quinta-feira, 19 de junho de 2014

O corpo no corpo no corpo -Frei Betto-

Na festa de Corpus  Christi convém lembrar que há um corpo dentro de um corpo dentro de um  corpo. De uma explosão inicial, chamada Big Bang, o Universo surgiu há 13,7  bilhões de anos e continua a se expandir em velocidade constante. Há 10  bilhões de anos uma estrela chamada supernova deu origem ao nosso sistema  solar. Um pedaço dela, sem calor suficiente para ser considerado estrela,  resfriou, e hoje é conhecido como planeta Terra, embora nele haja mais água  que terra.


Sutis combinações ambientais se somaram para  permitir, na Terra, o surgimento da vida, há 3,5 bilhões de anos. Em seu  processo evolutivo, o pai-universo, que gerou a ninhada de filhos conhecida  como sistema solar, e no qual se destaca a filha Terra, viu irromper, no seio  de nosso planeta, o fenômeno vida que, em suas variadas manifestações, gerou  um ser dotado de inteligência e sede de transcendência conhecido como  humano.

Milênios após o aparecimento do homem e da mulher – olhos  e consciência do Cosmo – aparece no Oriente Médio um pregador ambulante que,  herdeiro da tradição religiosa hebraica, nos revela que Deus é amor e habita  os nossos corpos, somos templos divinos, dotados de irredutível   sacralidade.

Muitos não prestaram atenção nas palavras de  Jesus. Continuaram a procurar a semente fora da árvore. Não perceberam que  Deus se incorporou em nosso corpo, que vive se alimenta do corpo da Terra, que  rodopia em torno do corpo do sistema solar, situado na extremidade do corpo de  uma galáxia conhecida pela belo nome de Via Láctea, uma entre bilhões de  colares estelares expandindo-se pelo incomensurável corpo do  Universo.

Não perceber que somos todos o corpo místico de Cristo  fez a fé equivocada exilar Deus para fora de sua Criação, confundindo  transcendência com deslocamento espacial. Essa visão distorcida favorece a  perplexidade causada pela notícia de que um cientista estadunidense criou vida  artificial no seio de uma bactéria. Como se Deus fosse o Grande Relojoeiro  definido por Isaac Newton. Ora, o que importa o relógio se ele não mostra as  horas?

Somos dotados de inteligência para desvendar todos os  mistérios da natureza - do Big Bang, testado no superacelerador construído  entre as fronteiras da Suíça e da França, ao DNA computadorizado da bactéria  de Craig Venter. A confusão em que se atola a fé reside no conceito pagão,  grego, de Deus. Mais o valorizamos como poderoso do que amoroso, mais criador  que redentor, mais origem de todas as coisas do que fim para o qual todas as  coisas, sobretudo nossas vidas, devem convergir.

Os antigos  acreditavam que só Deus poderia mudar a noite em dia; até que se inventou a  luz elétrica. Só Deus era onipresente; até que se inventou a comunicação  eletrônica. Só Deus poderia provocar o apocalipse; até que se inventaram as  ogivas nucleares.

Deixemos de lado a concepção mecanicista de  Deus. Ainda que seja criada vida humana em laboratório a questão permanence a  mesma que perturbou a mente de Alfred Nobel quando inventou a dinamite para  quebrar pedreiras e viu seu artefato ser usado como arma de guerra: qual o  grau de egoísmo ou amor com que lidamos com os bens da Terra e os frutos do  trabalho humano?

Somos como a velha que, no mercado indiano,  abaixou a cabeça para procurar algo no chão repleto de lixo. Outros passaram a  imitá-la. Até que um jovem indagou: “O que a senhora procura?” “Uma agulha.”  “Uma agulha!” “Ora, aqui no mercado há milhões de agulhas à venda e não custam  nada.”

Muitos já desistiam da busca quando ela acrescentou: “Uma  agulha de ouro.” Então voltaram a abaixar a cabeça e procurar o precioso  objeto. O rapaz fez outra pergunta: “A senhora não tem mais ou menos ideia  onde a perdeu?” “Tenho sim”, disse ela, “perdi-a em casa.” “Em casa?” retrucou  o rapaz. “E nos faz de bobos procurando-a aqui no mercado?”

A  velha disse a todos que a fitavam: “Sim, procuro aqui o que perdi dentro de  casa, assim como todos vocês procuram fora a felicidade e o amor que está  dentro de vocês.”


Frei Betto é escritor, autor de “A obra  do Artista – uma visão holística do Universo” (Ática), entre outros livros.  www.freibetto.org

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