Às vezes repetir um argumento cansa. Quando os interlocutores não estão dispostos a abandonar seus próprios preconceitos e aprender um pouco, ainda mais. A repetição é exaustiva. Um assunto que vai e vem e que não é resolvido praticamente em país nenhum: estupro de vulnerável.
Provavelmente muitos leitores daqui ouviram por alto — e sequer acompanham ou se preocupam com o Big Brother Brasil. Outros devem ser da opinião de que a indignação com o caso de estupro registrado pelas câmeras do programa no final de semana seria mais útil para expulsar o Sarney do Senado. Aí é que se enganam.
A opressão de gênero, que se utiliza frequentemente de violências sistemáticas como o estupro ou o controle sobre o corpo para se manter, independe do Senado, do sistema político, da economia, do tipo de organização social, do sistema produtivo. Achar que a corrupção deve ser mais importante do que isso, é a verdadeira falácia. Se vocês assistem Big Brother Brasil ou não, entendam: discutir o que ocorreu no programa não é apenas discutir o que ocorreu no programa. É discutir uma prática constante de violência sexual de gênero que assola todos os grupos sociais no Brasil e fora dele.
Durante a festa a mulher bebe, se diverte, como todo mundo. Diz ao homem que não quer ficar com ele. Isso já deveria bastar para um homem com um mínimo de senso ético desencanar da dita mulher. Pois não. Ele fica lá, enchendo o saco. Ela continua dizendo que não quer ficar com ele. No final da noite, ela trêbada se deita. Ele vai lá e começa a abusar dela. Carícias não só não-solicitadas, como repelidas, não são carícias. São atos de violência. Se a mulher não diz não, isso não significa um “sim” automático, até porque ela não estava em condições de dizer nenhum dos dois.
No nosso Código Penal, casos como esse são chamados “estupro de vulnerável” (1), porque não havia condições de consentir. É violência presumida. Mas este não é o primeiro, único ou último caso desse tipo de violência. Perguntem às moças e moços e verão que muitas e muitos já tiveram que defender uma amiga ou desconhecida desacordada, dormindo, embriagada ou não.
“A festa era grande, havíamos contratado um segurança até. Meu quarto trancado a chave, vejam o absurdo, para caso eu quisesse dormir quando ainda houvesse convidados. O medo do ataque. A chave no bolso. Os pufes num canto, ela dormia, sem estar bêbada nem nada. Apenas dormia, cansada, no meio da festa. Podia ser que houvesse trabalhado naquele dia. Tudo podia ser, ali. Não importava. Ela dormia no canto da pista, sobre os pufes, tranquila. Ouço um rebuliço, vejo um homem andando rápido, quase correndo pelo casarão. (…) Ele se misturava à multidão, fugitivo. Encontro alguém que me diz que um homem tentara agarrar a menina que dormia. Que as amigas lançaram-se sobre ela para impedi-lo, que ele as havia agredido. Uma menina machucada contava a história em meio à música alta da pista já vazia. Acionamos o segurança, este homem seria expulso da festa e, caso se recusasse a sair, chamaríamos a polícia.”
[Trecho do post Mulheres, Em Três Episódios, de minha autoria, no Blogueiras Feministas]
Tão grave quanto o ataque do estuprador são os comentários que consideram que a culpa do estupro é da vítima. Estar bêbada, usar determinadas roupas e até mesmo “olhar” de certo jeito são argumentos frequentemente usados por defensores de estupradores para culpar a vítima. Ora, se o estupro fosse causado por uma saia curta, quase todos os homens heterossexuais seriam estupradores e todas as mulheres teriam sido estupradas. O que causa estupro não é a roupa, o comportamento da vítima (corrobora com isso, inclusive, o fato de que a maior parte dos casos de violência sexual acontece dentro da família da vítima, em casa). É o estuprador.
O mito de que a culpa do estupro é da vítima leva, inclusive, a um tratamento desumano da justiça nos poucos casos em que é julgado como crime, como mostram o filme “Acusados” (1988), baseado numa história real, e a reportagem do The Guardian:
“Neste ano [2010], também foi publicada a maior pesquisa sobre estupro já realizada no Reino Unido. Conduzida pela organização de advocacy e lobby feminista Campaign to End Rape (CER) ["Campanha pelo Fim do Estupro"] as entrevistadas, todas mulheres, responderam perguntas sobre suas próprias experiências de estupro, acesso aos serviços de apoio a vítimas de violência sexual, e sobre o que poderia ser feito para melhorar o processo de registro de ocorrências e acusação. A pesquisa mostra que a forma como muitas mulheres são tratadas pelo sistema judiciário criminal — onde não são levadas a sério e são vistas com suspeição — leva outras mulheres a tratá-las do mesmo jeito. O fato de tantos homens acusarem vítimas de estupro de mentirosas tem um efeito devastador sobre as mulheres. Enquanto amostragem não-aleatória, a pesquisa mostrou resultados alarmantes: 40% das entrevistadas tinham sido estupradas, a maioria por homens que elas já conheciam. Apenas 42 dos 123 casos registrados de estupro chegaram a serem julgados como crime.”
[Trecho do post Culpem o Estuprador, Não a Vítima, tradução livre minha de um artigo do The Guardian)]
O que aconteceu no Big Brother Brasil no final de semana não é, como podem ver, um problema do Big Brother Brasil, apenas. É um problema social muito maior. O problema do Big Brother Brasil é ter uma equipe de produção acompanhando os fatos, presenciando um crime, e se omitindo ao não chamar a polícia, não levar o estuprador à delegacia nem fazer exame de corpo delito com a vítima. Sem falar que o estuprador estava sem preservativo… É um problema do Brasil, porém, caso o Ministério Público não se pronuncie, não exija a prisão e retirada do participante da casa e acredite que a Globo está acima da lei. Não está.
(1) A lei 12.015, (7.08.2009, incorporada , ao Código Penal, diz, em seu artigo. 217-A, que incorrer em crime de estupro de vulnerável é “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”. A pena é reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. O § 1° acrescenta: “Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.”
Por Marília Moschkovich, editora de Mulher Alternativa
Fonte: www.outraspalavras.net/
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