sexta-feira, 30 de outubro de 2015

As mulheres não estavam no Sínodo.


Lucetta Scaraffia, 67, historiadora e feminista italiana, foi uma das 32 mulheres convidadas a participar do sínodo dos bispos sobre a família, em Roma, entre os dias 4 e 25 de outubro.
"O que mais me espantou nesses cardeais, bispos e padres foi sua perfeita ignorância sobre o sexo feminino, seu pouco conhecimento em relação a essas mulheres tidas como inferiores como as freiras, que geralmente lhes serviam de domésticas. Não todos, evidentemente – cheguei a fazer amizade com alguns deles, antes mesmo do sínodo– , mas para a imensa maioria, o constrangimento sentido pela presença de uma mulher como eu era palpável, sobretudo no começo."

Por Lucetta Scaraffia.
A editora do suplemento feminino do “L’Osservatore Romano”, jornal do Vaticano, relata para o “Le Monde” de forma mordaz esse trabalho entre os homens da Igreja

Quantas vezes não disse para mim mesma, ao longo dessas três semanas de sínodo, para conter a impaciência rebelde que tomava conta de mim? Afinal, eles me convidaram e até me deixaram falar. Eu, uma “feminista histórica”, não exatamente diplomática, nem paciente, como eles certamente notaram.

Para uma mulher como eu, que viveu o Maio de 68 e o feminismo, que lecionou em uma universidade pública e participou de comitês e de grupos de trabalho de todos os gêneros, essa experiência foi verdadeiramente inédita. Isso porque embora já tenha acontecido, quando eu era jovem e as mulheres ainda eram raras em determinados meios culturais e acadêmicos, de eu ser a única no meio de um grupo de homens, esses homens ao menos conheciam um pouco o assunto, sendo casados ou tendo filhas.

O que mais me espantou nesses cardeais, bispos e padres foi sua perfeita ignorância sobre o sexo feminino, seu pouco conhecimento em relação a essas mulheres tidas como inferiores como as freiras, que geralmente lhes serviam de domésticas. Não todos, evidentemente – cheguei a fazer amizade com alguns deles, antes mesmo do sínodo– , mas para a imensa maioria, o constrangimento sentido pela presença de uma mulher como eu era palpável, sobretudo no começo.

De qualquer forma, não havia nenhum sinal desse cavalheirismo que se costuma encontrar sobretudo entre os homens de uma certa idade, dos quais eles fazem parte. Com a maior desenvoltura, eles me cortavam nas escadas e passavam alegremente na minha frente no bufê durante os intervalos. Até que um garçom, com pena de mim, perguntou o que eu queria beber.

Depois, quando começamos a nos conhecer melhor, especialmente durante as sessões de trabalho em grupos pequenos, os outros clérigos foram aos poucos mostrando simpatia por mim. À maneira deles, é claro: eu era considerada como uma mascote, sempre tratada com paternalismo, ainda que eles tivessem a minha idade ou fossem ainda mais jovens que eu.

Desde que cheguei, tudo parecia ter sido concebido para que eu me sentisse como uma estranha: apesar das minhas credenciais, eu era submetida a checagens inflexíveis. Chegaram a tentar pegar meu tablet e meu celular. Toda vez me tomavam por outra pessoa, uma jornalista no melhor dos casos, ou uma faxineira. Depois eles aprenderam a me conhecer e a me tratar com respeito e gentileza. Quando, após três ou quatro dias, a guarda suíça uniformizada encarregada de vigiar a entrada bateu continência para mim, me senti no paraíso!

“Se elas entrarem, seremos esmagados”

No entanto, minha presença era no máximo tolerada: eu não “batia ponto” antes de cada sessão de trabalho como os padres sinodais, eu não tinha o direito de discursar, somente no final, quando se abre a fala para a plateia, e a mim também não era permitido votar, mesmo nas sessões de pequenos grupos. Não somente eu não tinha direito de votar, como me era proibido propor modificações ao texto submetido a debate. Na teoria, eu não deveria nem mesmo falar, mas de vez em quando até pediam minha opinião. Precisei de coragem, mas comecei a levantar a mão e a me expressar. Na última reunião, cheguei a conseguir sugerir modificações! Enfim, tudo contribuía para que eu me sentisse inexistente.

Nenhuma de minhas falas tinha o efeito esperado. Um dia, quis lembrar que no 19º capítulo do Evangelho segundo São Mateus, Jesus falava em “repúdio” e não em “divórcio”, e que, no contexto histórico que era o seu, isso significava “repúdio da mulher pelo marido”. Além disso, a indissolubilidade defendida por Jesus não seria um dogma abstrato, mas uma proteção dada aos mais frágeis da família: as mulheres. Mas eles continuaram explicando que Jesus era contra o divórcio. Eu poderia muito bem não ter dito nada, pois falava para o vazio.

Bem que tentei dividir minhas impressões com as outras poucas mulheres presentes no sínodo, mas elas sempre me olhavam com espanto; para elas, esse tratamento era totalmente normal. A maior parte delas estava lá só como parte de um casal –no momento dos discursos de encerramento, ouvi improváveis relatos de casamentos narrados em conjunto com o marido.

A única que escapava desse clima de resignação era uma jovem freira combativa que havia descoberto, durante uma conversa com o papa, que as quatro cartas que sua associação lhe havia enviado –para exigir mais espaço para as freiras– nunca haviam chegado até o pontífice. Entendi que as freiras, por serem muitas, e muito mais numerosas que os religiosos, causavam medo: se elas entrassem, eles seriam esmagados. Então era melhor fingir que elas não existiam.

