segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Sociedade ainda não reconhece mulheres como vítimas do sexo


O preconceito resulta no medo de denunciar que se reflete na carência de dados sobre casos de exploração e tráfico. "Algumas vozes justificam que o consentimento e sua inserção na prostituição não as fazem vítimas, mas, sim, coparticipantes nesse processo. Isso banaliza a situação e favorece o crescimento de um comércio lucrativo e a impunidade das organizações criminosas do sexo".
A prática de atos sexuais como valor de troca não é novidade. A prostituição está no mundo desde os primórdios - constando até na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), lista do Ministério do Trabalho, e desde sempre é vista com preconceito pela sociedade. Nesse universo, tudo está no sexo como uma atividade rentável. Assim também, o turismo sexual e o tráfico de pessoas não são fenômenos novos, muito menos a sua ligação com a prostituição.

Portanto, as vítimas, mulheres que vivem situações de exploração e/ou abuso sexual e tráfico, são criminalizadas porque o sentimento que impera é o preconceito. Todo o sofrimento vivenciado por elas parece não ser suficiente para que a sociedade as reconheça como vítimas, o que é mais um dificultador no combate a esse tipo de crime.

O texto da Pesquisa Sobre Trafico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil (Pestraf) resume bem a visão refletida por grande parte da sociedade: "algumas vozes justificam que o consentimento e sua inserção na prostituição não as fazem vítimas, mas, sim, coparticipantes nesse processo. Isso banaliza a situação e favorece o crescimento de um comércio lucrativo e a impunidade das organizações criminosas do sexo".

Tomando como referência a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os direitos não podem ser vendidos e, mesmo tendo concordado com a prostituição e assinado um contrato, essas mulheres são vítimas que precisam do cuidado do Estado e da sociedade civil.

A consequência é o medo de denunciar, um dos poucos mecanismos que contribuem para a solução dos casos. De acordo com a coordenadora adjunta da Coordenadoria de Políticas para as Mulheres, Tatiana Raulino, poucas mulheres procuram ajuda por livre e espontânea vontade. Primeiro, porque elas não se reconhecem como vítimas. "Isso dificulta o processo. Elas não acham que foram obrigadas a fazer nada e o medo vem de uma possível retaliação". Conforme Tatiana, as ameaças são constantes e envolvem as famílias.

A falta de denúncias também reflete na carência de dados sobre exploração, abuso sexual e tráfico. Existe uma dificuldade de contabilizar os casos. Os números que dão conta dos crimes sexuais são produzidos, geralmente, por entidades não governamentais. Não há estatísticas oficiais que norteiem as ações, a não ser as denúncias que nem sempre acontecem e, portanto, não retratam a realidade. "Desconfio dos números porque não nos mostram o que de fato acontece, mas isso não interessa muito, porque, havendo um caso apenas, providências devem ser tomadas", conclui a deputada Patrícia Saboya.

Denúncias

Por mês, o Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP) recebe, em média, duas denúncias. Em 2011, foram quatro delações de tráfico internacional e uma de tráfico interno. Em 2010, foram apenas três de tráfico interno. Além disso, as acusações vêm como desaparecimento e raramente aparecem como tráfico, como revela a superintendente do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, Andreia Costa. A coordenadora da Pestraf, Maria Lúcia Leal, comenta que, embora tráfico de mulheres, crianças e adolescentes "esteja politicamente agendado pelas organizações mundiais de defesa dos direitos humanos como um crime contra a humanidade, esta questão não é vista da mesma forma pelo conjunto da sociedade".

Após a Pestraf, aconteceram avanços na lei. O tráfico interno passou a ser considerado crime e ocorreu a mudança do termo ´tráfico de mulheres´ para ´tráfico de seres humanos´. Além disso, desde 2009, o tráfico passou a ser de pessoas e não só de mulheres, conforme indica a professora de Direito da Universidade de Fortaleza, Yasmin Ximenes. "O Código Penal criou o tráfico internacional de seres humanos e tipificou o tráfico interno, com pena de dois a seis anos de detenção".

Porém, melhorias no combate aos crimes sexuais aconteceram. Nos últimos três anos, o governo passou a criar políticas públicas que estão resultando no aperfeiçoamento do aparato policial. Foram realizadas campanhas de prevenção nos aeroportos e estradas e instalados escritórios de atendimento às vítimas e familiares. De todas as medidas, a mais importante foi a ratificação, em 2004, do "Protocolo para Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, Especialmente Mulheres e Crianças", documento que complementa as determinações do Protocolo de Palermo, convenção contra o crime organizado. Dessa forma, o Brasil passou a ter amparo legal para o combate desse crime.

Apesar dos avanços, Patrícia Saboya aponta que ainda falta sensibilidade. "Hoje, a gente já está colhendo os frutos, mas é preciso que os casos de exploração sexual sejam tratados com mais cuidado", reflete. Pouco tem sido feito pela Polícia Federal no Ceará para investigar as acusações. Apenas um inquérito foi instaurado no Estado, em 2011. É preciso a responsabilização dos acusados para as autoridades de Justiça. A professora de Direito da Unifor lembra que é obrigação da polícia averiguar e instaurar inquérito. Segundo especialistas, seria importante aproveitar as denúncias recebidas, já que nem todos têm a disposição de delatar. "Muitos crimes são desvendados com o auxílio da população", observa Yasmin.

