O Mundial se revelou um mau negócio para a prostituição de rua. Boates e termas considerados de elite, onde o programa mais barato custa ao menos R$ 500, estão cheias de visitantes — o que tampouco significa aumento nos negócios.
Quarta-feira,
22h. Se normalmente o movimento no entorno do cruzamento das
avenidas Atlântica e Prado Júnior, em Copacabana, ainda é tranquilo, na semana
passada, os bares do calçadão já estavam lotados. A poucos metros do burburinho
da arena Fifa Fan Fest, bandos de estrangeiros com camisas das mais variadas
seleções circulavam, talvez até inadvertidamente, por uma das mais populares
áreas de prostituição da Zona Sul do Rio de Janeiro. Em algumas boates da
região, filas se formavam. Sorrisos abertos, olhares atentos. E entre cariocas
e visitantes, garotas e garotos de programa se preparavam para mais uma jornada
de trabalho. Como em outros setores da economia, os profissionais do sexo
esperam alavancar seus lucros durante a Copa do Mundo.
— A expectativa era enorme para a Copa, mas o movimento está
menor que o de costume. Os gringos andam em grupos, conversam muito, mas fecham
poucas negociações — conta Giovana, de 28 anos, doutoranda e garota de programa
há pelo menos três.
Existem diversas pesquisas científicas ligando sexo e
futebol. Um estudo espanhol concluído em 2012 pela Universidade de Valência,
por exemplo, comprovou que os níveis de testosterona sobem quando homens
assistem às partidas de sua seleção. Mas, mesmo com tanta bola rolando nos
gramados brasileiros, ao contrário do que se pensa, a Copa do Mundo não
provocou um aumento no mercado do sexo. Segundo o Observatório da Prostituição,
um projeto do Laboratório de Etnografia Metropolitana da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), dos 279 pontos reconhecidos de prostituição do Rio,
apenas 16 têm funcionado a todo vapor nas últimas semanas. Muitos chegaram até
a fechar as portas, e a expectativa pela chegada da prostitutas de outros
estados e até países tampouco se concretizou. Houve, porém, uma migração
interna. Redutos como a Vila Mimosa e o Centro andam às moscas, explica a
antropóloga Soraya Simões, coordenadora do Observatório da Prostituição, que
está em campo com um grupo de 22 pesquisadores de Brasil, Canadá, Estados
Unidos e Itália nas ruas diariamente para mapear o impacto do torneio no
meretrício carioca.
— Na Zona Sul, o número de prostitutas dobrou. Elas apenas
migraram principalmente para Copacabana, onde estão concentrados os eventos da
Copa do Mundo no Rio e os turistas. É preciso parar um pouco o pânico moral de
que grandes eventos vão aumentar o turismo sexual — afirma a antropóloga.
Dados da Aliança Global contra o Tráfico de Mulheres
(GAATW), que reúne mais de cem organizações não governamentais dos cinco
continentes, mostram que nos últimos dois Mundiais, na África do Sul e na
Alemanha, as previsões do aumento da prostituição e tráfico humano se mostraram
erradas. Os estudos revelaram que megaeventos esportivos de curta duração não
são lucrativos para donos de boates e bordéis, nem para profissionais do sexo.
E, além disso, grande parte do público desses eventos não tem condições de
pagar por serviços sexuais.
— O programa em Copacabana custa entre R$ 100 e R$ 200, e os
caras acham caríssimo. A maioria dos turistas é de países sul-americanos, mais
pobres que o Brasil. Eles vêm e dormem cinco, seis, amontoados num conjugado;
outros acampam na praia. Os estrangeiros que têm dinheiro, americanos,
europeus, estão evitando a prostituição de rua, com medo. Espanhóis e italianos
estão barganhando muito. É muita conversa jogada fora, muito tempo perdido. Parei
de trabalhar na rua durante a Copa — garante a paranaense Indianara Alves
Siqueira, de 43 anos, há 25 na profissão.
O Mundial se revelou um mau negócio para a prostituição de
rua. Boates e termas considerados de elite, onde o programa mais barato custa
ao menos R$ 500, estão cheias de visitantes — o que tampouco significa aumento
nos negócios. E nesses tempos de placares magros, as associações de defesa dos
direitos da prostitutas torcem mesmo é pela regulamentação da profissão.
— A sociedade confunde turismo sexual e exploração sexual.
As pessoas têm aquela imagem de que o turista sexual é um predador de
criancinhas, mas não é assim. O turista sexual é um cliente de prostituição.
Mas se há menores envolvidos, isso não é prostituição infantil, como se diz por
aí. Não existe prostituição infantil, o que existe é exploração sexual de
menores. Como toda exploração, em qualquer trabalho, tem que ser punida. Esse
desentendimento faz com que a prostituição acabe criminalizada como um todo —
queixa-se Indianara.
