No verão passado, uma adolescente de ascendência somali
nascida nos Estados Unidos fugiu de sua casa em um subúrbio de Atlanta depois
que descobriu que uma viagem que a família faria à Somália incluiria um ritual
de passagem sagrado: a mutilação de seus genitais.
Na Guiné, uma nova-iorquina
fugiu para a embaixada dos EUA depois que uma tia disse a ela que a viagem da
família envolveria mutilação genital. E em Seattle, pelo menos um médico disse
que pais enviaram meninas de volta à Somália para passar pelo procedimento.
Pais imigrantes de países africanos e outros há muito enviam
suas filhas para seus lares ancestrais para passar o verão, em viagens que têm
a intenção de conectá-las com suas famílias e tradições. Durante essas
estadias, algumas garotas são levadas para quartos ou para o interior e
submetidas à mutilação genital na crença de que isso evitará a promiscuidade,
preparando-as para o casamento, ou que as deixará alinhadas com os ideais de
sua cultura.
As “férias de mutilação”, como a prática é chamada por
aqueles que são contrários a ela, existe nos enclaves imigrantes em todo o
mundo há décadas. A lei federal proibiu a mutilação genital nos Estados Unidos
desde 1996 e no ano passado se tornou ilegal transportar garotas para este fim.
Mas alguns estão preocupados de que este tipo de mutilação
esteja aumentando. O número de imigrantes africanos nos EUA mais do que
quadruplicou nas últimas duas décadas para quase 1,7 milhões, de acordo com o
Escritório do Censo. Os números crescentes atraíram atenção para a questão, e
incentivaram uma pequena rede de apoio da era da internet, baseada em
aplicativos, de meninas e mulheres que foram vítimas de mutilação, ou acreditam
que serão.
Cerca de 228 mil mulheres e meninas nos EUA foram mutiladas
ou correm o risco de ser, de acordo com uma análise que usa dados do censo de
14 anos atrás.
No centro dessa nova rede está Jaha Dukureh, 24, uma
imigrante de Gâmbia que foi mutilada quando criança em seu país de origem e depois
aos 15 anos em Nova York. Ex-bancária do Wells Fargo e mãe de três crianças,
ela vive em Atlanta. Em fevereiro, ela enviou um abaixo-assinado pedindo ao
presidente Barack Obama para conduzir um estudo sobre o assunto. Ela agora faz
telefonemas e envia centenas de mensagens de texto e nas mídias sociais por
semana para imigrantes que querem conversar sobre a mutilação, mas nunca
puderam fazer isso.
Dukureh, que tem terceiro grau completo e dirige –
diferentemente de suas amigas imigrantes – transita facilmente pelos papéis que
adotou nos últimos meses: assistente social, educadora de saúde, estrategista
política, coordenadora de mídia. As perguntas que ela recebe são tanto íntimas
quanto universais. “Há garotas que foram mutiladas que me ligam perguntando:
‘Posso fazer sexo? Vai doer?’”
“Ninguém de fato está falando sobre isso nos EUA”, disse
ela. “Ninguém sabe. Quando digo às pessoas o que estamos tentando fazer, elas
ficam chocadas.”
Os representantes Joseph Crowley, de Nova York, e Sheila
Jackson Lee, do Texas, ambos democratas, também falaram sobre a questão. Na
quarta-feira (11), eles entregaram uma carta para o Congresso e várias agências
federais, pedindo um plano nacional para estudar e abordar a questão da
mutilação de meninas norte-americanas.
Eles sugerem imitar as iniciativas da Inglaterra, que
estabeleceu uma linha telefônica de ajuda para vítimas potenciais, criou
encartes nos passaportes que explicam a lei relativa à mutilação feminina, e
alertou repetidamente funcionários das escolas sobre os perigos da prática. No
mês passado, várias agências da lei na Inglaterra conduziram uma operação de
uma semana no aeroporto de Heathrow para pegar famílias que estavam enviando
meninas para serem mutiladas no exterior.
A tradição da mutilação genital feminina é praticamente
inexistente em muitas culturas africanas e do Oriente Médio, mas é
profundamente arraigada em outras, e ocorre principalmente em 29 países, de
acordo com a ONU. As taxas mais altas estão na Somália (98% das mulheres são
mutiladas); Guiné (96%); Djibuti (93%); Eritreia (89%); e Mali (89%).
Ela pode assumir muitas formas. Às vezes, um membro da
comunidade corta apenas uma parte do clitóris. Nos casos mais extensivos, o
clitóris pode ser removido, os lábios são cortados e unidos, criando uma
barreira com apenas um pequeno buraco para a passagem da urina e menstruação.
Diferentemente da circuncisão masculina, a prática não têm
benefícios para a saúde. Ocasionalmente, ela é acompanhada do casamento da
menor de idade.
Sua existência nos Estados Unidos continha desconhecida para
muitas autoridades, clínicos, professores e conselheiros. Os motivos vêm de
duas partes: as imigrantes raramente falam sobre isso com pessoas de fora; e as
pessoas de fora, normalmente sem saber como abordar a tradição de uma cultura
estrangeira, não sabem como perguntar.
Os que trabalham para acabar com a mutilação dizem que
buscam fazer isso de uma forma que respeite a cultura, reconhecendo que a
prática tem uma longa história, e usando tato para educar as famílias sobre as
consequências dela: dor física imediata e de longo prazo, complicações durante
o parto, perda de sensibilidade sexual, e questões de saúde mental. Um
objetivo, segundo eles, é dissipar a ideia equivocada de que a tradição é
apoiada pela lei islâmica.
“Este ato não é cometido para nos violar; eles acham que
estão fazendo o melhor para nós”, disse Naima Abdullahi, 37, queniana-americana
que foi mutilada aos 9 anos e agora administra um grupo de apoio para as
vítimas em Atlanta. “É preciso envolver a comunidade no debate. Por que fazemos
essas coisas?”
Outro objetivo é ensinar médicos a tratar mulheres que foram
mutiladas.
O processo de educação pode ser difícil. Em algumas
famílias, não ser mutilada pode limitar as chances de uma garota se casar e
isolá-la do resto de sua comunidade. Os pais às vezes concordam com uma
mutilação ainda que tenham reservas.
Fonte: UOL Noticias
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