SAIBA MAIS

O artigo 231 do Código Penal estabelece que constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ter conjunção carnal, praticar ou permitir que se pratique ato libidinoso é crime sob pena de reclusão de seis a dez anos.

Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 anos ou maior de 14 anos, a punição vai para detenção de oito a 12 anos. Se da conduta resulta morte, a pena é reclusão de 12 a 30 anos. Induzir ou atrair alguém à prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitá-la, impedir ou dificultar que alguém a abandone é caracterizado como crime com punição de dois a cinco anos de cadeia e multa. Se o agente é família, cônjuge, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, a pena é de três a oito anos de prisão.

OPINIÃO DO ESPECIALISTA

É preciso colaboração entre os países

Nilce cunha
Procuradora do MPF-Ceará
Migrar é um direito. Qualquer pessoa tem sonhos e isso é saudável e natural. Existe o direito à liberdade de ir e vir. O ponto crucial é não tratar as pessoas como criminosas. Para combater os crimes sexuais há necessidade de haver uma colaboração entre os países. Alguns têm o discurso de endurecer as leis de migração, mas isso penaliza as vítimas. É uma situação complexa. Existem muitas pessoas desejosas de ir para o exterior com a expectativa de ganhar dinheiro, ajudar a família.

A dificuldade maior é apurar os casos de tráfico. As pessoas envolvidas não se veem como vítimas. Portanto, dificilmente denunciam. Fica complicado apurar quando não se tem a denúncia. Tem de haver campanhas específicas contra o tráfico. O Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas está sendo formatado para se tornar modelo de lei com a participação da sociedade. O problema também é que não existe pesquisa atualizada.

Traficantes de pessoas podem pegar até dez anos de detenção


Mudanças no Código Penal Brasileiro devem beneficiar o combate ao tráfico de pessoas. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado que investiga o crime aprovou, no dia 21 de dezembro, relatório parcial da senadora Marinor Brito (PSOL-PA) que deve fixar em quatro a dez anos de prisão a pena para o crime de tráfico internacional de seres humanos, e em três a oito anos para quem praticar o crime no país. Se a vítima tiver menos de 18 anos de idade ou deficiência física, a pena poderá ser aumentada. Se o crime for cometido com o fim de obter vantagem econômica, também podem ser aplicadas multas.

A proposta é adequar o código brasileiro ao Protocolo Adicional da Convenção de Palermo das Nações Unidas (ONU) sobre o tráfico de pessoas. De acordo com a legislação brasileira, o tráfico é crime só quando há exploração sexual da pessoa traficada. Por isso, o projeto propõe a inclusão de outros motivadores do tráfico de seres humanos, como trabalho forçado ou análogo à escravidão e a remoção de órgãos para transplantes. O relatório da CPI estima em 75 mil o número de mulheres brasileiras que se prostituem em países da União Europeia. A cada ano, aliciadores levam de 800 a 900 mulheres brasileiras para o exterior, onde são exploradas pela indústria do sexo.

De acordo com a Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres (Pestraf), citada no relatório, a Espanha é o principal destino das mulheres brasileiras, para onde cerca de 36% das mulheres se destinam. Em seguida vem Portugal, com um fluxo de 20% das imigrantes. A Itália recebe 8%.

Em países como a França, Israel, Suíça e Estados Unidos das pessoas que entraram, 6% foram mulheres. O Japão recebeu 4%. O documento será entregue ao Senado e à Polícia Federal para que sejam investigados casos levantados durante as diligências da CPI, como as rotas de tráfico. Pelo texto, o crime de tráfico de pessoas se caracteriza para diversos fins: exploração sexual, trabalho forçado, remoção de órgãos ou outro que acarrete ofensa relevante à dignidade da pessoa ou à sua integridade física. O tipo se aplica às condutas de agenciar, aliciar, recrutar, transportar, alojar e acolher pessoa, entre outras atividades. Considera, para o fim pretendido, ações por meio de ameaça e coação, entre outras formas de violência, ou por fraude e engano.

Até 2004, o Brasil não havia assinado o Protocolo de Palermo que contém a definição aceita internacionalmente para o tráfico de pessoas. Hoje, com a assinatura do documento, já existe uma política nacional de enfrentamento ao tráfico que conta com três eixos: prevenção, proteção e combate. As preocupações agora estão voltadas para a Copa de 2014 e para a chegada da alta estação nas capitais litorâneas.

Ações


O Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Ceará (NETP) tem voltado suas ações, em conjunto com outros órgãos, instituições e movimentos, para a capacitação de policiais, campanhas informativas para a sociedade, distribuição de material nas escolas, blitze preventivas e palestras. Fortaleza conta com um projeto de construção de metodologia de atendimento às mulheres vítimas do tráfico de pessoas que trabalha com a escuta e apoio a quem sofreu o crime.

Lina Moscoso

Repórter
Fonte: Diario do Nordeste

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