terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Mulheres ficam para trás na marcha para a modernidade na Índia


"De um lado, as mulheres estão cada vez mais educadas e são encorajadas a ingressarem no mercado de trabalho e deidades femininas são adoradas na religião hinduísta. Por outro lado, o clima em que as mulheres vivem e trabalham permanece inalterado e cheio de preconceito. O patriarcado é uma besta cruel que continua perambulando pelas ruas das grandes cidades, assim como ronda as ruas de terra das aldeias", critica Kishwar Desai, escritora e colunista indiana, em artigo publicado na revista Der Spiegel e reproduzido pelo Portal Uol, 11-01-2013.


Nas últimas semanas, algo aconteceu na Índia que nunca consideramos possível: nós vimos uma demonstração sem precedente de solidariedade e revolta em torno do horrível estupro coletivo de uma mulher de 23 anos, que morreu posteriormente devido aos ferimentos. O assassinato brutal dessa estudante sem nome --uma jovem ambiciosa de uma cidade pequena, que trabalhava arduamente para se tornar uma fisioterapeuta e que era um exemplo para seus dois irmãos mais novos-- nos toca porque ela era uma de nós, uma irmã, uma filha e uma esposa.

Há anos eu escrevo sobre estupro e abuso, sobre o aborto de fetos femininos, sobre a morte de meninas e mulheres na Índia. Mas quando soube do que tinha acontecido bem no meio de Nova Déli, no coração de nossa capital, em um ônibus público, eu senti como se tivesse acontecido comigo. Felizmente, eu nunca fui vítima de estupro.

Mas durante minha juventude, entretanto, eu experimentei molestamento e abuso verbal por parte dos homens. E no trabalho isso fazia parte da minha vida --como faz parte da vida de qualquer mulher na Índia. Amigas minhas experimentaram coisas muito piores e ficaram traumatizadas por causa disso.
A mulher jovem foi chamada de "Nirbhaya", a destemida, pela imprensa, e se transformou em símbolo da terrível misoginia da Índia. A classe média indiana realizou protestos e vigílias à luz de velas em muitas cidades por todo o país. A revolta, apesar das garantias do governo, se recusa a ceder. Ainda mais inesperada é a visão de homens jovens saindo às ruas, expressando seu pesar pessoal com a escalada da violência de gênero, à medida que esta "superpotência" emergente se torna cada vez mais insegura para as mulheres.

A resposta do governo tem sido lenta e insensível, com sua tentativa desajeitada de abafar os protestos. Essa falta de empatia dentro da coalizão de governo, e sua incapacidade de entender ou compreender a traição que as mulheres indianas sentem hoje deixou muitos horrorizados.

Algumas poucas horas chocantes

Enquanto Nova Déli era transformada em uma fortaleza para impedir os manifestantes de se reunirem próximos do icônico Portão da Índia, foi apontado que a maioria das mulheres parlamentares, que derramaram lágrimas e falaram passionalmente sobre a vítima do estupro coletivo, leva vidas extremamente bem protegidas. Cercadas por seguranças e pelos confortos do poder, elas não têm ideia da humilhação diária e da luta das mulheres comuns. A desconexão entre a classe média que trabalha arduamente e seus representantes eleitos nunca foi mais aparente do que quando foi ordenado recentemente à polícia que reprimisse manifestantes desarmados. Naquelas poucas horas chocantes, era difícil acreditar que a Índia era uma democracia.

O fato também mostrou o desprezo com que as crescentes massas urbanas da Índia (especialmente as mulheres) são tratadas pelo governo, cuja principal preocupação parece ser vencer eleições jogando dinheiro aos eleitores, particularmente nas áreas rurais. O governo passou grande parte das últimas semanas explicando as "transferências diretas de dinheiro" para os pobres no interior, em vez de tratar da situação alarmante das mulheres indianas.

O governo teria ficado contente em enviar a vítima de estupro para o exterior para "tratamento" (apesar dela já estar em coma) e de tê-la cremado secretamente nas primeiras horas de uma manhã de inverno, para que as pessoas se esquecessem dela. Mas nenhuma dessas táticas de distração funcionou. Graças ao poder da Internet e da mídia, a lembrança da vítima de estupro coletivo e do que aconteceu com ela continuam ocupando as manchetes, forçando o governo a pelo menos levar este caso a sério.

A manifestação contínua de pesar e revolta surpreendeu completamente o sistema patriarcal, especialmente porque estupro coletivo não é uma novidade na Índia pós-independência, "modernizada".

Ele é usado como arma de opressão há anos, incluindo durante a divisão da Índia e posteriormente. Hoje, um número cada vez maior de homens jovens está migrando para as cidades em busca de trabalho, trazendo consigo frustração sexual e alienação pessoal --assim como uma misoginia profundamente entranhada. Isso talvez os leve a visar mulheres vulneráveis como a de Nova Déli.
O estupro coletivo se transformou em um fenômeno cada vez mais preocupante e, com o judiciário lento e ineficaz, os perpetradores têm a garantia de se livrarem sem sofrer nenhuma consequência. De fato, frequentemente é a vítima que é forçada a viver com o estigma e, em alguns casos, a mulher se mata devido à humilhação sem fim nas mãos da polícia, dos tribunais e até mesmo dos próprios estupradores. Em muito poucos casos, as vítimas se vingam, após desistirem completamente do sistema.

