Precisamos de imagens que tenham
ressonância no fundo de misericórdia e de beleza que nos habita. É dele que nos
vem o convite para não temer o caído na estrada ou de nos alegrarmos com as
pequenas vitórias de nosso dia a dia, com os pequenos gestos de ternura e
misericórdia em meio à mistura violenta e paradoxal de nossa história.
Estamos no final do ano. E como
sempre somos convidados a olhar para trás, para rever no ano que passou os
grandes acontecimentos nacionais e internacionais que marcaram a vida. Resenhas
históricas, econômicas e políticas enchem os programas televisivos, os jornais
e as revistas do último mês do ano. Fazem-se algumas previsões, horóscopos e
estatísticas para o ano novo, ensaios futuristas de diferentes tipos e
qualidades.
O que eu gostaria de olhar ou de
rever do que passou? O que gostaríamos de tornar vivo em nossa memória? Para
além da corrupção presente em todo o continente, da seca e das enchentes, dos
acidentes aéreos e rodoviários, do tráfico de drogas e da guerra nos centros e
periferias o que nos fica de bom deste ano? Quais foram as coisas que guardamos
para além da linguagem das crises econômicas e financeiras, para além da crise
alimentar verdadeira e fictícia, para além da crise do petróleo, para além das
guerras sem fim? O que falou ao nosso coração na linguagem do amor e da
misericórdia? O que foi escutado e gravado em nossas mentes na linha da
construção de nossa humanidade tão faminta de justiça e de ternura? O que
continua em nós como um bom eco ou como ressonância de coisas que ainda são
capazes de acordar em nós bons sentimentos e boas ações?
Difíceis perguntas e difíceis
respostas. Precisamos parar para pensar antes de responder a estas perguntas
tão simples e diretas. No fundo fixamos muito pouco as coisas boas e muito
poucos conseguem falar delas. É como se o sabor bom das coisas fosse
instantâneo, fugidio e logo esquecido. É como se o amargo e o ácido do
sofrimento perdurassem mais, apenas amainados pelos rápidos instantâneos de
prazer.
Constatamos a cada dia que os
meios de comunicação se ocupam em difundir cada vez mais um número maior de
informações trágicas carregadas de uma dramaticidade ímpar. Repetem estas
informações cinco ou dez vezes ao dia como se fosse novidade. Requentam
notícias como se fossem as da última hora. Retemos em nossos olhos e em nossa
memória as cenas trágicas da queda de um avião, da revolta das famílias
enlutadas, dos corpos mortos resgatados das enchentes, dos cadáveres de bois e
vacas estendidos pelo sertão nordestino, da terra aberta pelo sol intenso
mostrando suas entranhas ressequidas, de um incêndio devastador dos campos...
Quase nos intoxicamos com as notícias sobre a captura, o julgamento, a prisão
ou a impunidade dos corruptos. Por pouco não sentimos o intenso calor do
aquecimento global invadindo o nosso corpo sem que o ar condicionado possa nos servir.
Uma poluição de más notícias nos
habita, um quase gosto de sangue invade nosso paladar. Para sair desse inferno
imposto só mesmo a alienação da propaganda consumista! Consumir para esquecer
dos males diários...
A tragédia parece interessar mais
do que os pequenos pontos de luz que nascem das relações humanas e se
multiplicam em muitos lugares de diferentes maneiras. A tragédia de diferentes
tipos faz notícia, aumenta o poder da mídia e de seus donos! Basta ler os
diários, sobretudo os populares e perceberemos o que chega aos olhos e ao
conhecimento dos leitores.
Esta poluição chega igualmente às
igrejas. Os pregadores não hesitam em acentuar as obras dos demônios
manifestadas nas doenças e em muitas outras catástrofes coletivas e pessoais.
Em pleno Advento já encontrei
gente de igreja preferindo contar mais detalhes sobre a fuga de Maria e José ao
Egito, a peregrinação deles em busca de um lugar para ficar, a matança dos
meninos de tenra idade mandada executar por Herodes, como se fossem os
acontecimentos mais importantes daquele momento.
As tragédias de cores fortes
interessam mais do que descobrir o frágil sentido de uma criança abrigada numa
manjedoura ou de uma flor que nasceu num telhado ou de uma criança com
dificuldade escolar que conseguiu aprender a ler e escrever ou de um idoso
sorrindo, pois foi capaz de escrever um poema de amor.
As coisas boas não são notícias
repetidas cinco ou dez vezes como as más. Não há imagens que nos ajudem a fixar
a beleza e a justiça nas relações. Imagens que poderiam voltar aos nossos olhos
e ouvidos como para educarem a memória de nosso corpo naquilo que pode nos
fazer bem. Imagens que poderiam nos convidar à reflexão sobre o mundo que
estamos construindo e sobre aquele que queremos ver nascer ainda hoje.
Precisamos de imagens que tenham
ressonância no fundo de misericórdia e de beleza que nos habita. É dele que nos
vem o convite para não temer o caído na estrada ou de nos alegrarmos com as
pequenas vitórias de nosso dia a dia, com os pequenos gestos de ternura e
misericórdia em meio à mistura violenta e paradoxal de nossa história.
Olhando para trás há tantas
coisas boas que sustentaram a nossa vida! Há tantas coisas boas que irromperam
nos diferentes rincões da grande América Latina! A horta sem agrotóxicos que
foi criada no bairro, o crescimento do “Livro em roda”, organização que
incentiva a leitura das crianças no agreste nordestino, o campo de esportes
entregue a um bairro marginalizado, a inauguração de mais um posto de saúde, a
viagem dos velhos do sertão para conhecer o mar, o artesanato de bijuterias das
mulheres de um bairro, a inauguração do curso de cidadania, as lutas das
mulheres pelo respeito a seus corpos, o curso de computação organizado pelos
jovens...
Olhando para trás vi a
menina-moça que voltou a enxergar, o paralítico que conseguiu uma nova cadeira
de rodas, o mutirão de limpeza da rua, a organização do lixo seletivo...
Olhando para trás um homem bom
foi eleito presidente, uma mulher lutadora foi eleita vereadora, um corrupto
perdeu as eleições...
Olhando para trás há pequenos
gestos de amizade, de ajudas inesperadas, de canções que movem o coração....
Em meio à espantosa turbulência
de nosso tempo, à dominação do império da novidade, à dominação do lucro
individual, em meio às ameaças de todo tipo precisamos recordar e resgatar as
coisas boas a fim de viver um pouco mais de sua força. Precisamos sair da
preguiça imposta pelo capitalismo que não nos permite mais fazer um bom pão
caseiro, que toma nosso tempo inteiro e não nos deixa saborear um suco feito em
casa ou um café com leite e bolo de fubá quentinho...
No nosso ano que está quase
terminando, provavelmente tenhamos vivido estes momentos de extraordinária
gratuidade, momentos que ficam com sabor de quero mais no ano novo que já
desponta. Tentemos recordá-los, reconhecer sua importância no sustento de nossa
vida, torná-los significativos em nossa história.
Estes gestos simples nos ajudam a
continuar “lutando contra principados e poderes” como disse um dia São Paulo,
não com canhões, mísseis e espadas de guerra... E nem com as tragédias humanas
usadas como álibi para manter o poder dos poderosos.
Uma mesa posta, toalha e flores,
pão saído do forno, um delicioso vinho cujo odor se sente de longe... Tentemos
cada dia na simplicidade das coisas essenciais à vida despertar a ternura
adormecida em nós e olhando para trás dar graças por estarmos aqui no
misterioso momento presente.
Fonte: Koinonia
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