segunda-feira, 9 de julho de 2012

A Igreja Católica, o poder e o êxodo das mulheres


Aqueles que exercem o poder na Igreja fizeram escolhas que contrastam com a liberdade e a dignidade das mulheres, na vida privada. Agora, não acabou somente o tempo das ambiguidades teológicas e devocionais; mais radicalmente, acabou o tempo de alianças instrumentais. É preciso redefinir a relação desde o início, colocando no centro a fé em Deus.


Carlo Molari, sacerdote, teólogo  e ex-professor das universidades Urbaniana e Gregoriana de Roma.
 O cruzamento de reflexões que eu proponho foi iniciado no dia de Pentecostes, durante uma visita ao Santuário do Amor Divino, na periferia de Roma, onde se venera um ícone de Maria (imagem ao lado), que se tornou popular durante a última guerra pela inventiva devoção do Pe. Umberto Terenzi, que envolveu o Papa Pio XII e deu nova vida às tradicionais peregrinações da noite de Pentecostes.
O estímulo concreto foi muito secundário: a escrita Ave Mary traçada de modo claro no início de um caminho que conduz do espaço do estacionamento ao novo santuário. Eu pensei naquele momento que fosse uma saudação a Maria escrito por algum/a devoto/a. Depois, os pensamentos se cruzaram. Aquelas duas palavras escritas com precisão em cursivo me levaram longe. Ao livro de Michela Murgia (Ave Mary. E la chiesa inventò la donna, Ed. Einaudi, 2011), que no ano passado tivera resenhas positivas, e ao recente livro de Armando Matteo (La Fuga delle quarantenni. Il difficile rapporto delle donne con la chiesa, Ed. Rubbettino, 2012), que, no segundo capítulo ("Por que as mulheres de 40 anos não vão à Igreja", pp. 33-53), inicia a reflexão com uma detalhada referência ao livro de Murgia ("Tudo culpa de Mary", pp. 33-37). Ele o considera "um texto vigoroso, teso, nítido" (p. 33) e, no seu título Ave Mary, acredita poder ler não somente uma saudação, mas talvez também "uma despedida".
 Armando Matteo é o mesmo sacerdote que escreveu La prima generazione incredula ("A difícil relação entre jovens e fé", Ed. Rubbettino, 2010), partindo das suas próprias experiências na Fuci [Federação Universitária Católica Italiana] e, em geral, na pastoral universitária. Dos adolescentes e dos jovens, ele volta agora a atenção para as mulheres e, em particular, para as de 40 anos: ao contrário da última geração, elas foram educadas na fé, mas agora são insensíveis aos apelos da Igreja, e a relação parece silenciosamente interrompida.
Michela Murgia (nascida em 1972, exatamente há 40 anos) foi catequista e estudou teologia. Mas tomou consciência das incongruências da posição da mulher na Igreja e, com a sua crítica, ofereceu indicações para analisar as razões do atual mal-estar, não só seu, mas das suas coetâneas e de todas as mulheres. "Como cristã dentro da Igreja, eu havia sofrido muitas vezes representações limitadas e enganadoras sobre mim como mulher, na maioria das vezes contrabandeadas através de interpretações igualmente pobres da complexa figura de Maria de Nazaré. Eu sofri quando eu as reconheci no magistério dos papas, mas ainda mais quando eu as vi passar sub-repticiamente na pastoral comum" (Ave Mary, p. 7). Nas entrelinhas da aventura de Maria como ainda é narrada na Igreja, Murgia lê a própria história e a das mulheres "com a consciência de que ninguém sai dessa história falsa se não decidimos sair juntos" (Ibid., p. 8).