Reformas muito necessárias

O caso mais conhecido é o de Phoolan Devi nos anos 80. Da casta pobre dalit, ela se casou aos 11 anos apenas para ser abusada por seu marido e então rejeitada. Ela então foi estuprada por vários homens. Em busca de vingança, ela ingressou em uma gangue criminosa e posteriormente matou um de seus agressores.

Phoolan Devi acabou presa por 11 anos sem nunca ter sido condenada, um destino que não atingiu os homens de casta superior que a estupraram. Após sua soltura, ela foi eleita membro do Parlamento e a história de sua vida virou filme. Mas em 2001 ela foi baleada nas ruas de Nova Déli, assassinada por um parente de um de seus estupradores.

Antes que as mulheres sejam forçadas a cometer violência retaliadora semelhante como autodefesa, é essencial que o governo indiano acelere as reformas muito necessárias e as leis que protegerão e ampliarão o status das mulheres, legal e socialmente. Mas há muitos obstáculos para o empoderamento das mulheres, alguns mantidos pelos políticos para perpetuarem seu controle das massas.

Um dos principais problemas é o sistema de castas da Índia, que é explorado repetidas vezes por vários governos visando criar obstáculos às votações. Os homens geralmente são os beneficiados; em cada casta, o círculo social mais baixo continua ocupado pelas mulheres, até mesmo na Índia urbana, independente de quão educada e bem posicionada ela seja.

Isso faz com que as práticas antimulheres, como generocídio - no qual estimadas 30 milhões de garotas já foram mortas, por meio de abortos seletivos e infanticídio - imolação de noivas na fogueira ou violência doméstica (geralmente por falta de dote) continuam sendo praticadas. As mortes em nome da honra também aumentaram tanto nas áreas rurais quanto nas áreas urbanas.

Um desequilíbrio na proporção de gênero - atualmente há apenas 940 mulheres para cada 1.000 homens– faz com que as mulheres indianas, apesar das recentes medidas corretivas, sejam uma minoria ameaçada. E elas frequentemente estão à mercê de homens predadores, tanto em casa quanto nas ruas.

Negação oficial

Nova Déli, que é governada por uma mulher, conta vergonhosamente com uma das piores desproporções de gênero no país e uma taxa muito alta de delitos sexuais. Mais de 80% das mulheres de Nova Déli já enfrentaram alguma forma de abuso sexual e são ativamente desencorajadas a saírem sozinhas à noite, ou mesmo durante o dia.

Essa é a dura realidade frequentemente negada pelo Estado indiano, que prefere chamar a atenção para os exemplos preferidos de mulheres individuais ou grupos de mulheres bem-sucedidos, do que tratar da questão maior da negligência intencional com milhões de mulheres, que ficaram de fora da história de desenvolvimento. Essas mulheres têm pouca ou nenhuma segurança e ajuda do Estado, nem mesmo do seu meio social imediato, uma situação que frequentemente reforça a fragilidade de sua existência.

Apesar da maioria das mulheres rurais permanecer não representada nos recentes protestos, a condição delas não é menos vulnerável. Além disso, elas enfrentam obstáculos maiores para se organizarem; a maioria delas permanece semianalfabeta, são dependentes de suas famílias e não têm acesso à Internet. Felizmente, graças ao mundo virtual, a mulher urbana de classe média está finalmente começando a se organizar juntamente com suas irmãs em uma plataforma conjunta, que sem dúvida mudará o ambiente no qual as mulheres se tornaram um alvo deliberado de violência e abuso.

É um paradoxo: de um lado, as mulheres estão cada vez mais educadas e são encorajadas a ingressarem no mercado de trabalho e deidades femininas são adoradas na religião hinduísta. Por outro lado, o clima em que as mulheres vivem e trabalham permanece inalterado e cheio de preconceito. O patriarcado é uma besta cruel que continua perambulando pelas ruas das grandes cidades, assim como ronda as ruas de terra das aldeias.

Patriarcal demais

Portanto, apesar de vigílias à luz de velas não terem sido feitas para Phoolan Devi após ela ter sido morta há 10 anos --nem para nenhuma das milhares de vítimas subsequentes de molestamento e estupro-- desta vez as mulheres não estão mais dispostas a permanecer em silêncio.

Agora elas estão exigindo as mudanças prometidas na lei de estupro, que continuam arcaicas e não incluem o estupro conjugal. Elas também estão exigindo a aprovação de uma lei que garanta uma cota de gênero no Parlamento, o que forçaria os partidos políticos a apresentarem mais candidatas. No momento, a maioria dos partidos políticos, incluindo os comandados por mulheres, tem um retrospecto muito ruim quando se trata de adequação à diversidade de gênero.

Talvez seja necessária uma combinação de poder político e pressão das ruas para que as mulheres finalmente consigam o muito necessário senso de segurança. No momento, entretanto, o medo é de que o atual governo seja patriarcal demais e fora de contato com os problemas das mulheres para promover as mudanças necessárias rapidamente, apesar de finalmente ter acelerado o processo na Justiça do caso do estupro coletivo. Ele também pediu sugestões à população para as mudanças na lei de estupro.

Apesar disso, as mulheres continuam sendo estupradas em várias partes do país, inclusive, em um caso, por um líder do Partido do Congresso no Estado de Assam. A única esperança agora é de que o movimento público provocado pelo terrível caso de estupro e morte de uma mulher jovem corajosa se transforme em uma força por mudança. Com a eleição geral se aproximando em 2014, pode ser que a perspectiva de perder os votos das mulheres urbanas de classe média faça com que o governo dê ouvido a elas e suas necessidades.

Fonte: ihu

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