Antes mesmo de estrear,
‘Babilônia’, a atual novela das nove da Rede Globo, causava polêmica nas ruas.
Os comentários e ameaças de boicote surgiram nas redes sociais desde que foi
anunciado que as atrizes Fernanda Montenegro e Nathália Timberg viveriam um
casal de lésbicas na trama.
por Jessica Romero
Babilônia estreou dia 16 de março
e mesmo tendo elenco, autor e horário de prestígio, não emplacou na audiência e
vem sofrendo duras críticas. Desde então, a emissora tem traçado estratégias de
comunicação e até mesmo mudado o rumo da história da novela para tentar agradar
e entender seu público.
Escrevo esse texto para
compartilhar minha visão de telespectadora curiosa que tenta entender os
motivos pelos quais o público repudia tanto a novela. Por tudo que li, pelas
cenas que vi e pela melhor pesquisa de recepção que se pode fazer, o boca a
boca, acredito que Babilônia sofra rejeição principalmente por mostrar mulheres
que não queremos ver.
Teresa e Estela
Logo no primeiro capítulo vimos
duas das atrizes mais respeitadas do país se beijando. Para além da lesbofobia
e homofobia da maioria do público, a cena chocou não só por ser um beijo de
personagens mulheres lésbicas, mas também pela discriminação etária a essas
mulheres. As personagens lésbicas que antecederam Babilônia e que, apesar das
críticas, tiveram aprovação do público, eram Clara e Marina, interpretadas
pelas jovens, belas e carismáticas atrizes Giovana Antonelli e Tainá Muller na
novela “Em Família”.
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de personagem da favela, em Babilônia, para viver psicóloga em I Love
Paraisópolis
Essas, mesmo correspondendo ao
padrão de beleza feminina imposto a nós mulheres, se beijaram só lá no fim da
história. E só beijaram porque teve casamento, vestido branco e troca de
aliança tradicional. Isso enquanto os casais héteros protagonizavam cenas
quentes de sexo desde o primeiro capítulo.
No caso de Babilônia, a audácia
maior foi colocar duas atrizes idosas se beijando e mostrando que sim, lésbicas
são mulheres como todas as outras, envelhecem e viram avós também. Lésbicas são
mulheres que amam e demonstram afeto, assim como sua avó. Não existe prazo de
validade para o amor ou desejo independente da orientação sexual da pessoa. Mas
isso, mostrado na televisão, incomoda. A sexualidade da mulher incomoda. A
sexualidade da mulher lésbica incomoda muita gente e mais ainda.
Basta inverter a cena para vermos
que além da homofobia está o etarismo em relação às mulheres. Se a cena de
carinho fosse entre um casal de vovozinha e vovozinho todos achariam “fofo”, ou
até mesmo emocionante, um amor duradouro. O casal Teresa e Estela são as
mulheres que o Brasil não quer ver, são invisibilisadas porque não servem nem
para satisfazer o homens que fetichizam as relações entre mulheres. Elas estão
ali para nos provar que lésbicas são gente para além de todos os estereótipos
da mídia. Elas são invisibilizadas na rua mas, ao aparecerem na televisão
chocam, porque nos lembram que … existem.
Regina
Apesar de um pouco ofuscada,
Babilônia também tem sua mocinha. Ela é Regina, personagem vivida pela atriz
Camila Pitanga. Regina é uma mulher negra, moradora do Morro da Babilônia no
Rio de Janeiro. Foi enganada numa relação com um homem branco casado e
engravidou. Ele omitiu a gravidez e se ausentou, mas ela escolheu ter a filha e
criou a menina sozinha. Teve que adiar o sonho de cursar uma faculdade, mas
trabalha duro e consegue viver com dignidade. É Independente financeira e
emocionalmente. Também é a chefe de família dentro de sua casa. Regina é Maria,
Cláudia, Fátima, Fernanda, Patrícia e tantas outras mulheres da vida real. A
estatística que o comercial de margarina esconde.
As “mães solteiras” que matam não
só um leão, mas uma selva inteira por dia, para assumirem responsabilidades
duplas. Não é mais aquela mocinha submissa que sofre por amor chorando no
quarto. É a mulher real que tem que engolir o choro para sofrer escondido só
depois de trabalhar, pegar a condução para voltar pro morro, cuidar da casa,
dos filhos e se sobrar tempo… de si. Além disso, Regina é uma mulher
empoderada, não abaixa a cabeça para o racismo ou machismo, bem diferente das
personagens negras que costumávamos ver retratadas na pele de empregadas
humilhadas.
