Sem trabalho, Simone Kelly não
conseguiu pagar o aluguel e foi morar embaixo de viaduto com o filho de 1 ano
O lençol branco improvisado marca
a entrada do cômodo de pouco mais de seis metros quadrados que a artesã Simone
Kelly, de 36 anos, chama de casa.
Dentro do espaço, um amontado de
pertences: uma cama de casal, roupas guardadas em caixas de papelão, um fogão.
Simone e sua família fazem parte
do grupo de 120 pessoas que dividem uma área debaixo do viaduto Guadalajara, na
região central de São Paulo.
Ela diz estar entre as vítimas da
crise econômica que atingiu o país nos últimos tempos. Até três meses atrás,
era inquilina de uma casa na rua do Hipódromo, perto dali, mas não conseguiu
arcar mais com os R$ 600 reais mensais de aluguel.
Desempregada, a mãe de Derik
Augusto, de 1 ano e 2 meses, viu como única solução voltar às ruas da maior
cidade do país.
"Já tinha morado na rua por
cinco anos, até 2014, quando fui morar de aluguel, mas, como não consegui mais
trabalhar, tive de voltar à rua."
Jesus de paletó
Entra-se no local em que o grupo
mora por meio de uma pequena porta. Do lado de fora, não dá para se ter uma
noção da real dimensão da área, que abriga ao menos 15 famílias.
Na entrada, uma imagem do menino
Jesus dá boas-vindas. Como está parcialmente danificada – os braços já estavam
quebrados quando chegou ali – foi coberta com um paletó.
A iniciativa, além de estética,
tem relação com o frio, segundo os moradores: nas noites de inverno, as
temperaturas ficam abaixo dos 10°C no local.
O espaço tem uma cozinha
comunitária – em volta, há mesas onde algumas pessoas tomavam o café da manhã
quando o repórter visitou o local.
É nessa hora do dia, quando todo
mundo já está acordado, que as tarefas começam a ser divididas: uns limpam a
calçada do lado de fora, outros cuidam dos banheiros.
Josilene e Jean PaulImage
copyrightLUCIANO TEIXEIRA/BBC BRASIL
Josilene e Jean Paul temem ser
retirados de abrigo improvisado
O casal Josilene, de 19 anos, e
Jean Paul, de 23 anos, relata uma história parecida com a de Simone.
A ex-vendedora, desempregada há
três anos, e o ajudante geral contam que tiveram de desistir do aluguel de R$
700 quando perderam o controle das contas atrasadas.
"O Leandro (bebê do casal)
nasceu, e aí ficou pesado. Meu trabalho com carga e descarga não dá conta das
despesas ultimamente. Mas, mesmo não pagando aluguel, eu tenho medo que me
tirem daqui. Tenho até pesadelos com isso", diz o rapaz.
Milhares ao relento
Por estarem ali há pouco tempo,
as famílias de Simone e do jovem casal não entraram no último censo da
população em situação de rua da cidade de São Paulo.
Realizado em 2015, o levantamento
da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) revela que, na capital
paulista, existem pelo menos 15.905 pessoas em situação de rua – quase o dobro
comparado a 2000, quando eram 8.706. A alta foi de 82%.
Segundo a pesquisa, estão
concentrados nas regiões da Sé, no Centro, Mooca, na Zona Leste, e Lapa, na
Zona Oeste.
Padre Lancelotti diz que censo de
moradores de rua não condiz com a realidade
Os números são bem menores do que
os de cidades como Nova York, onde o Departamento de Serviço para Desabrigados
calcula haver 57 mil moradores de rua, a maioria dormindo em abrigos públicos.
A população de São Paulo é 50% maior do que a da cidade americana.
Mas o padre Júlio Lancellotti,
coordenador da Pastoral Povo de Rua, organização de caridade vinculada à
Arquidiocese de São Paulo, disputa os números oficiais da capital paulista.
