A mãe dá a bronca, o pai afrouxa.
A mãe educa, o pai se omite. A mãe ensina, o pai brinca. Não são poucas as vezes em que o
senso comum perpetua essas frases como exemplos da criação dos filhos,
suscitando rivalidade e descompasso em um processo — criar filhos — que diz
respeito a uma parceria.
Há um mito de que os filhos sejam
da mãe, com a maternidade sendo a condição da feminilidade e a masculinidade
correspondendo ao combate e ao poder. É o que explica a psicanalista Marcia
Neder sobre o título de seu recente livro Os Filhos da Mãe (Leya, 2016). Como
consequência, os homens seriam excluídos ou se excluiriam da criação dos
filhos.
Além disso, uma observação rápida
de experiências familiares atuais mostra relatos frequentes de pais que se
ausentam da educação dos pequenos ou se omitem quanto à função paterna. Em
Pernambuco, estado com expressivas notificações de microcefalia neste ano,
médicos constataram que muitas mães estavam sendo abandonadas pelos
companheiros após descobrirem que o filho do casal é portador da má-formação.
Neste ano, a legislação referente
ao pagamento de pensões alimentícias ficou ainda mais rigorosa para quem não
estava cumprindo o combinado – seja pais ou mães. Pagar pensão não faz de
alguém um pai, mas o não pagamento aponta uma ausência básica alarmante.
Em muitas ocasiões, portanto, a
paternidade tem sido convocada, implorada ou lamentada, em vez de ser
construída e cultivada. Sim, pois trazer ao mundo uma criança não faz de um
homem um pai automático.
“A paternidade é inteiramente
construída. Não se dá naturalmente. Ela se constitui, de início, no psiquismo
materno, no lugar concedido ao pai”, lembra o pediatra e psicanalista Paulo
Schiller.
Falarmos da paternidade apenas
por suas falhas e/ou ausências não seria justo com os pais comprometidos, que
não terceirizam suas responsabilidades e que merecem toda valorização, não só
no Dia dos Pais.
A paternidade é um pilar
essencial qualquer ser humano. “Ela é fundamental na determinação da saúde
psíquica. Os quadros de comprometimento psíquico mais graves estão sempre
ligados a uma paternidade frágil”, atesta Schiller.
Discutir o que é a paternidade em
uma época como a nossa é também essencial, sobretudo porque temos novos
arranjos familiares, papéis sendo redefinidos ou alterados, e os homens já não
têm um lugar garantido como tinham na cultura do patriarcado.
“Quando a criança é muito
pequena, é preciso que um adulto esteja muito disponível, mental e fisicamente,
para cuidar e ajudar o bebezinho a ‘virar gente’. Existem diferenças entre as
funções paterna e materna, mas existe espaço para os dois”, explicam as
psicólogas Julia Milman e Lulli Milman, autoras do livro A Vida com Crianças
(Zahar, 2016).
Além disso, é importante lembrar
que pai, ou paternidade, não se restringe ao pai biológico, mas sim, à função
paterna, que pode ser exercida por outras pessoas, inclusive um irmão mais
velho, assinala a psicanalista Renata Conde Vescovi, autora do livro O Que é um
Pai, Hoje? Reflexões nas Fronteiras entre Direito e Psicanálise(Editora FDV,
2016).
“A função paterna precisa ser
encarnada em alguém que transmita a uma criança valores, referências, afetos e,
principalmente, leis que mostrem à criança que a vida não pode ser vivida no
regime do ‘vale tudo’ e ‘tudo é possível’.”
Pai bom, por exemplo, não tem
nada a ver com heroísmo ou com perfeição, mas sim, com presença, imperfeição,
erros e novas tentativas. Vescovi completa:
“Um bom pai e uma boa mãe são
aqueles que erram, que se angustiam com sua posição de pai/mãe. É aquele pai
que perde uma noite de sono porque seu filho lhe fez uma pergunta que lhe
provocou um sofrimento e que o colocou a pensar, a se reinventar como pai. A
paternidade é uma invenção. O ser humano não nasce com um manual de orientações
de como é se relacionar com o outro sexo, como é procriar, como é ser pai.”
As psicólogas Milman, que são mãe
e filha, destacam que os primeiros meses de um bebê são bastante trabalhosos e
nesse início de vida criam-se vínculos muito importantes.
“Se o pai é uma pessoa presente,
ele deve se envolver com os cuidados do bebê, dar banho, acalentar, trocar,
enfim, fazer parte da rotina. Além disso, pode dar suporte para a pessoa que
desempenha a função materna. A possibilidade de se relacionar intimamente com
duas pessoas diferentes, o pai e mãe, enriquece a experiência subjetiva da
criança e ajuda a não deixá-la inteiramente exposta às dificuldades de um dos
dois.”
Elas afirmam que é frequente os
pais não fazerem o movimento de se incluir, de se fazer presente, de se
responsabilizar pelo cuidado com os filhos.
“Eles podem, desde o início,
buscar um lugar próprio na vida dos filhos, sem, no entanto, competir com a
mãe.”
Conversar com os filhos e
acompanhá-los é uma forma de se fazer presente, exemplifica Vescovi.
“Eles [os pais] devem estar
dispostos a se responsabilizar pelos seus filhos e transmitirem a ‘lei’ que
permite que a criança, diante da falta e da angústia, possa inventar maneiras
de viver sua vida e respeitar as diferenças no convívio coletivo.”
Muito se fala sobre o
enfraquecimento da autoridade dos pais, com a consequente falta de limites; e
por vezes, o empoderamento das mulheres é citado como possível causa. Tanto
Schiller quanto Vescovi ponderam quanto a essa relação.
“É uma tese muito difundida
atualmente. É possível que a posição conquistada pelas mulheres implique, em
algumas famílias, uma desvalorização do lugar do pai. Mas isso é dificilmente
mensurável”, diz Schiller.
Vescovi relaciona o
enfraquecimento da autoridade dos pais com a lógica de consumo desenfreado em
que vivemos:
“A mercadoria dita as regras de
funcionamento da vida coletiva e propaga uma lei de que vale tudo para obtermos
o objeto do desejo. Para tal, exige a padronização das condutas, e uma certa
homogeneização dos seres, que vão perdendo sua marca de diferença em lidar com
a vida. Como conseqüência, se o ser humano perde o poder de pensar, refletir, e
dizer, ele se torna presa fácil dos ideais do mercado, por exemplo.”
Além disso, o uso excessivo das
técnicas e medicamentos voltados para trazer conforto ao sofrimento humano
retira nosso poder de reflexão e elaboração sobre a dor, completa Vescovi.
“A dor de existir traz
sofrimento, mas também nos permite inventar para lidar com as adversidades.”
Fonte: Brasil Post
Nenhum comentário:
Postar um comentário