quarta-feira, 25 de novembro de 2015

A difícil vida de ser da vida

Aquele que de entre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela’ (João 8:7). Este famoso versículo bíblico só não é mais adequado para esta história porque, quando Jesus pronunciou esta frase, ele se referia a uma adúltera, e não a uma prostituta.
Mas, como também já é sabido, a profissão de meretriz é uma das mais antigas da humanidade, isso se pudermos considerá-la uma atividade profissional, pois as mulheres que a exercem não conseguem o respeito que lhes é de direito e, desde que o mundo é mundo, são pré-julgadas pela sociedade.

A equipe do Diário percorreu alguns pontos de prostituição na região e se deparou com uma história que se destacou pela frieza do ser humano e, ao mesmo tempo, pelo profissionalismo da garota de programa Kiara Silva (nome usado para o trabalho). Ela começou nesta função da maneira menos comum que se pode imaginar. Ao assistir a um quadro de programa de televisão que discutia o assunto, Kiara conta que a mãe destacou, com o intuito de provocá-la, que as profissionais tinham dinheiro para pagar aluguel, comprar roupas e ter liberdade. Confusa com a declaração, a jovem questionou: “A senhora acha que elas são melhores do que eu?”. E teve como resposta: “Sim, pois mulher tem de ser independente”. Kiara, que até então era uma garçonete, com 23 anos, passou a repensar a sua vida.

Não demorou muito e Kiara lembrou que em seu bairro morava uma mulher a quem os vizinhos chamavam de “mulher da vida”, na época, expressão usada para nomear uma garota de programa. Assim que encontrou Baiana, a primeira pergunta de Kiara foi: “É verdade que você é prostituta?”. Baiana respondeu: “Fui. Hoje estou em um relacionamento sério e saí desta vida. Mas dentre estes que te falaram sobre mim, a maioria já pagou para sair comigo.”

Aproveitando o momento de sinceridade da nova amiga, Kiara lhe fez o pedido: “Me ensina esta profissão, pois quero ser garota de programa. Sempre gostei e fui boa em fazer amor. Tive uma desilusão com meu ex-namorado, com quem montei uma lanchonete. Descobri que, quando eu estava fora, ele usava o local para guardar peças de carros roubados. Não aceitei isso. Ele procurou alguém que aceitasse e eu, aqui, te procuro para conseguir ganhar minha vida”. Kiara lembra que Baiana concordou em ensinaria a ela o ofício, mas que não voltaria a se prostituir.

O primeiro emprego de Kiara foi em uma boate que existia na Travessa Diana, no Centro de Santo André. “Não esqueço o dia. Era 20 de dezembro de 2000, uma terça-feira, e meu primeiro cliente foi um senhor chamado Cláudio. Ele foi orientado pelo dono do estabelecimento que era meu primeiro dia e para que ele fosse mais cauteloso”, lembra. Cautela não faltou, pois, segundo Kiara, o cliente pagou três taças de vinho e conversou com ela por 30 minutos, até que ela se sentisse preparada.

Cinco dias depois, Kiara já havia faturado R$ 600, o que ela considerava bastante naquela época. Foi quando a garota de programa se deparou com um problema: o ciúme das outras meninas que trabalhavam na casa. “Elas eram muito mais experientes e não ganhavam tanto em tão poucos dias. Então, fui obrigada a trocar de local e, no mesmo dia, fui para outra boate”.

Kiara lembra que no novo emprego o primeiro cliente resolveu fechar uma garrafa de uísque, o que a ajudou a receber comissão alta. No entanto, ela revela ter enfrentado problemas ainda maiores na segunda casa, o que também a fez mudar de local. “Já no primeiro dia ganhei muito dinheiro.”

O próximo emprego Kiara conseguiu a partir de anúncio em jornal. A boate ficava na Rua Nestor Pestana, na República, na Capital. Lá ela era dançarina e, se quisesse se prostituir, era “por sua conta e risco”. “A vantagem era que eu não tinha que dividir o dinheiro que ganhava com os programas com a casa”.

Kiara decidiu levar sua irmã para trabalhar no local, a fim de afastá-la do envolvimento com criminosos e por julgar que seria uma atividade mais segura. “Mas eu estava errada e o tempo me mostrou isso. Em um dos programas que minha irmã estava fazendo, ela se desentendeu com seu cliente, que a empurrou da janela do primeiro andar. O acidente deixou marcas eternas, pois ela sofreu várias fraturas e uma delas causou lesão irreversível. Daí para frente ela só pode andar de cadeira de rodas.”