"O último censo está
subestimado. Não estão contadas as pessoas que estão, por exemplo, em
instituições religiosas não conveniadas. Acredito que temos pelo menos 22 mil
moradores de rua na cidade", afirma ele.
"O censo só contou quem está
em barracas e não em barracos. Não contaram, ainda, as pessoas que moram em
cemitérios. Já constatei que há grupos assim nos da Vila Formosa, da Quarta
Parada e da Consolação. Também não levaram em conta os grupos que vivem no
subsolo da cidade."
Para o padre, crise levou a um
aumento de pessoas que vivem nas ruas de São Paulo
O padre afirma que a crise tem
contribuído para aumentar a quantidade de pessoas vivendo nas ruas.
"As pessoas não estão
conseguindo pagar aluguel e acabam vindo morar na rua. E os problemas
econômicos afetam também os que já estavam nesses locais e sobrevivem como
catadores, por exemplo. Com o consumo em baixa, diminuiu o número de embalagens
recicláveis para eles coletarem", afirma ele.
Segundo Lancelotti, reintegrações
de posse e a chegada de pessoas de outros lugares – "que vêm pra cá
procurar emprego e não conseguem" – também levam pessoas às ruas.
"Temos também os que são
postos para fora de casa pelas próprias famílias, porque não contribuem nas
despesas diárias", conta.
A Prefeitura diz que a pesquisa
foi realizada, inclusive, em pontos de atração dessa população, como hospitais,
postos de saúde, escolas, mercados e sacolões, cemitérios, terminais de
transporte público e que também foram contabilizados moradores que viviam nos
chamados "mocós", um tipo de buraco feito para servir como abrigo.
Vagas em abrigos
Quem vive nas áreas com mais
moradores de rua afirma ter notado o aumento nos últimos meses.
Nos fins de semana, quando a
movimentação diminui na região central, é possível notar uma aglomeração de sem
tetos em locais como o Largo de Santa Cecília, próximo ao bairro de
Higienópolis, uma das áreas mais nobres da cidade.
A designer Joana Gonçalves, que
mora perto dali, conta que procura não circular sozinha à noite por medo de
assaltos.
"Evito descer do metrô tarde
da noite e, quando tenho de fazer isso, vou de táxi ou de Uber. Sei que a
grande maioria dessas pessoas só pede ajuda: dinheiro pra comida e oferecem
pequenos serviços nos sinais como limpeza dos para-brisas. Sei que a maioria
não está aqui porque quer. Mas, num primeiro momento, isso assusta", diz.
A Prefeitura de São Paulo oferece
serviços à população de rua através da Coordenadoria de Proteção Social
Especial. Segundo a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento
Social, equipes especiais de abordagem tentam convencer o morador em situação
de rua a aceitar o encaminhamento para os centros de acolhida.
Nesses locais, eles podem pernoitar,
tomar banho, guardar seus pertences em bagageiros, lavar roupas, alimentar-se e
ainda ter assistência individualizada com o serviço social.
Haveria ainda abordagens nos
pontos de maior concentração, estímulo à geração de renda e capacitação profissional,
além de encaminhamento para os núcleos de serviços e convivência e centros de
acolhida.
Demanda
O problema, segundo a Pastoral de
Rua, é que só pouco mais da metade dos quase 16 mil moradores de rua oficiais
consegue vaga nesses centros.
De acordo com a Fipe, são 8.570
acolhidos dentro desse universo. A preocupação aumenta no inverno – neste ano,
foram registrados casos de moradores de rua que teriam morrido de frio.
Sob o viaduto, moradores também
se abrigam em quartos coletivos
Quando os termômetros atingem
13°C ou menos, agentes oferecem encaminhamento a locais protegidos do frio. Em
épocas assim, em caráter excepcional, segundo a prefeitura, o número de vagas
nos Centros de Acolhida é ampliado para atender à maior procura.
Pelos dados da Secretaria hoje,
são 96 centros de acolhida fixos e emergenciais e, na época de frio, a
capacidade é ampliada emergencialmente para 12 mil vagas diárias. Mas destas,
cerca de mil não estariam sendo ocupadas por falta de demanda.
