que estas continuem priorizando a inserção
de homens clérigos. A inexistência de concursos nos processos de seleção para
professores/as nos departamentos de teologia acaba favorecendo essa realidade.
Uma política de cotas poderia ser um caminho, mas isso não resolveria, em si, o
problema mais profundo da desigualdade de gênero deste lugar de saber. Talvez
uma saída, em curto prazo, fosse ao menos garantir concursos internos, em que
os critérios de formação e de profissionalização estivessem acima da condição
de sexo e da identidade clerical do sujeito. Contudo, faz-se necessário
construir políticas de equidade de gênero, que integrem também o princípio da
igualdade, para que se tenha claro que o problema não pode ser resolvido
somente com a incorporação de mais mulheres nas instituições acadêmicas de teologia.
Antes, faz-se necessário articular os princípios da igualdade e da diferença
para que, de fato, chegue-se à dimensão política, na qual as mudanças se tornam
possíveis.
Desigualdade de
gênero
Nesse sentido, é importante pontuar que os Departamentos ou
Faculdades de Teologia não resolvem a questão da desigualdade de gênero
simplesmente com a inserção de mulheres, porque o problema é profundamente
cultural, embora sua presença, em números mais significativos, até possa ser
importante para se efetuarem mudanças socioculturais e políticas, em um espaço
onde o religioso ainda exerce poder simbólico na sacralização de certas
hierarquias. Talvez pareça ser uma utopia sonhar com a possibilidade de uma
inserção significativa de mulheres na docência, e porque não também de homens,
que juntos estivessem comprometidos com a construção de novas relações de
gênero e, estando dentro dos Departamentos ou Faculdades de Teologia,
encontrassem pressupostos que lhes possibilitassem efetuar as mudanças nas
estruturas e nas mentalidades dos sujeitos —masculinos e femininos —,
estabelecendo novas regras, novas práticas e novos conteúdos e perspectivas
epistemológicas na produção do conhecimento.
Assim, parece que um grande desafio está em recriar o espaço
da construção do saber teológico, o que requer a consciência de que são
necessárias medidas institucionais e teóricas coletivas. Uma Teologia Feminista
funcionando como um setor entre outros só tem sentido se influi no todo, senão
acaba ajudando a perpetuar a cultura e a prática do não lugar das mulheres na
construção do saber teológico.
Outro caminho que, certamente, poderia mudar esse cenário
seria as congregações religiosas femininas criarem as suas próprias
instituições teológicas. Sem dúvida, tal situação levaria mais mulheres a se
profissionalizarem na área da teologia e a ocuparem esse espaço de ação e de
produção de saber. Por evidente, isso possibilitaria maior liberdade na
produção do pensamento e na construção das propostas curriculares e tornaria a
teologia produzida pelas mulheres mais visível, se não mais reconhecida
academicamente, mesmo que não estivesse totalmente isenta do controle das
instâncias hierárquicas da Igreja Romana. Porém, o paradoxo dessa iniciativa
seria uma nova segregação se não houver abertura para a inserção de estudantes
e docentes do sexo masculino.
Outra possibilidade que poderia contribuir com a construção
de relações igualitárias de gênero, em termos de participação e de produção do
saber teológico, seria a criação de cursos de teologia com perspectiva
ecumênica (interconfessionais) dentro das universidades públicas ou privadas.
Isso desvincularia o saber teológico da estrutura da hierarquia eclesial e
masculina. É Utopia?
É um delírio? Parece que essa possibilidade estaria posta
nas entrelinhas dos últimos pareceres do Conselho Nacional de Educação (CNE) e
Câmara de Ensino Superior (CES) para a Teologia e na minuta em estudo das
Diretrizes Curriculares para a Graduação de Teologia. Contudo, isso careceria
de uma profunda reflexão.
Enfim, isso tudo pode parecer uma amontoado de ideias
soltas, mas são desafios que estão postos para a superação de uma histórica
relação de desigualdade e assimetria de gênero no campo do saber teológico.