Justamente neste momento, a irmã recebeu convite para trabalhar em boates na Irlanda, mas diante da situação, Kiara foi no seu lugar. A garota de programa permaneceu lá por quase três anos. Ganhou, neste período, o equivalente a R$ 48 mil. Mas, como já tinha uma filha de 13 anos, que deixou no Brasil com sua mãe, enviava boa parte do dinheiro para ajudar na criação da menina e na reforma da casa.

Quando voltou ao País, Kiara teve duas decepções: uma foi ver que não houve melhorias na residência da família e a segunda foi ouvir da filha, após revelar sua profissão, que ela não sabia o que dizer aos amigos, quando perguntassem a atividade da mãe.

Hoje, sua filha é adulta e está em busca de trabalho. Já Kiara voltou a trabalhar em uma boate no Centro de Santo André, ganhando R$ 40 por meia hora de trabalho. Ao ser questionada sobre o fato de ganhar menos hoje, aos 38 anos, do que 15 anos atrás, a profissional culpa a “facilidade com que os homens conseguem mulheres hoje em dia”. “As meninas das baladas estão tão fáceis que os clientes estão se afastando das casas, o que diminui ainda mais o preço dos programas. Já cheguei a fazer 25 programas em uma só noite, trabalhando em um ‘vintão’ (casa em que se paga R$ 20 reais por 20 minutos de sexo), mas hoje, se conseguir fazer três programas em uma noite, posso comemorar”, relata.

Kiara diz que não possui sentimentos, seja pelos homens com os quais se relaciona profissionalmente, ou por sua família. E que também não tem vergonha do que faz. “Minha irmã, minha filha e eu crescemos em um lar muito agressivo, onde meu pai bebia e batia em todas nós, principalmente na minha mãe. Meu sonho é apenas voltar ao grande estilo e fazer programas mais caros.”

Prefeitura não consegue estimar número de garotas de programa

A Prefeitura de Santo André não consegue estimar, hoje, quantas prostitutas trabalham ou moram na cidade, já que se trata de grupo flutuante. A Secretaria de Saúde do município atendeu, em 2014, no programa de prevenção às doenças sexualmente transmissíveis, 3.500 pessoas. Neste primeiro semestre, foram feitos 1.600 atendimentos, o que significa que uma pessoa pode ter passado pelo procedimento mais de uma vez.

O Plano Nacional de Enfrentamento da Epidemia de Aids/DST atende pessoas mais vulneráveis a estas doenças, como travestis, transexuais e, principalmente, profissionais do sexo. As equipes acessam as prostitutas em seus locais de trabalho, ou seja, nas ruas ou boates e entregam preservativos masculinos, femininos e lubrificantes, e incentivam as garotas a realizarem testes de HIV, sífilis e hepatites.

Segundo informações da Secretaria de Saúde, o maior risco de contaminação entre as profissionais do sexo está relacionado ao fato de os clientes se negarem a usar preservativos. “Cabe a cada profissional convencê-los”, afirmou a Pasta em nota.

Por outro lado, a Secretaria de Políticas para Mulheres, liderada por Silmara Conchão, busca as profissionais do sexo que queiram deixar a função para conseguir encaminhá-las para o programa Emprego Apoiado ou para os Cras (Centro de Referência em Assistência Social). No primeiro, uma assistente social entra em contato com empresas na procura por vagas e, por fim, depois de empregadas, as equipes da secretaria acompanham o desenvolvimento da funcionária na companhia.

Já no Cras, agentes cadastram a garota de programa em todos os programas sociais em que ela se enquadrar. Exemplo foi a iniciativa da secretaria no Núcleo dos Ciganos, na região de Utinga, onde foram feitas ações de conscientização e estreitamento de laços com as profissionais do sexo diretamente na casa delas.

“O trabalho realizado pela equipe tem o objetivo de apoiá-las para que possam buscar alternativas de trabalho, sustento e moradia. Ainda não é possível mensurar quantas conseguiram sair definitivamente da prostituição, até porque o acompanhamento está relacionado à ideia de que a opção por caminhos alternativos seja uma escolha delas”, explica Silmara. 

Fonte: Diário do Grande ABC

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