Uma subsaariana que passou sete meses em um campo do Marrocos
As vítimas das máfias que cruzam a África rumo à Espanha
sofrem estupros sistemáticos. "Os chefes escolhem aquelas de que mais gostam. Pelo caminho,
as engravidam”, afirma um jovem nigeriano em trânsito.
Uma mulher negra, com um vestido curto laranja fluorescente,
segura com as mãos o ventre inchado enquanto descansa sentada na sala de
embarque do porto de Melilla. Tem cerca de 20 anos e a cara fendida por
cicatrizes. Viaja a Málaga e faz parte de um grupo de subsaarianos que acaba de
sair do Centro de Estadia Temporária de Imigrantes (CETI) da cidade autônoma
espanhola encravada no norte da África. Hoje é o grande dia, o do salto para a
península Ibérica, com o qual os subsaarianos sonham desde o momento em que
abandonam sua terra. A mulher, entretanto, não parece feliz. É parca em
palavras.
Reticente, conta que é nigeriana, que está grávida de quatro
meses e que passou os últimos três no centro de triagem. Antes, viveu a duras
penas nas matas que rodeiam a cidade marroquina de Nador, onde engravidou. Não
há espaço para mais detalhes. Seu vigilante, também nigeriano, apresenta-se com
cara de poucos amigos e dá a conversa por encerrada. Ele controla seus
movimentos. E ela, segundo as suspeitas da polícia e das organizações que
trabalham com mulheres subsaarianas, é mais uma vítima das redes de tráfico
humano que forçam essas migrantes a se prostituírem durante sua infernal
travessia pelo norte da África e durante longos anos em solo europeu.
Saltar cercas pontiagudas é talvez a forma mais conhecida
pela qual se entra na Península, mas não é a maneira escolhida pela maior parte
das mulheres. Elas, salvo raras exceções, chegam ao território espanhol em
balsas improvisadas ou escondidas em carros que atravessam os postos de
fronteira. A chegada dessas subsaarianas, obscurecida pelo ruído midiático da
cerca, esconde transações de redes criminosas transnacionais que compram e
vendem mulheres que são abusadas e forçadas a exercer a prostituição. A Espanha
é um dos destinos finais dessas escravas sexuais, cujo trânsito até a Península
está bem documentado.
Cada uma depende de um só homem, mas muitos outros as utilizam”,
diz uma conhecedora dos acampamentos
As rotas que as redes mafiosas traçam são conhecidas. Também
são conhecidos a localização dos acampamentos marroquinos onde elas esperam
para cruzar a Europa e os polígonos industriais espanhóis nos quais as mulheres
se prostituem à força. A grande interrogação é como é possível que, com tal
grau de conhecimento, não se possa proteger essas mulheres de agressões e
delitos tão previsíveis. Para alguns especialistas, parte do problema decorre
de entraves jurídicos relativos às fronteiras nacionais, que não se prestam a
conter fenômenos transnacionais como o tráfico de pessoas.
Numa investigação de campo, as evidências são abundantes. Os
dados estão aí para quem quiser ouvi-los. John – nome fictício –, um nigeriano
de vinte e poucos anos, oferece informação detalhada às portas do centro de
imigrantes de Melilla, aonde chegou recentemente, mais de um mês depois de
pular a cerca. Antes, passou dois anos em Maghnia (Argélia), trabalhando para
os chefes das redes de tráfico de pessoas, até juntar dinheiro para pagar o
pedágio cobrado para cruzar a fronteira da Argélia com o Marrocos. “Os homens
mentem às mulheres”, diz. “Dizem a elas que é fácil chegar à Europa e que lá
elas encontrarão trabalho. Que irão para o Níger e dali à Espanha de avião. Mas
no Níger dizem que elas terão de ir primeiro até a Argélia. Nesse ponto, as
mulheres já não têm dinheiro e não têm mais opção senão segui-los.” E
prossegue: “As mulheres são vendidas nas fronteiras. Os chefes nigerianos
escolhem aquelas de que mais gostam. Pelo caminho, as engravidam.” John conta
que na travessia há mulheres de diferentes idades. Desde adolescentes até com
cerca de 30 anos. Diz também que algumas se arrependem, mas não têm como
voltar. E que outras ainda guardam a esperança de uma vida melhor na Europa.
“Qualquer mulher que vier aqui sofreu abusos”, assegura. “Elas não lhe dirão
isso, mas esse é o sistema.”
Antes de chegar a Melilla ou à costa andaluza, as mulheres
passam meses vivendo com dificuldades em Oujda (localidade marroquina
fronteiriça com a Argélia) ou nas matas de Nador, a 90 quilômetros de Melilla.
A polícia marroquina conhece a existência dos acampamentos de subsaarianos e
patrulha ao redor para dissuadir os curiosos de entrarem. Uma pessoa que
frequenta o lugar habitualmente explica que os traficantes se dividem em dois
grandes grupos, os francófonos – do Mali, Congo e Camarões – e os anglófonos –
da Nigéria –, mas afirma que “em todos eles a máfia opera, e em todos há
tráfico humano”. “Pelas manhãs, enviam [as mulheres] para mendigarem”, relata.