Ambiguidades na exaltação da mulher
A encíclica de João Paulo II Mulieris dignitatem (15 de agosto de 1988, Dignidade e Vocação da Mulher) foi saudada como uma reviravolta do magistério católico. Armando Matteo observa: "Deve-se reconhecer a esse documento o porte inovador que objetivamente possui ao indicar os pontos de não retorno do ensinamento oficial da Igreja sobre a mulher. O ponto de maior força da Carta está precisamente no desenvolvimento do primeiro capítulo ("Mulher-Mãe de Deus"), em que João Paulo II reflete sobre o papel central desempenhado por Maria na obra de salvação realizada por Jesus. No seu "sim" à maternidade, "Maria alcança assim uma união com Deus que supera todas as expectativas do espírito humano" (La fuga delle quarantenni, p. 48).
Mas, na opinião de Murgia, a encíclica Mulieris Dignitatem ratificou um modelo muito ambíguo: o do duplo princípio mariano-petrino na Igreja, proposto pelo renomado teólogo Hans Urs von Balthasar no livro Il complesso antiromano ("Como integrar o papado na Igreja universal", Ed. Queriniana, 1974). Assim Murgia resume o argumento do teólogo suíço: "Ao princípio masculino, cabe o poder e a administração das coisas eclesiais; ao feminino, a custódia e o cuidado das coisas íntimas". Para explicar a essência do princípio mariano, von Balthasar se serve da mesma similitude que 20 anos depois Madre Teresa de Calcutá pronunciaria: "O elemento mariano governa a Igreja às escondidas, como a mulher no lar doméstico" (p. 73).
Murgia explica em detalhes: "A necessidade do governo papal na Igreja universal deve ser fundamentada, para von Balthasar, na necessidade de uma hierarquia entre o masculino e o feminino, o visível e o invisível da Igreja, representada pelas figuras de Pedro e de Maria. O expediente de coexistência de um 'governo sombra' de matriz mariana, contraposto ao governo efetivo de marca petrina, segundo von Balthasar, teria que convencer as outras Igrejas da fundamentação teológica de um sistema ao mesmo tempo hierárquico e colegial. No entanto, Von Balthasar preparou, de fato, novas bases simbólicas para o papel que, na Igreja, desde sempre se pretende atribuir às mulheres: vocação especial de governantas escondidas, silentes detentoras de um poder mudo que representa, porém, o pivô sobre o qual se fundamenta o poder dotado de voz e que determina todo um sistema familiar, social e eclesial solidamente patriarcal" (pp. 73-74).
Murgia conclui: "Sobre o fato de que o silêncio/consentimento da mulher seja a condição fundamental para que esse modelo de mundo continue de pé não há a menor dúvida, mas o fato de que esse silêncio seja a natureza imutável da mulher, ao invés, deve ser totalmente demonstrado" (p. 74).
Depois de ter ilustrado a posição real de Maria segundo as Escrituras e a imagem de Deus que o Evangelho propõe, ela conclui: "Com um pai desses não é de se admirar que Cristo, durante toda a sua vida pública, usou para com as mulheres uma atenção igualmente anticonformista com relação ao contexto em que ele viveu. Não há nada como a Escritura para nos revelar como é falsa a ideia de Maria que querem nos dar de beber como dócil e mansa, molde perfeito de todas as donzelas de bem" (p. 118). E, consequentemente, da estrutura eclesial assim como foi se configurando ao longo dos séculos de modo ambíguo.
Portanto, legitima-se a conclusão: "Enquanto o divino paterno continuar a ser associado à autoridade, à doutrina, ao vigor e à justiça, e o divino materno ao cuidado, à acolhida e ao sacrifício, a questão do Deus Mãe corre o risco até de ser útil para justificar o estado de marginalização feminina, dentro e fora da Igreja" (p. 137).
Armando Matteo lê a reflexão de Murgia no sentido de que "é preciso dar uma saudação de despedida para Maria, já que o nó problemático da relação entre mulher e Igreja (...) se situaria exatamente em uma infeliz mistura de um pensamento machista desde sempre dominante na cultura ocidental e uma apresentação do culto e da devoção dirigidos a Maria, que leva por direto a uma invenção da mulher. Àquele tipo de mulher que obteria a sua verdade do seu ser 'a serviço de', do seu puro e desinteressado pôr-se 'ao cuidado do outro'. Teríamos, portanto, ter uma mulher sem consistência em si mesma, sem nenhuma titularidade subjetiva, mas que receberia o seu direito de existir da existência do outro: do homem, dos filhos, da comunidade, do Estado, da própria Igreja. E, obviamente, receberia também dessa colocação as suas virtudes próprias: a condescendência, a obediência, a disponibilidade ao sacrifício, o escondimento. Até se chegar à resignação e à submissão. Dito de modo mais direto: 'Se a Igreja não inventou a subordinação entre os sexos, optou por legitimá-la espiritualmente'" (La fuga..., p. 33, citação do livro de Murgia: p. 158).
Consequentemente, ele explica a fuga das "quarentonas" como "um protesto silencioso ao silêncio ao qual a própria Igreja lhes forçou, por natureza. A Igreja dos homens, entenda-se. Um lento êxodo com relação a um mundo de poderes que não poderia de modo algum contar com uma possível mudança da situação" (p. 36).
Não se trata, em primeiro lugar, para as mulheres, de ter acesso aos diversos âmbitos de poder dos quais são excluídas, mas principalmente do fato de que aqueles que exercem o poder na Igreja fizeram escolhas que contrastam com a liberdade e a dignidade das mulheres, na vida privada, em relação aos métodos não naturais para o controle de natalidade, em ordem à vida sacramental para os divorciados etc.
A fuga das mulheres tem outro reflexo. Até agora, a Igreja Católica combateu alguns aspectos da secularização machista e, por isso, encontrou-se como uma aliada das mulheres. "Ela não leu nem viveu a modernidade como uma crise de fé, mas sim como um conflito acerca da questão da direção da sociedade. Em suma, como uma questão de poder. Na aliança com as mulheres, foi mantida como prioritária a questão do seu confronto com a modernidade masculina". Agora "não acabou somente o tempo das ambiguidades teológicas e devocionais; mais radicalmente, acabou o tempo de alianças instrumentais" (p. 51). É preciso redefinir a relação desde o início, colocando no centro a fé em Deus.
Fonte: Ihu

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