quarta-feira, 19 de agosto de 2015

O estigma da trabalhadora sexual: como a lei perpetua nosso ódio (e medo) de prostitutas

Vinte anos atrás, eu fiz pela primeira vez duas perguntas que continuam a me abalar hoje. A primeira é respondível: O que uma mulher que vende sexo realiza que a leva a ser tratada como caída, fora dos limites, incapaz de falar por si mesma, menosprezada quando fala, invisível como membro da sociedade? A resposta é que ela carrega um estigma. A segunda pergunta é um corolário: Por que a maior parte das conversas públicas focaliza as leis e regulamentações que visam a controlar essas mulheres estigmatizadas, ao invés de reconhecer seu papel como agentes? Para isso, a resposta não é tão direta.
Por Laura Agustín

Nossa sociedade faz vista grossa para o assassinato de trabalhadoras do sexo, considerando-as menos do que humanas. Por quê?

Não importa de que direção política você vem: os temas de trabalho com sexo, exploração sexual, prostituição e tráfico de pessoas para sexo parecem um Nó Górdio. Enquanto você ouve um grupo de defensores e toma as evidências em boa fé, você está OK. Mas no minuto em que você ouve outro grupo de defensores com argumentos e evidências diferentes, tudo se desmancha. A forma como essas assuntos se intersectam leva a contradições insustentáveis, que fazem o progresso parecer impossível. A angústia e o vale-tudo ideológico predominam.

Vinte anos atrás, eu fiz pela primeira vez duas perguntas que continuam a me abalar hoje. A primeira é respondível: O que uma mulher que vende sexo realiza que a leva a ser tratada como caída, fora dos limites, incapaz de falar por si mesma, menosprezada quando fala, invisível como membro da sociedade? A resposta é que ela carrega um estigma. A segunda pergunta é um corolário: Por que a maior parte das conversas públicas focaliza as leis e regulamentações que visam a controlar essas mulheres estigmatizadas, ao invés de reconhecer seu papel como agentes? Para isso, a resposta não é tão direta.

Sou levada a fazer essa avaliação depois do assassinato de alguém que eu conhecia, Eva-Maree Kullander Smith, conhecida como Jasmine. Morta na Suécia por um ex-companheiro irado, Eva-Marie também foi vítima da morte social que atinge as trabalhadoras sexuais, qualquer que seja o nome pelo qual você prefira chamá-las. Imediatamente depois do assassinato, ativistas pelos direitos humanos amaldiçoaram a lei sueca sobre prostituição, que tem sido promovida em todos os lugares como a melhor para as mulheres. Minha própria reação foi um sentimento horrível, quando percebi que a noção de uma Indústria do Resgate, cunhada durante minha pesquisa sobre a “salvação” de mulheres que vendem sexo, era mais adequada do que eu havia pensado.

Os assassinatos de trabalhadoras sexuais são assustadoramente frequentes, incluindo assassinatos em série. Em Vancouver, Robert Pickton chegou a matar 26, entre 1996 e 2001, antes de a polícia se importar o suficiente para fazer alguma coisa a respeito. Gary Ridgeway, condenado por matar 49 mulheres nos anos 1980/90 no estado de Washington, disse: “Escolhi prostitutas porque pensava que poderia matar quantas quisesse sem ser pego.” Declarações infames de policiais e promotores incluem a do procurador-geral durante o julgamento de Peter Sutcliffe, em 1981, pelos assassinatos de pelo menos 13 mulheres no norte da Inglaterra: “Algumas eram prostitutas, mas talvez a parte mais triste deste caso é que algumas não eram.” Ele pôde dizer isso por causa de uma crença onipresente de que o estigma colado em mulheres que vendem sexo é real – que prostitutas realmente são diferentes de outras mulheres.

Meu foco no feminino é deliberado. Todos os que propõem políticas para a prostituição estão cientes de que homens vendem sexo, mas eles não estão preocupados com homens, que simplesmente não sofrem a desgraça e a vergonha que recaem sobre as mulheres que o fazem.

Estigma e desqualificação

Muita gente tem apenas uma vaga ideia do que a palavra estigma significa. Pode ser uma marca no corpo de uma pessoa – uma característica física, ou uma Letra Escarlate. Pode resultar de uma condição como a lepra, na qual a pessoa afetada não tem como evitar o contágio. Sobre sua seleção de vítimas, Sutcliffe disse que podia afirmar, pela maneira como as mulheres andavam, se elas eram ou não sexualmente “inocentes”.