“Os estupros sistemáticos se dão sobretudo por parte dos anglófonos. Cada uma
depende de um só homem, mas muitos outros as utilizam. Primeiro o chefe as
estupra, e depois o resto. Estão a serviço dele. O objetivo é que engravidem,
porque assim têm mais possibilidades de ficarem na Espanha.” As crianças são
seu passaporte. E conclui: “Se a situação dos imigrantes homens é terrível, a
das mulheres é cem vezes pior. Isto é uma autêntica tragédia humanitária.”
A sala de espera da Península são os acampamentos na mata:
lugares hostis, gelados no inverno e abrasadores no verão, onde a sarna salta
com facilidade de uma pele para outra. A camaronesa Chantal – nome fictício –
mora há sete meses num desses acampamentos, chamado Bolingo, junto com seus
filhos e dezenas de outros subsaarianos. A conversa com ela acontece num lugar
seguro, em Nador. “Dormimos no chão, sobre um plástico”, relata. “A vida não é
fácil. A polícia vem a todo momento. Em uma blitz, levaram-me para Rabat, e
depois voltei. No acampamento há muitas mulheres grávidas e crianças.” Essa ex-
garçonete explica que vai sobrevivendo com o que ganha mendigando na rua e com
a água que “os árabes” lhe dão. Que não há comida todos os dias, mas o pouco
que consegue guarda para os filhos, de seis e quatro anos, que hoje a
acompanham. Estão há mais de um ano sem irem à escola.
“Não posso recomendar a ninguém que passe por este
sofrimento. O sonho da minha vida é que meus filhos comam, durmam e vão à
escola. Que tenham as oportunidades que eu não tive. O que me salva é a
esperança de pensar que algum dia conseguirei isso.” Chantal espera agora a sua
oportunidade de cruzar o estreito de Gibraltar em um bote inflável. Diz que a
presença de máfias e os abusos nos campos é um segredo de polichinelo, mas
assegura não ter nada a ver com tudo isso. “Falam de estupros. O problema é que
há mulheres que não respeitam a si mesmas, e por isso não são respeitadas, mas
eu não vi nada.”
Como Chantal, várias mulheres em trânsito a partir da África
respondem com evasivas e visivelmente atemorizadas quando perguntadas sobre
detalhes do caminho ou sobre casos de estupro, gravidez e abortos clandestinos
nos acampamentos. Mudam de cara e dão meia-volta. “Eu não sei de nada”, é uma
despedida que se escuta com frequência. As organizações que trabalham com
subsaarianas afirmam, entretanto, que é praticamente impossível que uma mulher
chegue ao norte do Marrocos sozinha, de costas para as máfias. As que chegam em
balsas a Melilla ou que penetram camufladas pela fronteira acabam no centro de
imigrantes.
Carlos Montero é o diretor do CETI. É também uma pessoa
próxima, que conhece bem os que passam pelo centro, no qual os imigrantes se
amontoam. Agora há 1.480 pessoas. “Muitas das subsaarianas que passam por aqui
sofreram abusos ou são escravas sexuais dos chefes mafiosos”, explica. “Cerca
de 99,9% das nigerianas que vêm do Marrocos são exploradas sexualmente.” Só em
2013, 59 mulheres foram transferidas do CETI para a Península por violência de
gênero ou tráfico.
Os indícios da exploração sexual se acumulam nos recônditos
do centro de imigração. É frequente, por exemplo, que na hora em que uma mulher
é chamada pelo alto-falante para que vá ao escritório, o homem que a vigia se
apresente para ver o que acontece. E então há os abortos. As mulheres tentam
escondê-los, mas certas vezes, quando há hemorragias, acabam inevitavelmente na
enfermaria. Se são detectados indícios como esses, que costumam corresponder a
casos de escravidão sexual, a direção do CETI alerta as ONGs que recebem as
mulheres quando desembarcam na Península e que as alojam em apartamentos
provisórios.
Um dos problemas é que muitas subsaarianas chegam de bote
diretamente às costas da Andaluzia, sem passar por um centro de imigração.
Outro, mais relevante, é a incapacidade das organizações receptoras de agir. Em
questão de dias, as recém-chegadas à Península desaparecem do radar das ONG e
dos serviços sociais. Logo depois de chegar aos apartamentos de acolhida, um
homem vai buscá-las e não são vistas nunca mais. Tornam-se invisíveis. Já nas
mãos da sucursal mafiosa espanhola, a mulher se prostitui à força durante anos,
sob a estreita vigilância de seus captores, para pagar a dívida contraída no
caminho: em torno de 50.000 euros, segundo calculam as pessoas próximas às
vítimas. A rede espanhola contra o tráfico de pessoas estima que entre 40.000 e
50.000 mulheres sejam exploradas sexualmente na Espanha.
Uma rede de tratantes
As redes que traficam mulheres subsaarianas contam com
diferentes atores que exercem funções específicas, segundo detalha o relatório
recente da Women’s Link Worldwide: o tráfico de mulheres e meninas nigerianas:
a escravidão entre fronteiras e preconceitos.