Diante dos meus olhos curiosos e pasmos, a igreja mundial ganhou corpo e identidade. É claro, existem campos distintos, entre aqueles que querem mudar as coisas e aqueles que querem simplesmente defender o status quo. E a oposição é bem nítida. Entre os dois há uma espécie de pântano, onde as pessoas se alinham, dizem coisas vagas e esperam para ver como o debate vai evoluir. O campo dos conservadores afirma aos pobres fiéis que seguir as normas não é um fardo desumano, porque Deus nos ajuda com sua graça. Eles têm uma linguagem colorida para falar das alegrias do casamento cristão, do “canto nupcial”, da “Igreja doméstica” do “Evangelho da família” –em suma, de uma família perfeita que não existe, mas que deve ser confirmada pelos casais convidados a contarem suas histórias. Talvez eles acreditem nisso. De qualquer forma, eu não queria estar no lugar deles.

Existem mais nuances no campo dos progressistas. Os mais audaciosos chegam a falar de mulheres e de violência conjugal. É fácil distingui-los, pois eles invocam sem parar a misericórdia. Naturalmente, as famílias perfeitas não precisam de misericórdia. “Misericórdia” foi a palavra-chave do sínodo: nos grupos de trabalho, uns lutam para suprimi-la dos textos, outros a defendem com vigor e buscam até multiplicá-la. No fundo, não é muito complicado. Eu havia me imaginado em uma situação teologicamente mais complexa, mais difícil de decifrar para quem está de fora.

Mas aos poucos fui entendendo que está ocorrendo uma mudança profunda: aceitar que o casamento seja uma vocação, assim como a vida religiosa, é um grande avanço. Isso significa que a igreja reconhece o sentido profundo da encarnação, que deu valor espiritual àquilo que vem do corpo, e portanto também à sexualidade considerada como um meio espiritual, seja na castidade ou na vida conjugal. A insistência na verdadeira intenção da fé e na preparação para o sacramento também é muito importante: é o fim da adesão de fachada, sem uma escolha consciente.

O grande preceito de Jesus, segundo o qual só conta a intenção do coração, vai entrando aos poucos na vida prática. Isso quer dizer que estamos avançando de maneira significativa na compreensão de sua palavra. Nas milhares de polêmicas sobre a doutrina ou sobre a normatividade, nada disso parece existir, mas olhando mais de perto, a mudança é perceptível, e certamente é positiva.

Um pouco de catecismo antes das núpcias

Durante as longas horas de debates, observei, fascinada, a elegância dos clérigos: todos “uniformizados”, com suas batinas bordadas de roxo ou vermelho, seus solidéus nas mesmas cores e, no caso de alguns, suas elaboradas capas com longos fios bordados e botões coloridos. Os orientais exibiam mitras de veludo bordadas de ouro ou de prata, chapéus altos pretos ou vermelhos. O mais elegante de todos usava uma longa túnica roxa, e no fim descobri que se tratava de um bispo anglicano. Às vezes, de longe, um dominicano de túnica branca era confundido com o papa, que, democraticamente, se juntava a nós nos intervalos.

É verdade que eles vêm de todas as partes do mundo; em geral, os bispos dos países colonizados falam a língua do antigo conquistador, francês, inglês ou português. Aqueles que vêm do leste europeu falam italiano. Percebo como são muitos os bispos vindos da Índia e da África. Cada um representa um pedaço da história e da realidade, independentemente de falarem de dificuldades concretas ou de se contentarem com tiradas teóricas defendendo a família.

E assim eu descubro que os defensores mais rígidos da tradição são aqueles mesmos que vivem nos países onde a vida é mais difícil para os cristãos, como os orientais, os eslavos ou os africanos. Aqueles que sofreram as perseguições comunistas propõem que se resista com o mesmo rigor e a mesma intransigência aos encantos da modernidade; aqueles que vivem em países atormentados e em conflito onde a identidade cristã é ameaçada pensam que é somente se mantendo firme nas regras que se pode defender a religião contra as ameaças que pairam sobre ela.

Com algumas exceções, que têm minha preferência, todos falam em uma linguagem autorreferencial, quase sempre incompreensível para quem não pertence à “panelinha” do clero: “afetividade” para se referir a “sexualidade”, “natural” para “não modificável”, “sexualidade madura”, “arte do acompanhamento”… Quase todos estão convencidos de que basta um curso de preparação para o casamento para superar todas as dificuldades e talvez também um pouco de catecismo antes das núpcias.

No entanto, do mundo real surgem situações tão diversas quanto complexas. Em particular a questão dos casamentos mistos presente no mundo todo. Os problemas são diversos, mas há um que surge em todos os casos: a religião católica é a única a enunciar a indissolubilidade do casamento. Então os pobres católicos muitas vezes se veem abandonados e na impossibilidade de se casarem novamente. Quantos clérigos não defendem com orgulho suas famílias tradicionais sem pensar que na maioria dos casos trata-se de situações que penalizam as mulheres?

Mas as mulheres são quase invisíveis. E quando as menciono em minhas falas, queixando-me de sua ausência justamente quando o objetivo é debater a questão da família, me acham “muito corajosa”. Sou aplaudida e até mesmo me agradecem; fico um tanto surpresa, depois entendo que, ao falar claramente delas, eu as dispenso de fazerem o mesmo.

Levada por essa onda de sentimentos contraditórios –entre a raiva provocada por uma evidente exclusão e a satisfação de estar lá de qualquer forma– , eu não pude deixar de pensar que era extraordinário, nos dias de hoje, participar de uma assembleia que abriu com o canto do Veni Creator Spiritus e se encerrou com o Te Deum. Mas é exatamente por esse motivo que sofro ainda mais com a injusta exclusão das mulheres de uma reflexão que, a princípio, trata da relação da humanidade como um todo, e, portanto, de homens e mulheres, com Deus.


Fonte: UOL

Nenhum comentário: