quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Voltamos para a 4ª série? A escola precisa falar de igualdade de gênero

Há algum tempo tenho me perguntado o porquê de estimularmos em nossas crianças as brincadeiras do tipo "meninos contra meninas". Por que não variar, misturar grupos; promover diferentes tipos de disputas não só baseadas no gênero das crianças?


Por Ana Elisa Santana


Vivemos dias de glória e de fúria para a mulher no Brasil, dentro e fora das redes sociais. Enquanto na Câmara dos Deputados tramita o projeto 5069/2013, que põe em risco direitos há tempos adquiridos pelas mulheres, o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) propôs, há dez dias, o tema de redação "A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira", que trouxe à luz um assunto que precisa ser debatido urgentemente e em larga escala.

Sobre o Enem, o que se viu nas redes sociais foi, se não inacreditável, assustador. Enquanto de um lado muitas mulheres se sentiram felizes e representadas, de outro houve uma série de equívocos que geraram reclamação, teorias da conspiração e a demonstração do machismo em algumas das suas piores formas (se é que elas podem ser elencáveis): em uma delas, uma redação "modelo" falava que mulher "tem que apanhar mesmo", entre outras atrocidades. E tudo era compartilhado como piada; sem a menor cerimônia, sem o menor senso crítico.

Muitas pessoas denunciaram a página "Orgulho de ser Hétero", responsável por esse conteúdo, até o momento em que ela foi retirada do ar pelo Facebook no último fim de semana. O que não se imaginava é que haveria a "revanche": grupos orquestraram falsas denúncias a páginas feministas e, com isso, Feminismo Sem Demagogia e Jout Jout Prazer também caíram. Esta última por ter feito, na semana anterior, um vídeo intitulado VAMOS FAZER UM ESCÂNDALO (em caixa alta mesmo, porque tem que ser assim, gritando mesmo), que alerta para a existência da cultura do estupro no país e fala sobre o número de assédios sofridos por meninas e mulheres durante toda a vida.

A mensagem (que é INCRÍVEL) já teve mais de um milhão de visualizações apenas no YouTube:
  

Talvez você já tenha acompanhado essa história, mas recapitulei porque quero usar este espaço para falar sobre o poder da palavra.

Em uma de minhas citações preferidas, Rubem Alves dizia que "as palavras só têm sentido se nos ajudam a ver o mundo melhor". Há quem possa imaginar que essa é uma frase direcionada a escritores, jornalistas, professores de redação... mas não.

Desde pequenos somos estimulados a usar a palavra. Quando aprendemos a falar com nossos pais, irmãos, familiares, amigos... a palavra está em tudo. E é uma das nossas maiores armas.

Em tempos de redes sociais, todos têm essa arma como uma potência ainda maior: páginas e canais são criados em diferentes plataformas e, a depender do tema ou da abordagem, podem ter milhares de seguidores em pouco tempo. Não são só os jornais, rádios e tevês que podem falar; todos têm voz. Ponto pra gente. Mas... é aí, também, que mora o perigo. Todo mundo fala o que quer. Aliás, muita gente acha que pode falar o que quer.

Ao perceber que a página havia sido suspensa, Jout Jout perguntou em sua conta no Twitter: "O que está acontecendo, Brasil? Alguma prank (brincadeira) de quarta série?".

Sim, Jout Jout. Voltamos para a escola.

Ah, a escola.

Há algum tempo tenho me perguntado o porquê de estimularmos em nossas crianças as brincadeiras do tipo "meninos contra meninas". Por que não variar, misturar grupos; promover diferentes tipos de disputas não só baseadas no gênero das crianças?

Que tal, por exemplo, dividi-las pelas letras iniciais dos nomes, sendo mais simplistas; ou então pelo tipo de música preferida, para que elas possam expor suas opiniões e trocar experiências?

A gente começa, desde cedo, a colocar essa guerra dos sexos na cabeça das crianças. A gente começa, desde cedo, a fazer errado.

É necessário pensar na igualdade de gênero nas escolas. Mais do que colocar isso em debate com os pequenos, é preciso mostrar a igualdade a eles, na prática, no cotidiano escolar - e levar isso para a comunidade também; estimular que a família faça o mesmo, se isso já não ocorre.

Promover ações que não coloquem o gênero como principal fator de separação e competitividade, realizar atividades com divisão de tarefas, fazer que as crianças se entendam como seres humanos, e não simplesmente como meninos e meninas, homens ou mulheres.




O mundo é muito mais do que rosa versus azul. Na verdade, ele não deveria ter nada de rosa versus azul. São apenas cores!

Toda essa brincadeira - da forma que for realizada, com incentivo à igualdade de gênero ou não - se reflete em casa, quando a criança sai da aula. E se refletirá na sociedade, no decorrer de dez, 15, 20 anos, enquanto o jovem cresce e quando o jovem se formar.

A brincadeira a que Jout Jout se referiu em seu tweet é um exemplo para aquela passagem da infância que muitos devem ter vivenciado, quando jogávamos dama ou xadrez com uma criança mimada e ela, ao ver que estava perdendo, derrubava todas as peças, dando a partida como encerrada.

"Já que derrubaram nossa página, vamos derrubar as delas." A diferença, neste caso, é que há anos a "Orgulho de Ser Hétero" disseminava conteúdo machista e homofóbico, alimentando ódio e preconceito.

Conteúdo criminoso que ganhou ares de "zoeira" com a distorção que a internet tem, erroneamente, permitido.

As páginas feministas não fazem mais do que ajudarem mulheres a se descobrirem em situações de assédio, de relacionamento abusivo, a saberem quais são seus direitos, onde podem buscar ajuda. É aquela velha história: o feminismo é sobre direitos iguais. O machismo, bom, nem vale a pena falar.

E em todo este processo, a educação é fundamental. As escolas e a sociedade precisam formar cidadãos que entendam o outro como um semelhante, que o respeitem e saibam usar a palavra para se expressar, para dialogar, em vez de apenas atacar.

Quem sabe assim, daqui a dez ou 20 anos, não seja mais necessário argumentar sobre a necessidade de falar sobre assédio sexual a crianças e adolescentes ou sobre a violência contra a mulher. Relembrando Rubem Alves, ele diz: "aprendemos palavras para melhorar os olhos". Quantos olhos você tem melhorado com as suas?

Em meio a tudo isso, uma coisa é certa: nós, mulheres, não vamos nos calar. Vamos continuar fazendo um escândalo.


Ana Elisa Santana é jornalista e pós-graduanda em educação para direitos humanos e diversidade cultural

Fonte: Brasil Post

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