O estigma também pode resultar de comportamentos vistos como envolvendo escolha, como usar drogas. Para Erving Goffman, as identidades dos indivíduos são “estragadas” quando o estigma é revelado. A sociedade dá sequência desacreditando o estigmatizado – chamando-os de depravados ou anormais, por exemplo. Marcadas com o estigma, as pessoas podem sofrer uma morte social – a não-existência aos olhos da sociedade – se não a morte física, em câmaras de gás ou em assassinatos em série.

No fim dos anos 1990, eu imaginava por que um grupo migrante que aparecia frequentemente nos informes da imprensa e era bem conhecido por mim, pessoalmente, estava ausente da literatura acadêmica sobre migração. Vim a entender que mulheres migrantes que vendem sexo eram desqualificadas como tema de estudos sobre migração, em alguns casos em um processo inconsciente dos intelectuais e dos editores de publicações acadêmicas. O estigma ligado a vender sexo era tão sério, a ponto de ser melhor não mencionar essas migrantes, absolutamente? Ou as pessoas pensavam que a venda de sexo transporta necessariamente qualquer coisa escrita sobre ela para um novo campo, como o do feminismo? Quando submeti a uma publicação sobre migração um artigo que tratava dessa desqualificação, “O Desaparecimento de uma Categoria de Migração: Mulheres que Vendem Sexo”, dois anos e meio se passaram até a sua publicação, provavelmente porque o editor não encontrava revisores da mesma área dispostos a lidar com minhas ideias.

Dos muitos livros sobre prostituição que li naquela época, a maioria descartava a possibilidade de que mulheres que vendem sexo pudessem ser racionais, comuns, pragmáticas e autônomas. As desculpas seguiam um padrão: as mulheres não entendiam o que estavam fazendo, porque não eram educadas. Elas sofriam de uma consciência falsa, o fracasso em reconhecer sua própria opressão. Elas eram viciadas em drogas, que nublavam suas mentes. Elas haviam sido seduzidas por cafetões. Elas eram manipuladas por suas famílias. Elas eram danificadas psicologicamente, de modo que seus julgamentos eram falhos. Se eram imigrantes, elas pertenciam a culturas não esclarecidas, que não lhes deram opções. Porque sofreram lavagem cerebral por parte de seus exploradores, nada do que elas dissessem podia ser confiável. Essa série de desqualificações levou a lacunas grandes na literatura das ciências sociais e da mídia dominante, mostrando que o poder de um estigma que tem seu próprio nome – o estigma da puta. Dadas as identidades estragadas dessas mulheres, outros se sentiram chamados a falar por elas.

A Indústria do Resgate, os regimes legais e o estigma

Diz-se que uma pessoa em uma profissão ou campanha de ajuda personifica o bem na humanidade – benevolência, compaixão, desapego. Mas quem ajuda assume uma identidade positiva muito distante daqueles afetados pelo estigma, e recebe benefícios com isso: prestígio e influência para todos e emprego e segurança para muitos. Muitos acreditam que quem ajuda sempre sabe como ajudar, mesmo quando eles não têm experiência pessoal da cultura ou da economia política na qual estão intervindo. O que eu notei foi como, apesar do grande número de pessoas dedicadas a salvar prostitutas, a situação das mulheres que vendem sexo nunca melhora. A “Construção de Identidades Benevolentes por Meio da Ajuda a Mulheres que Vendem Sexo” foi a chave que desbloqueou minha compreensão da Indústria do Resgate.

Abolicionistas falam o tempo todo sobre a prostituição como violência contra mulheres, estabelecem projetos para resgatar trabalhadoras sexuais e ignoram a disfuncionalidade de muito do que é concebido como “reabilitação”. O abolicionismo contemporâneo focaliza em grande parte o resgate de mulheres consideradas vítimas do tráfico, tendo como alvos as mulheres móveis e migrantes que mencionei antes, que agora desapareceram completamente numa narrativa de vitimização feminina. Embora muito disso esteja sob uma bandeira feminista, maternalismo colonialista é uma descrição melhor.