Autonomia
Para o padre, porém, o serviço
prestado pelo poder público não é suficiente, pois não garante autonomia para
essas pessoas.
"O trabalho feito hoje é
incompleto, insuficiente e arcaico. Temos de criar espaços de autonomia para
estes moradores, em que seja levada em consideração a sua individualidade e o
seu modo de vida", opina.
"É preciso, por exemplo, um
lugar para que casais tenham a sua intimidade preservada. No modelo atual de
gestão, existem regras de entrada e saída, com horários rígidos nos centros de
acolhimento, e a separação nos dormitórios entre homens e mulheres, mesmo que
sejam casados."
Segundo ele, o trabalho precisa
mudar. "Os modelos de resposta do poder público não passam de dez possibilidades.
Todo esse atendimento não evoluiu ao longo de 90 anos, é o mesmo feito em 1920.
A única coisa nova que tem é a tomada para carregar o celular."
De acordo com a Prefeitura, todos
os serviços oferecidos têm regras, muitas delas discutidas em assembléia com
quem usa esses locais, como o horário de entrada e saída, das refeições e de
televisão por exemplo. Mas isso pode ser flexibilizado pela equipe técnica de
cada local, de acordo com a rotina e necessidade das pessoas que convivem ali.
Novas formas de acolhimento
A Secretaria explica que foram
criadas novas modalidades de acolhimento para atender famílias, imigrantes e
transexuais.
No caso das famílias, seriam 360
vagas em dois serviços, o que inclui em alguns casos vagas em creche ou escola,
atendimento médico e capacitação profissional, por meio de parcerias como o
Pronatec, por exemplo – e encaminhamento para o emprego.
Também há um centro de
acolhimento de imigrantes com 110 vagas e outro só para mulheres e seus filhos
com capacidade para 80 pessoas.
Há quartos familiares no local,
onde tarefas diárias são divididas entre os moradores
Para os transexuais, há 30 vagas
exclusivas numa casa instalada na região da Barra Funda, onde são oferecidos
cursos, oficinas, palestras, além de pernoite, acompanhamento psicológico e
refeições.
Vagas específicas que, para os
especialistas, ajudam, mas que estão aquém da demanda e não resolvem o
problema. O cientista político da Fundação Getúlio Vargas, Marco Antônio
Teixeira, acredita que o modelo mais comum atualmente é assistencial, em vez de
ser multidisciplinar.
Relação de conflito
"O que temos hoje é uma
relação de conflito entre o poder público municipal e as diversas instituições
que fazem um trabalho independente com esses moradores, como a Pastoral de
Rua", diz.
"É preciso repensar este
tipo de política pública e ter articulação com os diversos setores da
sociedade. Hoje, a tendência do governo municipal é de administrar o problema,
dar abrigo. Mas, e depois que eles saem, durante o dia?"
Para ele essa situação tende a
piorar com a crise econômica. "É um efeito em cadeia. O crescimento está
desproporcional. O limite pra quem não consegue arcar com as despesas e pagar
aluguel, por exemplo, é a rua, não tem jeito", explica.
"Precisamos dar uma
perspectiva para essas famílias, um outro tipo de assistência, um lugar e um
sentido para essas pessoas. Essa falta de perspectiva pode alimentar ainda mais
a violência na nossa cidade."
Do viaduto onde mora, Simone
Kelly reforça as críticas: "Nós somos só números pra eles. Em alguns
lugares, não somos chamados pelo nome. As regras que nos impõem hoje em dia são
próximas das do sistema penitenciário".
Por isso, ela prefere ficar num
espaço alternativo, debaixo do Viaduto Guadalajara. "Aqui, temos regras
básicas de convivência entre as 15 famílias. Dividimos a limpeza, a cozinha é
coletiva, e fazemos a 'vaquinha' para o gás. É um espaço de resistência, onde
privilegiamos a autonomia de cada um."
Fonte: BBC Brasil
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