domingo, 4 de setembro de 2016

O Beato Romero e Santa Teresa de Calcutá

Madre Teresa visita a casa de Dom Romero em julho de 1988 (Foto: Super Martyrio)
Quando Madre Teresa de Calcutá recebeu o prêmio Nobel da Paz, em 1979, Dom Óscar A. Romero, de El Salvador, que havia sido indicado para a premiação, naquele mesmo ano, a parabenizou através do envio de um telegrama, no qual deixa saber que o arcebispo compreendeu que ambos trabalhavam pelo mesmo objetivo: “Madre Teresa de Calcutá, Índia. Alegro-me [que o] Prêmio Nobel condecore em você [a] opção preferencial [pelos] pobres como eficaz caminho para a paz. Aqueles que generosamente me desejaram semelhante honra, [que] se sintam igualmente satisfeitos [por] ter estimulado [a] mesma causa. Abençoo-a. O Arcebispo”. [Homilia de 21 de outubro de 1979.)


A reportagem é publicada por Super Martyrio, 01-09-2016. A tradução é do Cepat.

Santa Teresa e o Beato Romero são exemplos da famosa dicotomia de Dom Hélder Câmara: “Quando dou comida aos pobres me chamam de santo. Quando pergunto por que são pobres me chamam de comunista”. Madre Teresa deu comida aos pobres e será chamada santa. Bdenunciou por que existem pobres e foi “difamado, caluniado, borrado..., inclusive por irmãos seus no sacerdócio e no episcopado” (Papa Francisco, Discurso do dia 30 de outubro de 2015).

Na realidade, Romero e Teresa são duas faces de uma mesma moeda. Ambos compreendem, “a bela e dura verdade” – como disse Dom Romero – “que a fé cristã não nos separa do mundo, mas nos mergulha nele”. (Discurso ao receber o “honoris causa” da Universidade de Lovaina, 2 de fevereiro de 1980).) É necessário, nos disse, sair do templo, do santuário, à cidade, à “polis”. Esta é a mesma opção pelos pobres de Teresa, em 1948, quando abandona o claustro de seu convento e sai às ruas de Calcutá para ajudar os anciãos, os moribundos e os leprosos. Participando de sua miséria, conta como sentia a tentação de retornar ao abrigo e a comodidade de seu convento, mas teve a intuição que “nosso Senhor quer que eu seja uma freira livre, coberta com a pobreza da Cruz”.

Tanto Dom Romero como Madre Teresa tiveram que se cercar e mergulhar em seus âmbitos não religiosos de um mundo sem Deus. A Romero coube lidar com cadáveres de massacres camponeses, ao passo que Madre Teresa precisou se instalar em um templo da deusa Kali para oferecer mortes dignas, com ritos segundo as devoções de cada pessoa beneficiada, fossem hindus ou muçulmanos, da Índia, Paquistão, Etiópia, Tanzânia e outros lugares pela Ásia, África, Europa e Estados Unidos, onde suas missões a levavam. Na imersão total nesta dura realidade de privação, distante do sacrário e o altar, Madre Teresa sofreu sentimentos de um vazio espiritual, até o ponto de duvidar da própria existência de Deus.

No entanto, seu propósito e motivação ao se comprometer na austeridade foi justamente buscar Deus. Apesar das acusações contra Dom Romero, de que havia traído sua missão religiosa, e os sentimentos de Madre Teresa de alienação espiritual, ambos encontram Jesus. “Nesse mundo sem rosto humano” – nos diz Dom Romero –, encontra-se face a face com o “sacramento atual do Servo Sofredor de Javé”. (Lovaina) E faz eco a Madre Teresa quando nos disse: “hoje, há tanto sofrimento – e sinto que a paixão de Cristo está sendo vivida novamente”. (Discurso Prêmio Nobel, 11 de dezembro de 1979.) “Ele se torna o faminto, o nu, o sem lar, o enfermo, o prisioneiro, o solitário, o não estimado... Faminto de nosso amor, e esta é a fome de nossa gente pobre”. (Id.)

Ambos valorizam o pobre de uma maneira que difere das formas antiquadas e paternalistas de entendê-los. Tanto Dom Romero como Madre Teresa se fixam no pobre, não só como um beneficiário de nossa generosidade (leia-se: lástima) ou um sujeito que nos permite experimentar a caridade (leia-se: remorso), mas gente que tem algo a nos oferecer, e cujo valor intrínseco serve para nos beneficiar. Os pobres nos ajudam a entender nosso cristianismo: “coloquem-se do lado do pobre e tentando lhe dar vida saberemos em que consiste a eterna verdade do Evangelho”, disse Dom Romero. (Lovaina.). Madre Teresa concorda: “Eles podem nos ensinar tantas coisas belas”, disse, recordando como os pobres em um de seus centros de atenções lhe confirmaram um aspecto de sua missão. “O outro dia, um deles veio agradecer e disse: ‘Vocês que fizeram voto de castidade são as melhores para ensinar planejamento familiar. Porque não é mais que autocontrole e amor de um ao outro’”. Este tema que era de debate entre especialistas, sociólogos e teólogos, também era competência de uma pessoa pobre: “E estas são as pessoas que não têm nada para comer, talvez não tenham um lar onde viver, mas são grandes pessoas. Os pobres são pessoas maravilhosas”. (Teresa, Discurso Nobel.)

Alguns criticaram a caminhada de Madre Teresa por ajudar em casos concretos, mas não mudar o sistema que gera desigualdades e injustiça. Segundo esta crítica, “os ricos e os poderosos a amavam”, porque ela não lhes exigia nada e a isso se deve seu prêmio Nobel e sua canonização, ao passo que os teólogos que denunciam os ricos são “removidos ou suprimidos”. (Sara Flounders, Workers World, 25 de setembro de 1997, traduzido por Iniciativa Socialista.) No entanto, Dom Romero defende sua postura argumentando que ter corações convertidos vale mais que ter estruturas reformadas: “não importa à Igreja que haja apenas uma distribuição mais equitativa das riquezas, é de seu interesse que haja essa distribuição porque, de fato, existe em todos os homens uma atitude de querer compartilhar não só os bens, mas a própria vida”. (Hom. 24 fev. 1980.)

De sua parte, Madre Teresa reconhece a necessidade de fazer justiça quando denuncia: “Quando um pobre morre de fome, não é porque Deus não o protegeu. É porque nem você e nem eu quisemos lhe dar o que necessitava”.

A Santa e o Beato certamente, hoje, se regozijam no céu por ter dado testemunho do espectro completo do amor aos pobres.

Fonte: Ihu

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