Enquanto essa realidade continua sendo uma utopia, certamente as mulheres
precisam continuar aproveitando as oportunidades que surgem para se inserirem
na docência e, desde esse lugar hierárquico e masculino, produzirem estratégias
políticas para garantir a legitimidade de sua presença, de suas ações e de sua teologia.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Neiva Furlin – Sim, gostaria ainda de enfatizar dois pontos.
Primeiro, que o projeto da construção ética de si, como sujeito feminino de
saber teológico, não aparece como um projeto puramente individual, mas também
voltado para o coletivo das mulheres, que estão inseridas na mesma estrutura
acadêmica. Isto é, um “si mesmo para todas as mulheres”, no sentido de Rosi
Braidotti, que se articula por afinidades ou pontos nodais que, neste caso,
trata-se da consciência de uma história comum de desqualificação do feminino e
de discriminação sexista; de ausência histórica nos processos de produção do
saber, em um espaço em que o normativo é o masculino; de uma espiritualidade
compartilhada no sentido de sentirem-se vocacionadas para uma missão na
teologia, do desejo de marcar o universo da teologia por uma alteridade
positiva e de um imaginário utópico do devir sujeito feminino de saber
teológico com reconhecimento acadêmico, que mobiliza ações no presente na
esperança de um futuro melhor.
Segundo, se consideramos uma história de discriminação e de
ausência histórica das mulheres no universo do ensino e da produção teológica e
que, na atualidade, elas ainda continuam às margens do poder eclesial, pode-se
dizer que as práticas de agenciamento que elas produzem, por menor que sejam,
tornam-se importantes, porque estabelecem certa autonomia em relação a uma
estrutura hierárquica e masculina. Isso nos faz concordar com o pensamento de
Ward L Kaiser, que “o ‘revolucionário’ não se encontra só nos grandes processos
de transformação social que se concretizam no tempo e no espaço, mas também na
produção de novos significados ou nas pequenas mudanças que ocorrem nas
microrrelações sociais, que são tecidas no cotidiano da vida, como um modo novo
de viver, de se produzir e de se reconhecer sujeito”.
NOTAS
[1] A pesquisa de campo foi realizada no final do ano de
2008 e início de 2009.
[2] Isso porque nas Pontifícias Universidades Católicas
existem docentes da área de teologia que ministram disciplinas de cultura
religiosa, em diferentes cursos acadêmicos.
[3] Acredita-se que a pessoa que teve contato ou produz com
essa perspectiva de conhecimento consegue perceber e problematizar melhor as
dinâmicas de gênero que circulam no cotidiano das práticas sociais, e isso se
tornou um critério importante, diante da proposta de nossa pesquisa.
[4] Esses dados e outros podem ser encontrados em FULIN, N.
Teologia e Gênero: A docência feminina em instituições católicas, Revista
Eclesiástica Brasileira, n. 284, p.880-910, out. 2011.
[5] Posterior a esse, não encontramos outro Censo da
Educação Superior, segundo o sexo dos/as docentes por áreas de atuação. Os mais
recentes apenas registram a docência masculina e feminina de modo mais geral.
[6] Posterior a esse, não encontramos outro Censo da
Educação Superior, segundo o sexo dos/as docentes por áreas de atuação. Os mais
recentes apenas registram a docência masculina e feminina de modo mais geral.
[7] Denominação dada à pessoa que exerce a principal
liderança no interior de uma ordem ou congregação religiosa.
[8] O termo “generizada” é usado pela feminista Londa
Schienbinger para se referir aos comportamentos, interesses, ou valores
culturais tipicamente masculinos ou femininos, cujas características não são
concebidas inatas e nem arbitrárias, mas como realidades construídas por
circunstâncias históricas que, por isso mesmo, podem mudar por outras
circunstâncias históricas. Ao usar esse mesmo termo, estarei me referindo às
mesmas questões assinaladas pela autora.
Fonte: Ihu
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