Hoje, dia 24 de outubro, Leonardo Boff faz a abertura do VII
Simpósio Nacional Filosófico-Teológico promovido pela Faculdade Jesuíta de
Filosofia e Teologia - FAJE , às 19h30min, com palestra sobre o tema "Fé
cristã e consciência planetária". Queremos desde aqui recomendar este evento, assim como a
leitura do artigo, do próprio Boff, “O resgate do princípio feminino” que a continuação
reproduzimos.
O resgate do princípio feminino
Leonardo Boff
O poder é uma das características fundamentais do masculino
no homem e na mulher. O poder na forma de dominação, entretanto, representa uma
patologia. Por isso, nossa civilização, estigmatizada pela dominação em quase
todas as áreas, produz a inflação do masculino, do patriarcalismo e do
machismo. São produtos do patriarcado o tipo de ciência que praticamos e o tipo
de desenvolvimento que operamos. Ambos são reducionistas, fragmentados e
excludentes da natureza e da mulher. Nesta forma, o poder-dominação não
desumanizou apenas os homens, mas também as mulheres. Os homens recalcaram sua
dimensão de anima e não permitiram que as mulheres realizassem sua dimensão de
animus.
Em razão dessa errância, fica claro que a questão do
masculino, nos dias de hoje, reside no feminino negado, reprimido ou não
integrado. Para ser plenamente humano, o homem precisa reanimar nele o seu
feminino e reeducar o seu masculino. Somente então podem ambos, homem e mulher,
entreter relações civilizatórias, humanitárias e realizadoras do mistério
humano feminino-masculino.
A grande tarefa civilizacional, talvez a mais urgente nos
dias atuais, consiste no resgate do princípio feminino. Chamo atenção para o
fato de que não falo de categoria feminino/masculino, mas de princípio
feminino/masculino. Afasto-me decididamente da ideologia do gênero, sexista,
baseada no sexo biológico, que constrói social e culturalmente as categorias do
masculino e do feminino de forma dualista e excludente. Ela distribui os
papéis, os valores e os antivalores: a criatividade, a atividade e a violência
tributados ao masculino; e a passividade, a receptividade e a não-violência, ao
feminino.
Precisamos ultrapassar essa visão excludente e entender a
sexualidade num nível ontológico, não como algo que o ser humano tem, mas como
algo que ele é. O masculino não diz respeito somente ao homem, mas também à
mulher. O feminino não ganha corpo apenas na mulher, mas também no homem. Esse
feminino representa o princípio de vida, de criatividade, de receptividade, de
enternecimento, de interioridade e de espiritualidade no homem e na mulher.
Portanto, trata-se de um princípio inclusivo e seminal que entra na
constituição da realidade humana.
O resgate do princípio feminino junto com o do masculino
propicia uma nova inteireza à humanidade, ao transcender as distorções na
relação homem-mulher e ao ultrapassar o sexo biológico de pertença. Significa
não somente libertação dos humanos, especialmente da mulher, mas também da
natureza e das culturas não estruturadas no eixo do poder-dominação,
equiparadas ao fraco e ao frágil - portanto, ao feminino cultural.
A recuperação do princípio feminino permite um processo de
libertação mais integral e verdadeiramente includente, pois parte do feminino
oprimido. O oprimido tem um privilégio histórico e epistemológico pelo fato de
possuir uma percepção mais alta que inclui o opressor enquanto ser humano. O opressor
exclui o oprimido, pois o considera uma coisa ou um ser humano menor,
subordinado e dependente. A libertação deve começar pelo oprimido para acabar
com o opressor. Só então ambos se encontram sobre o mesmo chão comum, como
humanos, construindo juntos, na igualdade e na diferença, a sociedade e a
história.
A inclusão do princípio feminino obrigará toda a cultura
masculinizante a questionar seu paradigma fundacional. Ele radica-se no
poder-dominação, hoje vastamente em crise. O pensamento da crise, no interior
do mesmo paradigma, não pode trazer soluções. O veneno que mata não pode ser o
remédio que cura. Os únicos que podem oferecer algo alternativo e terapêutico
são aqueles que foram vistos como incapazes de pensar, por não serem
suficientemente racionais e produtivos. Ora, os que pretendiam trazer as luzes (os
iluministas) nos conduziram às trevas atuais. Os que se propunham a difundir a
razão, a ciência e a técnica por todos os quadrantes nos estão conduzindo ao
pior, à destruição e ao desaparecimento.
O princípio feminino é sanador e libertador, pois se move
num outro paradigma e opera numa outra lógica. Seu paradigma básico é a vida, e
não o poder; o respeito e a veneração pela vida, e não a agressão e a
dominação. A lógica da vida não é a redução e o isolamento, arrancando os seres
do seu meio real e analisando-os em si mesmos ou manipulando células, genes e
microorganismos fora de seu ecossistema. A lógica da vida é a complexidade, é a
teia de interações em todas as direções e em todos os lados, é a sinergia e a
panrelacionalidade.
Ora, o feminino consiste na capacidade de viver o complexo,
de elaborar sínteses, de cultivar o encantamento do universo, de cuidar da
vida, de venerar o mistério do mundo, de elaborar um desenvolvimento com a
natureza, e não contra ela, de alimentar o esprit de finesse para
contrabalançar o esprit de géometrie.
O feminino - porque obedece à lógica do complexo e porque
naturalmente é inclusivo - representa o único caminho para a humanidade, para
um planeta sustentável e para a convivência pacífica e solidária entre o Norte
e o Sul.
A introdução do princípio feminino representa um desafio ao
paradigma machista, cujo desenvolvimento e prática técnico-científica implicou
o domínio, a destruição, a violência, a expropriação e a marginalização da
mulher e da natureza, hoje considerados supérfluos. O princípio feminino
propicia uma economia política da vida, devolve importância à natureza, resgata
o sentido da Terra como Grande Mãe, superorganismo vivo, Gaia e Pachamama. Ele
se transforma num caminho não violento de interpretação e transformação do
mundo, num reforço de todos os processos sinergéticos que respeitam a
diversidade e que nela buscam convergências que interessam a todos, o bem comum
humano e sociocósmico.
O homem que evoca em si e integra sua dimensão de anima incorpora,
junto ao seu vigor, a ternura; junto ao trabalho, a gratuidade; junto à razão,
a emoção; junto ao logos, o pathos e o eros. Ele emerge mais humano, relacional
e liberto das malhas que o desumanizavam e desumanizam a mulher e a natureza.
Agora, diferentes e juntos, podem construir o humano de forma mais dialética,
tensa, dinâmica, aberta a novas e surpreendentes sínteses.
Fonte : grupelho.com
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