No abolicionismo clássico, o estigma da puta é considerado uma consequência do patriarcado, um sistema no qual homens subjugam mulheres e as dividem entre as boas, que são casáveis, e as más, que são promíscuas ou vendem sexo. Sustentam a ideia de que se a prostituição fosse abolida, o estigma da puta desapareceria. Mas os movimentos contemporâneos contra envergonhar a vadia, contra culpar a vítima e a contra a cultura do estupro mostram claramente como o estigma da puta se aplica a mulheres que não vendem sexo – portanto, o argumento é fraco. Em lugar disso, a aversão do abolicionismo à prostituição provavelmente reforça o estigma, apesar da mudança da prostituta para o status de vítima, do status de transgressora que ela tinha antes.

No proibicionismo, aquelas envolvidas em sexo comercial são criminalizadas, o que reproduz o estigma diretamente. Nesse regime, a mulher que vende sexo é uma fora-da-lei deliberada, o que, estranhamente, lhe dá um certo papel de sujeito da ação.

Para os defensores da descriminalização de todas as atividades do sexo comercial, o desaparecimento do estigma da puta aconteceria por meio do reconhecimento e da normalização da venda de sexo como trabalho. Não sabemos ainda quanto tempo pode demorar para que o estigma morra em lugares onde algumas formas de trabalho com sexo foram descriminalizadas e regulamentadas: Nova Zelândia, Austrália, Alemanha, Holanda. Tendo em vista a potência do estigma em todas as culturas, pode-se esperar que ele diminua de forma desigual, porém estável, como aconteceu e continua a acontecer com o estigma da homossexualidade em todo o mundo.

Leis sobre prostituição e moralidades nacionais

Expliquei de modo extenso meu ceticismo quanto a leis sobre prostituição em um artigo acadêmico, “O Sexo e os Limites do Iluminismo: a Irracionalidade de Regimes Legais para Controlar a Prostituição”. Todas as leis sobre prostituição são concebidas como métodos para controlar mulheres que, antes de as ideias sobre vitimização se firmarem, eram vistas como figuras poderosas e perigosas associadas a rebelião, revolta, carnaval, o mundo de ponta-cabeça, poder espiritual e maldade calculada. Conversas a respeito de sobre leis sobre prostituição, não importa onde ocorrem, discutem como administrar as mulheres: é melhor permitir que elas trabalhem ao ar livre ou limitá-las a lugares fechados? Quantos salões de lapdancing devem obter licenças e onde devem ser localizados? Em bordéis, com que frequência as mulheres devem ser examinadas para doenças sexualmente transmitidas? A retórica de ajuda e salvação que cerca a lei se conforma aos esforços do Estado para controlar e punir; a primeira parada para mulheres apanhadas em batidas contra bordéis ou em operações de resgate de vítimas de tráfico é uma delegacia de polícia. As leis sobre prostituição generalizam a partir do pior cenário, o que leva diretamente ao abuso policial contra a maioria dos casos, que não são tão sérios.

Na teoria, sob o proibicionismo as prostitutas são presas, multadas, encarceradas. Sob o abolicionismo, que permite a venda de sexo, uma miscelânea de leis, portarias e regulamentações dá à polícia uma miríade de pretextos para atormentar as trabalhadoras do sexo. O regulamentismo, que pretende mitigar o conflito social por meio da legalização de algumas formas de trabalho com sexo, trata formas não regulamentadas como ilegais (e raramente concede direitos trabalhistas às trabalhadoras). E, em anos recentes, surgiu uma lei híbrida que torna ilegal pagar por sexo, enquanto a venda é permitida. Sim, é ilógico. Mas a contradição não é sem sentido; é porque o objetivo da lei é fazer a prostituição desaparecer pela desabilitação do mercado, por meio de uma ignorância absurda de como os negócios do sexo funcionam.

A discussão a respeito de leis sobre prostituição ocorre em contextos nacionais onde a retórica frequentemente remete a noções essencialistas de moralidade, como se neste mundo altamente viajado e de culturas híbridas ainda fosse possível falar em caráter nacional autêntico, ou como se os valores dos “pais fundadores” devessem definir um país para todo o sempre. Um interventor, na recente audiência do Supremo Tribunal do Canadá a respeito de leis sobre prostituição, argumentou que a descriminalização seria um desafio aos valores da “comunidade canadense”: “de que todas as mulheres requerem proteção de atividades sexuais imorais em geral, e da prostituição especificamente”, e “a forte desaprovação da própria prostituição, com a intenção de promover a igualdade dos gêneros”. O foco nacional bate com as campanhas antitráfico, que não apenas dizem seguir a lei internacional como patrocinam intervenções imperialistas por parte de ONGs ocidentais em outros países, notavelmente na Ásia. onde os EUA estão assumindo o papel familiar de intrometer-se no resto do mundo.

