terça-feira, 24 de novembro de 2015

Racismo, machismo e capitalismo: um triângulo amoroso

O matrimônio firmado entre o racismo e o machismo é uma das relações mais duradouras da história. A concentração e a manipulação do poder, ópio que alimenta essa relação, permitiram inclusive que o casal evoluísse para um triângulo amoroso: racismo, machismo e capitalismo.

Por Viviane Ferreira*

Os amantes, conhecidos como R.M.C., vivem no troca-troca de posições, na disputa para ver quem melhor representa a tríade. Essas coisas de casamento em que a competição entre as partes é a pimentinha do amor. O importante mesmo é que em todo dia santo, e dia santo é dia de trabalho, os votos sejam renovados e R.M.C. sigam enamorados rumo à concentração do poder, custe o que custar, doa a quem doer. R.M.C. separados são fortes, mas juntos julgam-se indestrutíveis.
Agora, se representatividade importa para “os donos” da banca, imagina para quem nem figura nas capas de revistas, nos filmes e na programação da TV?
Fui amamentada pelo movimento de mulheres negras, e dos seios desse movimento me alimento da seiva que traça a historicidade da atuação dessas mulheres. Regentes de uma sinfonia capaz de ensurdecer uma sociedade forjada para viver do “espetáculo”, da “estética rasa”, que se furta a encarar seus problemas estruturais. E, ainda assim, entoam: representatividade importa, sim!
Como cineasta negra, entendo que fazer cinema é responsabilizar-me por construir a narrativa de novos tempos, é disputar espaços de representatividade para garantir representação. Por isso gozar deste espaço para falar o que penso, nesses tempos em que a democracia brasileira segue ameaçada. E R.M.C. estão vindo com toda força para buscar alimento para a relação, tragando da pílula do dia seguinte à representação das mulheres negras.
A reivindicação feminina por espaços formadores de opinião vem de longa data. O cinismo dos males estruturantes da sociedade do espetáculo utiliza-se dos institutos da “exceção” e da “concessão” para a manutenção da regra, num cálculo sutil que ajuda R.M.C. a ficarem com a relação cada dia mais sofisticada.
As facetas são muitas: é partido político que lança mulheres à selvageria eleitoreira para cumprir a cota estatutária; são homens e mulheres brancas estudando sobre mulheres e homens negros e se tornando “especialistas”, legitimados por um “canudo” a falar em nome desses indivíduos; é diretor de televisão branco, fazendo série para tratar da sexualidade de mulheres negras; é blogueira negra sendo atacada virtualmente por se “atrever” a falar sobre sua própria existência; é imagem de ativista negra sendo utilizada de forma indevida por instituições do Estado; é coletivo de estudantes negras sendo perseguido em universidades públicas por exigir ações afirmativas; é presidenta tendo sua honra e feminilidade atacadas por articular a criação de um banco internacional com outros países em desenvolvimento; é governador fechando escola na tentativa de impedir que seu Estado contribua para a construção de uma pátria educadora… A lista não tem fim.
Tão antigo quanto o matrimônio de R.M.C., alicerçado num cinismo histórico, é o pacto de irmandade do movimento de mulheres negras, em passos que vêm de muito longe. Isso nunca é demais rememorar. Estamos irmanadas, regendo a sinfonia que executará com maestria a canção de morte de R.M.C. Nessa orquestra, o cinema é o instrumento que sopra cada suspiro do meu pensar. 


*Viviane nasceu na Bahia e vive em São Paulo. É advogada e cineasta, preside a Associação Mulheres de Odun e é sócia-fundadora da Odun Formação & Produção. Entre outros trabalhos, dirigiu o documentário “Festa da Mãe Negra” e o curta “O dia de Jerusa”, que integrou a seleção oficial do Festival de Cannes em 2014.

Fonte: Geledes

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