domingo, 21 de agosto de 2016

“O deus Dinheiro, o primeiro terrorismo”, segundo o Papa Francisco.

Ao retornar, no dia 01 de agosto, da Jornada Mundial da Juventude em Cracóvia, marcada pelo assassinato do padre francês Jacques Hamel em sua igreja de Saint-Etienne-du-Rouvray, o Papa Francisco declarou no avião: “No centro da economia mundial está o deus Dinheiro, e não a pessoa, o homem e a mulher; este é o primeiro terrorismo”.

Esta declaração lapidar merece alguns esclarecimentos. Nós conversamos com Rémi Brague, filósofo e cristão, especialista no pensamento medieval árabe e judeu. A entrevista é de Caroline Brizard e publicada por Le Nouvel Observateur, 15-08-2016. A tradução é de André Langer.

Eis a entrevista.

A denúncia do dinheiro feita pela Igreja é uma constante na história do Cristianismo, desde o episódio dos mercadores do Templo que foram expulsos por Jesus, passando pelas figuras da pobreza como São Francisco de Assis?

Sim e não. Os fatos aos quais você se refere têm uma significação religiosa; seu sentido econômico e/ou político é menos claro. O gesto de Jesus é, sobretudo, profético. No plano material, ele se contenta provavelmente em derrubar uma mesa ou duas. Se ele tivesse derrubado mais, a guarda romana teria entrado para impedi-lo.

Devemos nos situar na Palestina do século I. O Templo é um lugar de constante sacrifício de animais, desde bois a pombas, uma espécie de gigantesco abatedouro para onde os judeus levam a moeda de que se serviam em seus países de origem para pagar suas compras. Ele é, ao mesmo tempo, um grande local de venda de animais e uma casa de câmbio. Os “mercadores” expulsos do Templo por Jesus não o foram porque eles praticavam a troca, ou porque eles procuravam os animais para o sacrifício, mas por causa do lugar onde eles exerciam o seu ofício, que deveria ter outras funções.

Jesus não denuncia o uso do dinheiro, mas o culto que se presta a ele, que é de natureza idolátrico. Ele denuncia o fato de comprar, dessa maneira, a graça de Deus e de substituir a tradição dos profetas que denunciam os sacrifícios, porque eles não substituem a conversão dos corações.

A reação dos moradores (os “judeus”, isto é, os habitantes da Judeia) é significativa: eles não protestam, eles não estão chocados, mas eles pedem um “sinal” – qualquer coisa que legitime Jesus para agir dessa maneira – que mostre que também ele é um profeta (Jo 2, 18).

Quanto à pobreza de São Francisco, ela é acima de tudo uma tentativa de imitar a vida dos Doze Apóstolos, que levaram uma vida errante, que cruzaram a Palestina de alto a baixo, embora tenham deixado sua vida de pescador, de coletor de impostos. Eles vivem uma existência precária, seguindo o Jesus que prega e dependendo da ajuda dada pelas pessoas que encontram. Da mesma forma, a pobreza das ordens monásticas não é um exemplo. Ela não representa um modelo econômico.
Tem-se a impressão de que para a Igreja católica, o dinheiro encarna o mal...

O dinheiro representa, em primeiro lugar, um aspecto tangível de qual é realmente o mal, a saber: o que o Novo Testamento chama de “riqueza”. Isto não é somente material, mesmo se a riqueza material é mais visível.

Pode ser também o nascimento, as relações, a situação social, a influência, o saber real ou imaginário, a posse de uma visão de mundo “concreto”, no sentido em que pensamos: “Eu entendi, eu não tenho necessidade de aprender”.

Estar cheio de si representa uma forma de “riqueza”, menos visível, mas igualmente perigosa. Em síntese, a riqueza engloba tudo o que impede de reconhecer que nós temos necessidade dos outros e de outra coisa que não eu mesmo, incluindo o grande Outro que é Deus.

O Papa tem o sentido da fórmula que impressiona. Podemos realmente falar de um “terrorismo do dinheiro”?

Ele chega, às vezes, a ultrapassar o seu próprio pensamento. Evidentemente, não é uma questão, para ele, de colocar no mesmo nível o assassinato puro e simples e as consequências da economia de mercado. Eu gostaria de lembrar que nunca houve outra economia. O “socialismo real” [a realidade dos países socialistas, NDLR] repousou, de fato, sobre uma economia paralela, subterrânea. Em toda a parte onde se troca bens ou serviços e, portanto, em toda parte onde se faz mensurar o valor que do que se troca para que esta troca seja justa, seja no mercado, seja no mercado negro.

Dito isto, há um ponto comum entre a violência física e a ditadura do mercado. Assim como os terroristas procuram que as pessoas se debrucem diante deles sem lutar, os fenômenos econômicos têm um efeito de estupefação que se assemelha aos efeitos do terror. Eles dão a impressão de que não há outra alternativa, que esta ordem é inevitável.

Aqueles que colocam em prática este terror procuram, por outro lado, muito conscientemente este efeito de estupefação que provoca a submissão. A estupefação faz crer que aquele que age é muito mais forte do que realmente é; ela faz crer que a situação criada é inevitável; ela reduz ao silêncio, de sorte que não se consegue mais nem nomear o inimigo.

