Duas decisões recentes da Justiça reacenderam a discussão
sobre a atuação do Poder Judiciário em casos de violência contra as mulheres.
Os desembargadores do Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo inocentaram um
fazendeiro da acusação de estupro contra uma adolescente de 13 anos alegando
que ele não tinha como saber que ela era menor de idade, em virtude do seu
comportamento.
Já no TJ de Minas Gerais, dois desembargadores consideraram que
certas fotos e formas de relacionamento por parte de uma mulher demonstram “não
ter ela amor-próprio e autoestima”.
“O Judiciário, como parte da sociedade, reflete esse
problema em que a violência do homem perante a mulher é diminuída. Isso tem de
ser combatido. Será que se fosse o contrário, a vítima de violência fosse
homem, seria assim?”, analisou a professora de Direito da Faculdade Getúlio
Vargas (FGV) Angela Donaggio.
No caso paulista, que corre em segredo de justiça, um
fazendeiro da cidade de Pindorama foi preso em flagrante, em 2011, com duas
meninas, uma de 13 e outra de 14 anos. Somente com a primeira ficou comprovada
a relação sexual. Ele chegou a ficar preso por 40 dias, mas foi libertado.
Após ter sido condenado em primeira instância, ele foi
absolvido pela 1ª Câmara Criminal Extraordinária do TJ paulista, no dia 16 de
junho. A consideração é de que as meninas se prostituíam e que o fazendeiro não
teve condições de avaliar acertadamente a idade das garotas.
Na argumentação, o relator do caso, acompanhado pela maioria
do colegiado, argumenta que “não se pode perder de vista que em determinadas
ocasiões podemos encontrar menores de 14 anos que aparentam ter mais idade”.
E prossegue: “Mormente nos casos em que eles se dedicam à
prostituição, usam substâncias entorpecentes e ingerem bebidas alcoólicas, pois
em tais casos é evidente que não só a aparência física, como também a mental
desses menores, se destoará do comumente notado em pessoas de tenra idade”.
No caso mineiro, Rubyene Oliveira Borges processou o
ex-namorado, Fernando Ruas Machado Filho, por ele ter divulgado fotos íntimas
dela para familiares e amigos. Em primeira instância, ele foi condenado a pagar
uma indenização por danos morais de R$ 100 mil.
O réu recorreu e a 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça
de Minas Gerais reduziu a indenização de R$ 100 mil para R$ 5 mil. O julgamento
ocorreu em 10 de junho deste ano e o acórdão foi publicado no dia 24 do mesmo
mês.
O relator do processo, desembargador José Marcos Rodrigues
Vieira, já havia proposto redução ao valor do dano moral para R$ 75 mil, mas
reforçou que não se pode considerar a vítima culpada pela situação.
“Pretender-se isentar o réu de responsabilidade pelo ato da autora
significaria, neste contexto, punir a vítima.”
Porém, o revisor do processo, desembargador Francisco
Batista de Abreu, discordou de Vieira e caracterizou a vítima como alguém de
“moral diferenciada”, a quem não caberia o cuidado com a mesma. “Quem ousa
posar daquela forma e naquelas circunstâncias tem um conceito moral
diferenciado, liberal. Dela não cuida. (…) A exposição do nu em frente a uma
webcam é o mesmo que estar em público.”
O magistrado argumentou ainda que o relacionamento amoroso
entre os dois não poderia ser considerado, já que havia sido de um tempo curto
e que no momento da realização das fotos não havia mais um relacionamento
constituído. “Não foram fotos tiradas em momento íntimo de um casal ainda que
namorados. E não vale afirmar quebra de confiança. O namoro foi curto e a
distância. Passageiro. Nada sério”, afirmou.
Angela ressalta que, no TJ de Minas Gerais, o desembargador
Vieira fez uma avaliação técnica sobre o caso. Mas o relator fez uma análise
moral, apegando-se a discorrer sobre o que seriam fotos sensuais ou que tipo de
relacionamento pode ser considerado um namoro ou não.
“Em praticamente todos os trechos do voto se busca
desmoralizar a autora da ação. E o objeto do julgamento não é esse, mas sim a
responsabilidade do réu em divulgar as fotos íntimas”, afirmou. Angela admite
que não se pode inibir valores morais e ideologia pessoal, mas o julgamento
deve ser pautado na norma jurídica.
Para ela, uma decisão que reduzisse o valor da indenização,
somente, ainda seria aceitável. “Mas uma decisão baseada em argumentos dessa
natureza é muito triste de se ver. Deve ser extremamente frustrante para a
autora da ação ser vítima da divulgação das imagens e receber essa decisão”,
afirmou.
Para a militante da Marcha Mundial de Mulheres Sônia Coelho,
a inversão de culpa nesses casos reforça os valores machistas e abre caminho
para a perpetuação da violência. “Uma das principais consequências é que as
mulheres ficam constrangidas em denunciar novos casos de violência, além da
descrença que isso causa sobre o Poder Judiciário”, afirmou.
“Os agressores acabam por se sentir muito à vontade com
isso. É quase um ambiente de compreensão, de solidariedade”, complementa Sônia.
Sônia lembra que os casos não são isolados, mas ocorrem em
muitas instâncias do Judiciário e locais do país. Ela lembrou do caso do pai
que engravidou a própria filha, então com 12 anos, na cidade de Beberibe, no
Ceará. O juizWhosenberg de Morais Ferreira considerou que a menina tinha plena
consciência dos atos e havia seduzido o pai.
“Infelizmente, ainda é muito aceita a ideia de que o homem
age por amor, por ciúme ou por emoção nos casos de violência contra a mulher. E
assim as mulheres são consideradas culpadas dos atos que elas foram vítimas. A
mulher já é historicamente reprimida no espaço social, mas também o é no espaço
institucional e judiciário”, conclui a militante.
Em ambos os casos relatados, ainda cabe recurso.
Fonte: Rede Brasil Atual
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