quarta-feira, 19 de agosto de 2015

As faces do machismo nas universidades

Há muito tempo venho refletindo sobre as desigualdades de gênero no mundo acadêmico, nas escolas ou na política. Muitos acreditam que o sucesso feminino é a melhor arma contra um mundo predominantemente masculino. Como sou um pouco incrédula em relação ao conceito de sucesso (por não entender muito bem o que ele significa e quais os parâmetros que o definem), prefiro acreditar que a resistência se dá por palavras. Palavras públicas. Dedo na ferida. É preciso desnudar a ignorância machista e apontá-la no flagra. Nosso papel é tornar o invisível, visível.



Escreve Rosana Pinheiro-Machado, cientista social e antropóloga e professora do departamento de Desenvolvimento Internacional da Universidade de Oxford, em artigo publicado por CartaCapital,

Foucault já dizia que conhecimento é poder. O feminismo lembra que conhecimento é poder masculino. Como se reproduz, então, essa ciência dos homens? Certamente por mecanismos tão sutis e invisíveis que nem sempre são facilmente identificáveis.

Muitas mulheres quando entram em uma sala de aula pela primeira vez para ensinar seja Física ou Ciência Política enfrentam rotineiramente a ridicularizarão de meninos que simplesmente não conseguem sincronizar a expectativa – uma disciplina encarnada na figura de um homem – e a realidade. Aí começa uma longa jornada de deboches, afrontas e desdéns.

Mas isso não é observado por todos. Geralmente, só a professora que sente calada e enxerga com o canto do olho a arrogância do aluno (e da aluna também). As consequências desse ato tão pequeno, mas tão poderoso (que é engendrado por parte de meninos que, na verdade, pouco sabe sobre que está sendo ensinado) é o desenvolvimento de um processo de autodilaceração, insegurança e até pânico entre as mulheres. O ensino se torna um fardo e uma provação constante.

Foram tantas as vezes que eu entrei em sala de aula e, ao falar sobre teoria social, deparei-me com alunos que simplesmente não conseguiam me olhar nos olhos. Mas os problemas não acabam por aí. Salas de professores e corredores universitários são cenários perfeitos para a reprodução do poder masculino. Tente entrar na roda de discussão sobre política ou economia.

Não se surpreenda se seus colegas continuarem de costas para você, mais ou menos como acontece quando uma mulher tenta dar uma opinião sobre tática futebolística. Se a mulher levantar a voz para ser ouvida, será chamada de histérica. Mas se ela conseguir entrar na roda dos meninos, não é raro que sua opinião seja desprezada por gestos microscópicos, como a mudança ligeira de assunto. Uma verdadeira máquina de exclusão e de corroer autoestima.

Ao longo destes anos, ouvi muitas colegas dizerem que eu precisava me masculinizar se quisesse ser respeitada. Eu teria que aprender a “colocar o pau na mesa”. Ou apenas tornar-me “assexuada”. Mas confesso que a preguiça de colocar esse plano em prática é inversamente proporcional ao apreço que tenho pelo meu batom vermelho.

Eu também tenho preguiça profunda de tentar soar inteligente. Aos 18 anos eu fazia isso com muita facilidade. Usava palavras bonitas, referia-me a filósofos franceses, preferencialmente citando conceitos ou da moda ou palavras que ninguém entendia. Mas um pouco de reflexão crítica sobre isso nos demonstra que essa tem sido justamente a forma de reprodução de poder via conhecimento. E não é nisso que eu acredito.

Eu acredito na força da simplicidade das palavras e na democratização do conhecimento, que precisa ser uma viagem prazerosa coletiva e não uma masturbação intelectual. George Orwell dizia que palavras difíceis servem ao poder. Elas são armas políticas, desenhadas para dar uma aparência de solidez àquilo que é puro vento. Eu apenas acrescentaria que palavras difíceis servem muito bem ao poder masculino.

Nos últimos tempos, tenho participado de debates – predominantemente masculinos – sobre política brasileira. Muitos dos chamados intelectuais de esquerda têm uma capacidade imensa de provocar paixões. Quando mais ininteligível for o “Professor”, melhor. Afinal, é justamente esse o prazer que o poder desperta. É assim que as pessoas querem ser vistas: inatingíveis. É justamente esse cara que o garoto da sala de aula espera porque, no final das contas, é esse cara que ele quer ser. Não é incomum que muito desse discurso enfeitado seja usado para persuadir sexualmente alunas muito jovens.

O curioso é que quando a gente faz uma análise de discurso do que está sendo dito em muitos desses debates, damo-nos conta que existem ideias em círculos, pouco claras, mas muito enfeitadas. Na maioria das vezes em que eu tento discutir o avanço da direita no Brasil e os desafios da esquerda, é preciso aguentar uma tonelada de clichês acadêmicos para uma situação que exige objetividade e ponderação. No entanto, elitismo e machismo acadêmico fazem com a simplicidade – que deveria ser a maior virtude intelectual – seja considerada uma fraqueza feminista, justamente enquanto o país pega foto dento e fora das redes sociais.

Deixo as frases difíceis àqueles que precisam delas. Todo o dia, lembro que muitos dos meus alunos estavam esperando o professor velho britânico, mas vão encontrar a jovem latino-americana, um tanto desajeitada e sem vontade nenhuma de parecer séria. Assumo as consequências de minha escolha – e não são poucas. Era bem mais fácil fechar a cara, falar grosso e delirar na dialética discursiva.

Assim com milhares de companheiras, opto por desafiar o poder masculino cotidianamente jogando luzes no escuro. No discurso reto, começo minhas aulas de desenvolvimento internacional lembrando que não se pode lutar contra a injustiça global sem nos darmos conta das injustiças locais, aquelas mesmo que se reproduzem na sala de aula.


Eu paro a aula e pergunto por que fulano está rindo e peço para ele compartilhar a piada com o grupo todo. Ele fica vermelho e seu império de papel desmorona. E eu continuo aqui, em minhas aulas ou em minhas colunas, acreditando no poder revolucionário e democratizante do sorriso generoso e das palavras simples.

Fonte: Carta Capital

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