Igualdade dos gêneros, feminismo estatal e intolerância

A igualdade dos gêneros agora é rotineiramente aceita como um princípio digno, mas o termo é tão amplo e abstrato que muitas ideias variáveis, contraditórias e mesmo autoritárias se escondem por trás dela. A igualdade dos gêneros como objetivo social deriva de uma tradição feminista burguesa de valores sobre pelo que lutar e como comportar-se, particularmente no que se refere ao sexo e à família. Nessa tradição, casais amorosos e comprometidos, vivendo com seus filhos em famílias nucleares são os cidadãos ideais da sociedade, que também devem endividar-se para comprar casas e obter educação universitária, assumir “carreiras” para toda a vida e submeter-se a governos eleitos. Embora muitos desses valores coincidam com medidas governamentais de longo prazo para controlar a sexualidade e a reprodução das mulheres, questioná-los é visto com hostilidade. A premissa é a de que os status quos governamentais nacionais seriam aceitáveis, bastando que dentro deles as mulheres tivessem direitos iguais.

A igualdade dos gêneros começou a ser medida pela ONU em 1995, com base em indicadores em três áreas: saúde reprodutiva, empoderamento e mercado de trabalho. São intermináveis as discussões sobre todos os conceitos envolvidos; muitos os veem como favorecendo um conceito ocidental de “desenvolvimento humano” que é vinculado à renda. (como definir igualdade também é uma questão controvertida.) Até um par de anos atrás, o índice se baseava em mortalidade maternal e na taxa de fertilidade das adolescentes (para saúde), parcela de cadeiras parlamentares nas mãos de cada sexo, mais educação secundária/superior (para empoderamento) e a participação das mulheres na força de trabalho (para mercado de trabalho). Nesses indicadores, que focalizam uma gama estreita de experiências de vida, os países do norte da Europa têm as maiores notas, o que leva o mundo a olhar para lá na busca de ideias progressistas sobre igualdade dos gêneros.

Esses países manifestam algum grau de Feminismo Estatal: a existência de cargos governamentais com a missão de promover a igualdade de gêneros. Eu não sei se isso é inevitável, mas é certamente universal o fato de que as políticas promovidas por esses cargos acabem sendo intolerante em relação a diversos feminismos. O Feminismo Estatal simplifica questões complexas por meio de pronunciamentos representados como a maneira correta e feminista de entender qualquer assunto que esteja à mão. Embora aqueles nomeados para tais cargos devam demonstrar que têm experiência e educação, eles também precisam ser reconhecidos pelas redes sociais influentes. Não surpreende que muitas pessoas nomeadas para esses cargos venham de gerações para quem o feminismo significava a crença de que todas as mulheres, em todas as partes, compartilham uma identidade e uma visão de mundo essenciais. Algumas vezes, isso se manifesta como um feminismo extremista, fundamentalista ou autoritário. A Suécia é um exemplo.

A Suécia e a prostituição

A população de apenas 9,5 milhões está espalhada numa área grande, e até mesmo a maior cidade é pequena. Na história da Suécia, a desigualdade social (diferenças de classe) foi desde cedo um alvo para obliteração; atualmente, a maioria das pessoas se parece como e age como classe média. A corrente principal da sociedade é bastante ampla, enquanto as margens sociais são estreitas, estando a maioria empregada e/ou apoiada por vários programas governamentais. Embora a utopia sueca do Folkhemmet – O Lar do Povo – nunca tenha sido alcançada, ela sobrevive como um símbolo poderoso e sonho de consenso e de paz. A maioria das pessoas acredita que o Estado sueco é neutro, se não benevolente, mesmo quando elas reconhecem suas imperfeições.