Você acredita que o propósito do Papa seja uma ruptura com as práticas do Vaticano?

Quais práticas? Trata-se de apresentar a pessoa do Papa com menos decoro. Há várias décadas os papas vêm renunciando pouco a pouco aos sinais de ostentação do poder, como, por exemplo, a sedia gestatoria [o trono móvel sobre o qual o papa era carregado para poder ser mais facilmente visto pelos fiéis nas cerimônias públicas em Roma, NDLR]. Eu gostaria de recordar que o “papamóvel”, que substitui a sedia gestatoria, é a consequência direta da tentativa de assassinato de João Paulo II.

Se se trata da maneira como o Vaticano administra sua fortuna, que, lembro, não é grande coisa comparada com aquela do menor dos emirados do petróleo, temo que o problema seja acima de tudo a incompetência das pessoas que tem este encargo, que as coloca à mercê de todo tipo de criminoso. Nós imaginamos o Vaticano com base no modelo do Pentágono; na verdade, é antes uma subprefeitura...

O Papa apela a um retorno à pobreza, a uma economia menos gananciosa, mais sóbria?

A pobreza não é a miséria, ela pode ser voluntária, como nós vimos. Mas a miséria é sempre sofrida. Pelo contrário, eu gosto da palavra “sobriedade”. Ela é o contrário da embriaguez. Ser sóbrio, como em inglês “sober”, significa aquela pessoa que evita o álcool ou a droga e que tem uma conduta mensurada.

A embriaguez distorce a nossa visão da realidade; a sobriedade torna capaz de vê-la. Uma economia sóbria começaria por levar em conta as nossas necessidades reais, e procurar satisfazê-las, em vez de tomar a ela mesma por objeto.

Podemos moralizar as trocas econômicas e colocar a economia a serviço da pessoa? Como? Quais mudanças isso poderia induzir?

Tentou-se este tipo de coisas com a economia social de mercado, na Alemanha do pós-guerra, e há subsistem belos exemplos disso. A tendência ainda é de dar menos ênfase ao adjetivo “social”...

Existe um ensinamento (ou “doutrina”) social da Igreja. Ele é desenvolvido a partir do século XIX para responder às novas condições criadas pela Revolução Industrial e a emergência de novas relações sociais.

Mas ela se funda sobre regras que foram formuladas a partir da Idade Média e do Renascimento. Ao contrário das outras religiões que entram as regras relativas à alimentação, ao vestuário e à vida cotidiana, este ensinamento permanece voluntariamente no nível dos princípios gerais (respeito das pessoas, subsidiariedade, etc.) e deixa à inteligência humana os métodos que permitem sua aplicação. O ensinamento social da Igreja baseia-se na inteligência humana para declinar destes grandes princípios – o kit de sobrevivência da humanidade, que se resume, em última instância, aos 10 Mandamentos – aplicações práticas.

Assim, a doutrina social da Igreja permite afirmar, por exemplo, que não é bom reduzir as pessoas à miséria, de modo que elas trabalhem a qualquer preço. É tarefa de cada pessoa preocupar-se com isso.

Você acredita que as desigualdades sociais produzidas pela economia são inevitáveis?

As desigualdades produzidas pela economia não são as únicas presentes nas sociedades. Mas, as nossas sociedades modernas, democráticas, substituem cada vez mais as desigualdades que repousavam, nas sociedades aristocráticas do Antigo Regime, sobre os privilégios de nascimento. Para não falar das castas indianas.

Quanto às desigualdades socioeconômicas, parece-me que elas são toleráveis apenas a partir do momento em que a mobilidade social é suficientemente grande para garantir que essas desigualdades sejam apenas provisórias.

Se a economia não pode conter o terrorismo do deus dinheiro, quem pode desempenhar este papel? O Direito? O Estado?

O Direito? Sem dúvida, desde que seja executado por um espírito público suficientemente claro sobre as prioridades da vida. Por si só, o Direito não tem grande força se não estiver em sintonia com as grandes tendências sociais.

O Estado? O problema é que, em um ponto capital, ele puxa na mesma direção do mercado: obter indivíduos isolados, dóceis como cidadãos ou como consumidores.

Como o indivíduo pode incorporar na sua vida cotidiana esta denúncia do terrorismo do dinheiro?

É tão difícil encontrar o sentido da sua vida fora da maximização do kiloeuro? Não se orientar de imediatamente para as profissões mais lucrativas? Não fazer os outros se aproveitarem da sua riqueza? Não trocar de carro ou de computador antes que esses objetos estejam em condições de não uso? Não tratar as pessoas no modelo das coisas, que podemos comprar, alugar, descartar, quando estão obsoletas?

Adotar atitudes “sóbrias”, para retomar a expressão, é sem dúvida mais fácil para os indivíduos do que para as instituições. Para fazer evoluir as instituições, pode ser que as escolhas individuais tenham influência, se atingirem uma “massa crítica”. Veja que ee sou cauteloso...

Fonte: Ihu

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