A confusão conceitual entre prostituição, exploração sexual,
turismo sexual e tráfico de pessoas é grande. No início da semana, o
apresentador Luciano Huck foi execrado nas redes sociais ao postar uma mensagem
convidando meninas solteiras a participar de um quadro onde a produção lhes
arranjaria um namorado “gringo” na Copa. Foi acusado de incentivar o turismo
sexual. Para os pesquisadores, as acusações não fazem sentido. Segundo a ONU e
a Organização Internacional de Turismo, essa prática ocorre quando “em viagem a
terras estrangeiras, utiliza-se a infraestrutura turística para o sexo
comercial com moradores locais”. E se viajantes procuram sexo casual ou pago,
consensual e legalmente, nas vitrines do tradicional bairro da luz vermelha em
Amsterdã ou no Moulin Rouge em Paris, por que não na carioquíssima Avenida
Atlântica, indagam antropólogos.
— Do ponto de vista jurídico, o turismo sexual é legal. A
prostituição também é legal, não é crime. Crime é a exploração sexual, que
precisa ser combatida. Existe aqui uma sanha moralista de querer dissociar a
imagem do Brasil do sexo e isso é problema para os empreendedores morais. O
importante é tratar as questões relevantes que envolvem o sexo comercial, como
os direitos civis, a saúde dos trabalhadores, os direitos das mulheres e das
crianças — diz Soraya Simões.
Todos esses mundos se misturam. Por definição, a
prostituição é exercida por uma pessoa maior de idade, capaz, de modo
consensual. No Brasil, desde 2002, é reconhecida oficialmente como atividade
profissional na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) do Ministério do
Trabalho na categoria “profissionais do sexo”. Garotas e garotos de programa já
têm direito a contribuir para o INSS e receber benefícios sociais como qualquer
outro trabalhador.
Mas aqueles que vendem o corpo enfrentam uma realidade bem
mais complexa. Se o ato de prostituir-se não configura crime, ter ou mesmo
administrar uma casa de prostituição é ilegal, conforme o Código Penal. Hoje,
qualquer um que se beneficie da transação sexual, seja o cafetão, o dono do
bordel ou mesmo os seguranças do local, está cometendo uma infração, o crime de
lenocínio, o que permite à polícia invadir esses estabelecimentos quando quer.
A contradição coloca na ilegalidade essas casas e deixa vulneráveis os
trabalhadores, expostos à exploração de redes de tráfico humano, cafetões e
proxenetas.
— Existe um projeto de lei do deputado Jean Wyllys (Psol-RJ)
tramitando na Câmara para retirar do Código Penal os artigos criminalizando
quem trabalha com as prostitutas. Dessa forma, elas poderão ter seus direitos
trabalhistas respeitados e exercer sua profissão num ambiente seguro, legal,
onde os donos de bordéis, boates e casas de prostituição paguem impostos e
sejam submetidos à fiscalização do Estado. É uma regulamentação semelhante ao
modelo adotado pela Alemanha — explica Soraya Simões.
Soraya se destaca na defesa da causa. Pode-se dizer até que
fez história. Afinal, é a primeira mulher não prostituta a assumir o comando de
uma associação de prostitutas — a ONG Davida, criada em 1992 pela ativista e
prostituta Gabriela Leite para defender os direitos da categoria. Pós-doutorada
em Antropologia e autora do livro “Vila Mimosa: etnografia da cidade
cenográfica da prostituição carioca”, ela acompanha com interesse os processos
de renovação urbana e a sociologia de grupos profissionais. Já estava
mergulhada em pesquisas quando conheceu Gabriela, fundadora da Davida, da grife
Daspu e a responsável por articular as prostitutas em um movimento político no
fim dos anos 1970. A empatia entre as duas foi imediata.
— Eu me lembro de, ainda garota, ter visto a Gabriela na TV,
dando uma entrevista ao Jô Soares. Eu, filha de uma família burguesa de
Niterói, ouvi aquela mulher articulada, charmosíssima, dizendo que era
prostituta. Fiquei fixada, e a procurei pela internet e fomos tomar um café.
Trabalhamos em diversos projetos juntas, de prevenção à Aids, renovação urbana,
direitos das mulheres. Ela foi me formando — relembra, com brilho nos olhos.
Soraya trabalha em um campo marginalizado, onde medo e
desconfiança são adversários a serem driblados. Se já foi discriminada por não
ser uma prostituta? Ela garante que não.
— Uma vez quando desfilei pela Daspu, minha mãe disse: ‘Mas
minha filha! Vão pensar que você é puta!’. Nos desfiles da Daspu, muita gente
quer saber quem é puta e quem não é. E a ideia era exatamente essa, trabalhar
com a dúvida, com o possível, a fantasia e a coqueteria próprias da
prostituição. Sou somente a presidente de uma ONG de homens e mulheres que têm
uma causa em comum, a defesa dos direitos civis, entre eles, o direito de
exercer legalmente e com segurança o ofício da prostituição.
Fonte: O Globo
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