Depois da eliminação da maioria das distinções de classe, a desigualdade de gêneros tornou-se alvo (diferenças étnicas/raciais eram uma questão menor, até o crescimento recente das migrações). A prostituição tornou-se um tema de pesquisas e de publicações do governo a partir dos anos 1970. Na altura dos anos 90, erradicar a prostituição passou a ser visto como uma condição necessária para alcançar a igualdade entre homens e mulheres, e factível numa sociedade pequena e homogênea. A solução encontrada seria a de criminalizar a compra de sexo, conceptualizada como um crime masculino, e ao mesmo tempo permitir a venda de sexo (porque as mulheres, como vítimas, não podem ser penalizadas). O veículo principal não consistiria em detenções e encarceramentos, mas numa mensagem simples: na Suécia nós não queremos prostituição. Se você está envolvido em compra ou venda de sexo, abandone esse comportamento prejudicial e junte-se a nós numa sociedade equitativa.

Como a ideia de que a prostituição é prejudicial entranhou na vida política durante décadas, a recusa a aceitar esse convite pode parecer equivocada e perversa. Acabar com a prostituição não é algo visto como um decreto de ditadores feministas, mas sim, como a meta de acabar com o estupro, como uma necessidade óbvia. Para muitos, a prostituição também parece incompreensivelmente desnecessária, num Estado em que a pobreza é tão pouco conhecida.

Essas são atitudes do dia-a-dia que os assistentes sociais que tiveram contado com Eva-Maree provavelmente compartilhavam. Não sabemos os detalhes da batalha por custódia na qual ela havia ficado presa durante vários anos com seu ex-companheiro. Não sabemos também o quão competente ela era como mãe. Ela contou que os assistentes sociais lhe disseram que ela não entendia que estava prejudicando a si mesma ao vender sexo. Não há orientações escritas decretando que prostitutas não podem ter a custódia de suas crianças, mas todos os pais passam por avaliações, e o estigma de puta não podia deixar de afetar os julgamentos. Para os assistentes sociais, a identidade de Eva-Maree estava estragada; ela foi desacreditada como mãe por critérios psico-sociais. Ela havia persistido em tentar ganhar direitos de mãe e entrou em choque com as autoridades, mas seu ex-parceiro ficou enraivecido com a possibilidade de que uma garota de programa conquistasse quaisquer direitos e fez tudo o que pôde para impedi-la de ver as crianças. O prolongado processo de custódia desmoronou no dia em que ela morreu, desde que os procedimentos-padrão não permitem que pais em meio a disputas se encontrem durante visitas supervisionadas às crianças.

Em um relatório de 2010 avaliando a lei que criminaliza a compra de sexo, o estigma é mencionado com referência ao retorno que eles receberam de algumas trabalhadoras do sexo:

As pessoas que são exploradas na prostituição relatam que a criminalização reforçou o estigma associado a vender sexo. Elas explicam que escolheram prostituir-se e sentem que não estão sendo expostas involuntariamente a nada. Embora vender sexo não seja ilegal, elas se sentem caçadas pela polícia. Elas se percebem como desempoderizadas, pelo fato de que suas ações são toleradas, mas sua vontade e sua escolha não são respeitadas.

O relatório conclui que esses efeitos negativos “devem ser vistos como positivos, da perspectiva de que o propósito da lei é mesmo combater a prostituição”. Para aqueles que ficaram assombrados com a morte de Eva-Maree, essas palavras soam cruéis, mas elas foram escritas para um documento que tentava avaliar os efeitos da lei. Os avaliadores haviam sido incapazes de produzir evidências confiáveis sobre qualquer tipo de efeito; um crescimento do estigma era pelo menos uma consequência.

O estigma conseguiu desencorajar algumas mulheres que podem ter querido vender sexo de fazê-lo, ou alguns homens de comprá-lo? Talvez, mas esse é um resultado que nenhuma avaliação seria capaz de demonstrar. O relatório, em suas 295 páginas no original em sueco, é, em vez disso, composto de fundamentação histórica, descrições repetitivas do projeto e detalhes administrativos. Declarações feitas mais tarde, de que o tráfico de pessoas diminuiu sob essa legislação, também são impossíveis de comprovar, porque não há estatísticas anteriores à lei para fazer comparações.

A lição não é a de que a lei da Suécia levou ao assassinato, ou de que qualquer outra lei o teria prevenido. O estigma da puta existe em todos os lugares, sob todas as leis sobre prostituição. Mas pode-se dizer que a legislação da Suécia deu ao estigma uma nova racionalidade para assistentes sociais e para juízes, e o selo de aprovação do governo para um preconceito antigo. A fúria do ex-parceiro por ela se tornar garota de programa pode derivar, em parte, da origem ugandense dele, mas a Suécia não o encorajou a ver Eva-Maree com mais respeito.