» Captadores. Podem ser familiares, vizinhos, pastores da
igreja ou funcionários públicos.
» ‘Madame’. A mulher que se encarrega da exploração da
vítima no destino. Seleciona as mulheres na origem e adianta os gastos com
transporte. Vigia para que as ordens se cumpram.
» ‘Guidemen’. Nigerianos que vivem no norte da África e não
conseguiram cruzar a Europa. Encarregam-se do traslado das mulheres e crianças
da Nigéria até Marrocos.
» ‘Marido’ ou ‘noivo’. Estabelece uma relação afetiva com a
vítima. A rede decide quem será. São os homens que em geral as engravidam.
» ‘Connection man’. O homem que organiza a viagem para a
Europa.
» Funcionários corruptos. Peça-chave para que a rede
funcione às costas da justiça.
A situação se agravou nos últimos anos com a chegada cada
mais vez numerosa de menores, segundo informa Rocío Nieto, presidenta da
Apramp, uma associação que oferece apartamentos protegidos às vítimas que
atende. “São crianças e adolescentes”, explica. “No ano passado passaram 20
menores por nosso apartamento.” Ramón Esteso, responsável por inclusão social
da Médicos do Mundo, uma ONG que presta assistência sanitária a prostitutas
subsaarianas na Espanha, garante que “as que chegam a Almería ou Granada cedo
ou tarde serão vítimas de prostituição forçada”. Explica também que muitas
mulheres dizem que são de outra nacionalidade, mas na verdade são nigerianas.
“E as que vêm de outros países africanos, ainda que saiam de seus países
livremente, têm uma probabilidade altíssima de serem cooptadas pela rede no caminho”,
acrescenta. “Alguma coisa está falhando. Precisamos de ferramentas jurídicas
para dar proteção a essas mulheres.”
Organizações como a Comissão de Ajuda ao Refugiado de
Euskadi, que recentemente visitou Melilla, pedem que se considere o tráfico de
pessoas com fins de exploração sexual como motivo de asilo, sem que seja
preciso fazer uma denúncia. Sua diretora, Patricia Bárcena, entende que, apesar
de não serem pessoas perseguidas pelo Estado ou condenadas no próprio país de
origem por conduta criminosa, são pessoas em perigo que necessitam de proteção
internacional, em parte porque enfrentariam riscos ainda maiores se fossem
devolvidas a seus países. Lamenta, além disso, que dos 40 pedidos de asilo de
mulheres vítimas de tráfico que tramitaram nos serviços jurídicos da CEAR entre
2009 e 2013 —até 29 delas da Nigéria— nenhum tenha sido aprovado. “As
autoridades espanholas executam com frequência expulsões de cidadãs nigerianas
a seu país de maneira não segura, considerando que não são vítimas de tráfico,
apesar da existência de indícios”, destaca a Women’s Link Worldwide em um
relatório detalhado sobre o assunto.
Mesmo assim, Bárcena reconhece que o asilo em si não basta e
que são necessárias medidas de proteção adicionais. Esteban Velázquez, responsável
pela Delegação de Migrações do Arcebispado de Tanger e conhecedor da situação
em Nador e Melilla, pede a presença internacional nas fronteiras. Em sua
opinião, as leis e medidas nacionais não bastam. “Esta e outras
vulnerabilidades sistemáticas dos direitos humanos na fronteira sul da Europa
exigem observadores internacionais permanentes. Não é possível que a União
Europeia dê dinheiro apenas para aumentar a segurança e não se preocupe com as
violações dos direitos humanos.”
Atualmente, a essas mulheres é aplicado na Espanha o artigo
59 bis da lei de estrangeiros —segundo o qual se denunciarem seus captores e
colaborarem com a polícia para desarticular as redes, obterão proteção. O
problema é que as mulheres do caminho calam, não denunciam. Nem tanto pela
presença física de seus vigilantes, mas sobretudo pelo cárcere mental no qual
vivem. Quem extorque as ameaça de matar sua família se fugiram e elas viajam
submetidas a feitiçaria e rituais de vodu que as aterrorizam. “O medo impede
que a grande maioria delas dê o passo. São túmulos”, reconhece José Nieto,
chefe do centro de inteligência da Unidade Contra Redes de Imigração Ilegal e
Falsificação de Documentos (UCRIF) da Polícia Nacional. Explica que a polícia
oferece às subsaarianas o 59 bis porque “o modus operandi com o qual chegam
essas mulheres supõe a existência de indícios de tráfico. Se ainda não são
vítimas, seguramente serão”. Sem uma denúncia e com as leis atuais, é difícil
que se possa oferecer proteção a essas mulheres. “Se não colaboram, podem
passar anos fora do radar.”
O policial sustenta que houve progressos importantes em
termos penais e explica que agora há um novo plano nacional contra o tráfico,
mas também fica surpreso diante da passividade dos cidadãos em relação ao tema.
“Estamos diante de um delito socialmente permitido. Eu gostaria que quando as
pessoas fossem a uma boate tomar um drinque, pelo menos aventassem a
possibilidade de que a mulher com quem estão conversando não está ali porque
quer; que a escravidão existe em nosso país no século XXI.”
Fonte: El Pais
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