Segregação feminina é indesejável, por punir as vítimas. Para enfrentar concretamente o assédio no transporte coletivo, há outras saídas.
por Marília Moschkovich
A Assembléia Legislativa de São Paulo, como muitas de nós
feministas havíamos previsto, aprovou o projeto de lei (PL) que institui um –
um único – vagão exclusivo para mulheres nos trens da CPTM e no metrô. Se o
governador Geraldo Alckmin não vetar o PL, essa prática será instituída na
capital e nas demais cidades do estado que possuem transportes sobre trilhos.
Já cansei minha beleza explicando porque conceitualmente essa medida é
problemática se desejamos pensar um mundo em que haja igualdade de gênero.
Mesmo se ela for temporária ou paliativa. Quem perdeu, pode ler O vagão das
mulheres só anda para trás, ou Assédio: por que as explicações fáceis não
satisfazem. Não desejo retomar esses argumentos: meu pensamento a respeito
permanece o mesmo.
No entanto, há um terceiro aspecto da crítica ao vagão
exclusivo que ainda me deixa bem insatisfeita nos debates via web, em mesas de
bares ou eventos de movimentos sociais e partidos para discutir o assunto. A
pergunta que não quer calar é: “ok, então em vez do vagão exclusivo, o que
podemos fazer a curto e médio prazo, para lidar com esse problema tão latente”?
Nenhuma solução é mágica, claro, mas defendo que há pelo
menos cinco ações mais eficazes do que os vagões exclusivos. Nenhuma delas vai
acabar com a ocorrência desse tipo de problema – sinto informar, mas não existe
nada a curto prazo que o faça, nem os vagões exclusivos. Meu ponto aqui é
outro: por que limitarmos a liberdade das mulheres nos espaços públicos quando
elas são as reais vítimas da situação? Ao menos enquanto não erradicamos a
desigualdade de gênero, me parece mais produtivo pensar em maneiras de lidar
com essas vítimas que ficam sempre desamparadas do que fingir que o assédio vai
deixar de existir com os vagões exclusivos. Algumas ideias nesse sentido:
1) Fale com ela(s)
Falar sobre a experiência de assédio com mulheres que também
passaram por isso é uma maneira eficaz de retomar o poder sobre nossos corpos.
Ao guardar a experiência individual apenas na memória, não a elaboramos, e
deixamos que ela se aposse de nós. Trocando experiências e histórias,
percebemos coisas em comum, pontos divergentes, e começamos a compreender que o
assédio não foi nossa culpa, que há uma prática mais disseminada e que não é
nada pessoalmente errado conosco. Escutar outras mulheres e contar sua própria
história é uma ferramenta poderosa para sair da posição vitimizada que ser
assediada nos impõe.
Existem algumas ferramentas interessantes para isso. O mapa
e aplicativo Chega de Fiu-Fiu, por exemplo, tem sido usado por várias mulheres
para compartilhar histórias de assédio em espaços públicos. Ali você pode
relatar seu caso ou ler outros casos já postados.
Talvez a melhor maneira, porém, seja criarmos grupos de
apoio. Círculos de conversa entre mulheres que se pautem por esse tema: ser
mulher na rua, no espaço público. O que vivemos cotidianamente sendo mulheres
no espaço público? Como é a experiência de cada uma? Os casos de assédio são
uma entre diversas barreiras que enfrentamos todos os dias simplesmente por
sairmos de casa. Há muito o que ser conversado, e é possível eleger temas
específicos para encontros regados a uma boa cerveja com amigas próximas,
vizinhas, conhecidas.
2) Segurança feminina nos vagões
Outra medida possível e nem tão trabalhosa, a curtíssimo
prazo, seria instituir segurança feminina nos vagões (ou a cada x vagões).
Essas agentes atuariam dando apoio imediato a mulheres que as procurassem ainda
dentro dos trens, mas sua presença também pode funcionar intimidando a
ocorrência de assédio. Há muitas maneiras possíveis de se pensar nesse tipo de
segurança feminina. Essas agentes seriam responsáveis por por atendimento às mulheres,
e não operariam como seguranças de patrimônio ou ou seguranças regulares do
metrô.
3) Atendimento qualificado às vítimas
Um dos problemas mais graves do assédio é o desamparo a que
são relegadas as vítimas. Num país que fetichiza a cadeia e a “punição” (Ler
Cadeia, o fetiche social do Brasil), como se essas medidas resolvessem a
ocorrência de crimes e problemas pelo exemplo, a primeira reação das pessoas é
concentrar energia em ir atrás do assediador. Nisso, as vítimas são
abandonadas. É como se a pessoa que causa o trauma fosse um problema social,
coletivo, mas a pessoa que sofre o trauma fosse condenada permanentemente a lidar
com ele em sua individualidade. Sempre que se trata de questões ligadas às
mulheres é assim que funciona: os casos de aborto legal e da portaria 415 (Ler
A nova tramoia das bancadas fundamentalistas), gravidezes indesejadas, entre
outros, reproduzem o mesmo esquema de pensamento.
Que tal se, desta vez, oferecêssemos apoio real, duradouro e
imediato às vítimas?
Além dos grupos de apoio que podem funcionar num nível
privado, é preciso haver estrutura de apoio em toda e cada estação do metrô e
da CPTM. Essa estrutura pode compreender médicas, psicólogas, assistentes
sociais e outras profissionais – mulheres – treinadas para lidar com a questão.
Além disso, é preciso que os cuidados com a vítima extrapolem o momento em que
ela sofre o assédio. Isso por ser elaborado por meio de parcerias com ONGs e
outras instituições sem fins lucrativos, mas idealmente seria um sistema de
cuidados integrado ao SUS. Já há uma série de estruturas e equipes capazes de
lidar com isso de maneira competente e me parece que elas devam ser
aproveitadas.
4) Atendimento legal e jurídico
Além do apoio médico, psicológico e social, é importante que
toda estação de metrô tenha também oferta de apoio legal e jurídico. Isso por
ser feito com postos avançados de delegacias da mulher, por exemplo. Com o
registro imediato e desburocratizado das ocorrências de assédio, a vítima se
sente mais amparada e tornamos possível construir estatísticas mais confiáveis
sobre a questão. O aconselhamento legal também poderia ser feito em postos
desse tipo, tão logo a vítima deseje recebê-lo.
5) Conversa de homem para homem
Parece um pouco bobo, aos meus olhos, ignorar que há um lado
da história que precisa ser trabalhado com certa urgência: os homens. A prática
de qualquer tipo de assédio está ligada a uma ideia de masculinidade que cada
vez mais é colocada em xeque (ainda bem! e viva o feminismo!). Muitos homens já
questionam essa espécie de exigência de gênero mas ainda têm receio ou
dificuldades para enfrentá-la quando ela se coloca no dia-a-dia. Como homem,
questionar e repreender outros homens por esse tipo de prática é uma grande
contribuição com a luta pela liberdade das mulheres. Notem, porém, que isso não
significa linchamento público, violência física, nem nada parecido. Apenas
conversar com os homens ao seu redor sobre o assunto já é um começo. O assédio
não pode ser tratado como um problema distante, das mulheres (“do outro”), se
metade dos teus amigos são algozes desse tipo horrível de trauma causado a
tantas de nós. É uma questão que está mais próxima do que você imagina,
provavelmente ao seu alcance em algum momento. Basta estar atento.
Fonte: Carta Capital
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