Alguns dizem que o assassinato dela é simplesmente mais um ato claro de violência machista e de pretensão a direitos por parte de um homem que queria vê-la desqualificada de ver suas crianças. De acordo com essa visão, a lei é considerada progressistas, porque combate a hegemonia masculina e promove a igualdade de gêneros. Isso é o que mais enfurece os defensores dos direitos das trabalhadoras sexuais: que o “modelo sueco” seja mantido como solução virtuosa para todos os velhos problemas da prostituição, na ausência de qualquer prova disso. Mas, para aqueles que abraçam a ideologia antiprostituição, a presença ou a ausência de prova é desimportante.

Quando a mídia é rei

A maneira como a mídia trata esses incidentes reproduz o estigma com variações, de acordo com as condições locais. A grande imprensa sueca não mencionou que Eva-Maree era garota de programa, porque fazer isso daria a aparência de culpá-la e de denegrir seu nome. No caso de uma série de assassinados em Ipswich, na Inglaterra, as intermináveis referências da mídia a prostitutas levou os pais das vítimas a pedir que eles usassem a expressão trabalhadoras sexuais. Um número de mulheres mortas em Long Island, Nova York, foi discutido como “quase intercambiável – almas perdidas que se foram, num certo sentido, muito antes de elas realmente desaparecerem” (Robert Kolker, no New York Times, em 29 de junho de 2013). Uma mulher assassinada recentemente perto de Melbourne, Austrália, foi chamada de “a prostituta de St. Kilda”, ao invés de “trabalhadora sexual” ou mesmo, simplesmente, de “mulher”, num lugar onde o conceito de trabalhadora sexual está, na verdade, em sua via acidentada de normalização. Estou falando aqui na grande mídia, cujos artigos são reproduzidos repetidamente na internet, fixando os clichês.

Editores que agregam fotos a matérias sobre a indústria do sexo usam arquétipos: mulheres se inclinando para janelas de carros, sentadas em banquetas de bares, de pé em meio ao tráfego – pernas, meias longas e saltos altos em destaque. Editores fazem isso não porque sejam preguiçosos demais para encontrar outras imagens, mas para mostrar, antes que você leia uma única palavra, sobre o que a matéria está realmente falando: mulheres cujo uniforme é o sinal externo de uma mácula interna. De modo similar, quando redatores e editores usam a linguagem clichê de “um mundo secreto”, do “submundo escuro”, das “infâncias roubadas”, das “ruas apimentadas” e do “fruto proibido”, eles não estão simplesmente sendo sensacionalistas, mas apontando para o estigma – Eis aqui sobre o que esta notícia fala: o mundo revoltante e perigoso, mas também eterno e emocionante, das putas.

Cortando o Nó Górdio

Não muito tempo atrás, fui convidada a falar na Feira de Livros Anarquistas de Dublin sobre o tema do trabalho com sexo enquanto trabalho. O anúncio no Facebook provocou perorações violentas: receber-me era antifeminista, contra o socialismo e uma traição ao anarquismo. Escrevi “Falando Sobre Trabalho Com Sexo Sem Ismos” para explicar por que eu não discutiria argumentos feministas na curta palestra de Dublin. Não estou pessoalmente interessada em utopias e, depois de 20 anos nesse campo, quero apenas discutir como melhorar as coisas na prática, aqui e agora. Nenhuma lei sobre prostituição pode dar conta da proliferação de negócios na indústria do sexo de hoje, dos muitos graus de volição e de satisfação entre as trabalhadoras. Relações sexuais não podem ser “consertadas” por meio de políticas de igualdade de gêneros. Se eu fosse Alexandre diante do nó, eu o cortaria assim: a partir deste momento, todas as conversas começarão da premissa de que nós não vamos todos concordar. Vamos olhar para uma variedade de soluções que se adequem à variedade de crenças, e não vamos competir sobre qual posição ideológica é a melhor. Mais importante, vamos assumir que o que todas as mulheres dizem é o que elas querem dizer.

Fonte:  http://www.mundoinvisivel.org/

A dra. Laura Agustín é autora de “Sexo nas Margens: Migração, Mercados de Trabalho e a Indústria do Resgate”. Seu blog está em http://www.lauraagustin.com/ (que tem partes em espanhol e em sueco).

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