Os direitos da mulher fazem parte de demandas mais amplas
para a mudança social e política. Servem de termômetro para o futuro da região.
Assinalam o destino do conjunto mais amplo dos direitos das minorias e das
liberdades de religião e expressão.
Por Eliana Cardoso
Acabei de arrumar as malas para uma conferência em Oxford
sobre as desigualdades entre homens e mulheres no contexto dos países em
desenvolvimento. Sobre esse assunto, a mesma camisa não veste dois emergentes.
Basta comparar o Brasil e o Egito.
Tendo visto de perto como vivem as mulheres
naquele país – pois me casei com um egípcio em 1999 e morei no Cairo até 2002
–, poderia contar histórias para ilustrar as estatísticas do Banco Mundial (
The World Bank Gender Statistics) e as do relatório The Global Gender Gap
Report ( publicado pelo World Economic Forum ) . Mas na comparação entre os
dois países, a força dos números me basta. Aqui a inserção da mulher no mercado
de trabalho contribui para o crescimento econômico e a melhoria dos indicadores
de bem-estar. Mas a mortalidade feminina antes dos 5 anos de idade (que é de
4,5 em mil meninas nos países ricos, na média ) continua alta no Brasil: 14 em
mil ( e no Egito, 20 em mil).
As brasileiras desconhecem os sofrimentos da
mutilação genital imposta a 91% das egípcias entre 15 e 49 anos de idade. E
enquanto a lei brasileira dá às mulheres iguais direitos à guarda dos filhos
durante o casamento e após o divórcio, esses direitos no Egito pertencem ao
homem. Lá, 39% das mulheres acreditam que o marido tenha o direito de bater nas
mulheres em determinadas circunstâncias. Não tenho ideia desse número aqui, na
nossa terra, mas suspeito que, se ainda existem brasileiras favoráveis a tapas
e chicotes, elas o sejam não por imposição religiosa, mas por desvio de
comportamento, raro até mesmo entre as leitoras de Cinquenta Tons de Cinza.
A
educação faz toda a diferença: 90% das brasileiras adultas sabem ler, mas
apenas 58% das egípcias. As mulheres representam 42% da nossa força de trabalho
(comparável à média de 44% nos países mais ricos) e apenas 24% no Egito. A
razão entre mulheres e homens que ocupam altos cargos entre oficiais, advogados
e gerentes (48% em média nos países mais ricos) é de 56% no Brasil e 12% no
Egito.
Aonde quero chegar? Ao fato de que a situação da mulher no
Brasil se parece mais com a que existe nos países ricos do que com a de outros
emergentes. Aqui, como nos países ricos, a disparidade salarial persiste. E
aqui, como lá, as mulheres se queixam da dupla jornada. Os grupos mais
abastados contam com a ajuda de empregadas.
Entre os pobres, entretanto, elas carregam sozinhas a
responsabilidade das funções domésticas. Mas hoje o foco de nossas preocupações
é o Egito. As revoluções que derrubaram velhas ditaduras também promoveram os
partidos islâmicos. A Irmandade Muçulmana e os salafistas conquistaram mais de
70% dos assentos no Parlamento. Alguns líderes bloqueiam abertamente a participação
da mulher na vida pública e muitas candidatas, nos materiais de campanha,
substituíram a foto do próprio rosto por imagens de flores.
O presidente Mohamed Morsi, em meio a protestos contra o
governo e deserções de seu próprio Gabinete, orquestrou o voto de aprovação da
nova Constituição – que adiciona à Constituição de 1971 artigos que atribuem a
uma instituição religiosa a responsabilidade formal pela interpretação da
Sharia (principal fonte de legislação).
As questões modernizadoras referentes
aos direitos das mulheres ficaram de lado. Apesar dos desafios, há razões para
acreditar que as mulheres acabarão vencendo. Quando? Ainda vai demorar, mas
considere: apesar de somente uma em cada três mulheres participar da economia
formal no mundo árabe, sua participação na força de trabalho está aumentando e
muitas famílias agora contam com duas fontes de renda.
O Egito depende das
receitas do turismo – 11% do produto interno bruto (PIB) em 2011–e peleja por
um acordo de livre-comércio com os Estados Unidos. Atrair investimentos diretos
e turistas é chave para o crescimento econômico. Questionar os direitos das
mulheres afugenta o apoio internacional. Por outro lado, a nova Constituição
mostra maior preocupação em estabelecer as bases para um califado islâmico do
que em promover os interesses do Egito. A ascendência política de grupos
radicais pode restringir ainda mais a liberdade feminina, como aconteceu no Irã
com o triunfo da teocracia islâmica. Seria péssimo.
Os direitos da mulher fazem parte de demandas mais amplas
para a mudança social e política. Servem de termômetro para o futuro da região.
Assinalam o destino do conjunto mais amplo dos direitos das minorias e das
liberdades de religião e expressão. O que está em jogo é nada mais, nada menos
que a possibilidade de a democracia se tornar realidade no mundo árabe. Razão
para otimismo é que os movimentos recentes têm mobilizado as mulheres como
nunca se via no mundo árabe.
A nova geração exige assento à mesa do poder,
invadindo as ruas e as redes sociais. Milhares de blogs de organizações
femininas pedem mudanças. Tais pedidos nada garantem. Entretanto – seja na
política ou na mídia, na educação ou na força de trabalho –, pouco a pouco, mas
a passos cada vez mais rápidos, a realidade da vida diverge das normas que os
fundamentalistas gostariam de impor à sociedade. Hoje, as forças que dividiam
secularismo e islamismo ocorrem dentro do próprio Islã.
Os árabes moderados
insistem em que o Islã é compatível com os direitos das mulheres e aceitam o
papel público delas na sociedade. Embora ideias extremistas nunca desapareçam,
é possível que a posição moderada se torne dominante nesta caminhada difícil
para uma sociedade mais livre. Mesmo nos países ricos se avança vagarosamente.
Só em outubrode2012 a Inglaterra mudou o sistema de progenitura, que permitia
aos irmãos mais jovens herdar o trono antes de suas irmãs mais velhas. Mas...
devagar vamos longe. Conheço bem a diferença entre as idéias e atitudes da
minha época de menina em Minas Gerais e as deste século 21 em Sampa.
Fonte: Jornal Estado de São Paulo
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