Regina é a mulher negra que tem
consciência dos seus direitos e que surge para enfrentar o racismo e o machismo
cotidianos que sofre. Ela também é uma
mulher que não queremos ver, pois representa o país machista, racista e
silenciador de mulheres mães que ainda vivemos.
Da esquerda para direita: Regina (Camila Pitanga), Paula (Sheron
Menezzes) e Beatriz (Glória Pires) personagens da novela ‘Babilônia’ da Rede
Globo. Imagens: Gshow/Divulgação.
Paula
Paula é outra personagem que
aborda a questão racial brasileira. Ela é interpretada por Sheron Menezes e
toca ainda mais fundo na ferida do público. Ela é o contrário de toda
representação costumeira estereotipada da mulher negra e da favela na ficção.
Paula é advogada bem sucedida, não tem filhos e não corresponde ao estereótipo
de mulher “barraqueira” ou até mesmo hiperssexualizada que as novelas costumam
construir. Ela vem protagonizando cenas marcantes ao se firmar como
profissional competente e mulher empoderada que sonha com um futuro diferente
das outras mulheres de sua família.
Por agora ter condições
financeiras, decide se mudar para um apartamento num bairro próximo ao morro em
que vivia. Uma nova narrativa ao recusar a supervalorização do discurso de
“respeito às origens”, que era usado em muitas novelas para representar uma
favela feliz e sem problemas, mascarando a desigualdade social dos morros e
periferias brasileiras. Ela é a mulher que não queremos ver porque é a negra
bem sucedida, a cotista de sucesso e a nova estatística que surge lentamente,
mas com muita força no país. De terninho, cabelo black power, fala sensata e
inteligente, ela vem para desmistificar as poucas possibilidades que eram dadas
as personagens negras nas novelas e também na vida: a empregada, a
“sexualizada” ou a “mãe solteira” da favela. Paula é mais uma das mulheres que
o Brasil não quer ver para não ter que assumir seu racismo e encarar suas
mudanças.
Beatriz
E por último, temos a vilã
Beatriz. De justa e bom exemplo não tem nada, mas não deixa de levantar
polêmica por seus feitos. Interpretada pela atriz Glória Pires, Beatriz é uma
mulher sem pudores desde o primeiro capítulo. É uma vilã que mata, rouba e
comete vários tipos de crimes. Conduta nada exemplar. Mas sinto que o que
incomoda o público não é apenas a vilã ser vilã, afinal, quantas já não tivemos
em toda a história da telenovela brasileira?
O pecado de Beatriz é a falta de
pudores também para o sexo. A personagem seduz o tempo todo e usa seu corpo
como bem entende, às vezes por conveniência em seus planos, mas às vezes por
puro prazer.
Nas redes sociais, comentam ser
um absurdo a forma como a personagem vê e usa o sexo. Uma grande hipocrisia,
afinal uma cena como a do vilão Marcos (Thiago Lacerda) na novela das sete,
‘Alto Astral’, não repercute tanto e nem é considerada absurda. Um homem agride
uma mulher, uma criança e é racista com um menino, mas passa batido pelo
público. Afinal, por pior que seja, qualquer comportamento desviante de homens
ainda será menos desviante que um comportamento sexual sem pudores de uma
mulher. Não queremos ver e nem falar sobre o prazer e a sexualidade das
mulheres. Matar e roubar é natural da vilania, mas transar com vários… é
absurdo! Beatriz também é uma mulher que não queremos ver.
Eu não sei como a novela vai
caminhar daqui para frente, os boatos dizem que a Globo vai “suavizar” algumas
cenas e ser menos explícita nas representações femininas, que para mim são o
grande trunfo da trama também pela interpretação das atrizes. Mas, a lição que
fica, pelo menos até aqui, é que se o público não quer mudar suas visões
conservadoras e preconceituosas, a TV que mude sua forma de representar o
público. A grande questão, porém, é que não existe mais “o público”.
O telespectador e os personagens
estão mudando e mesmo que não queiram assistir na tela, terão que lidar na rua
e até mesmo dentro de casa com as mudanças do mundo. Gays estão “saindo do
armário”, eles existem. Lésbicas, também. Cotistas estão entrando na
universidade, estão tendo os melhores desempenhos e vão sair de cabeça erguida
diante do racismo. Uma cotista poderá ser sua advogada, professora ou médica de
seu filho. Não vai adiantar desligar a TV ou simplesmente mudar de canal, as
mulheres que não querem ver e os direitos que não querem partilhar já
atravessaram o muro da ficção e lutam para serem enxergadas, mesmo que alguns
não queiram.
Autora: Jéssica Romero é
feminista e jornalista em construção. Escreve no blog: Desvio Livre.
Fonte: Blogueiras Feministas
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