quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Jornalista faz experimento e sofre assédio por 2 horas andando em Teresina


Experiência de jornalista do O Olho filmada com câmera escondida, aponta para reflexão sobre o machismo e assédio sofrido por mulheres piauienses.


Por Sávia Barreto do O Olho

Eram 10h36 de uma manhã de sábado. Teresina, quente, tão quente, que não sei se suei apenas de calor ou de terror. Vestida de uma calça jeans e uma blusa preta, andei só e calada, olhando preocupada, muitas vezes, para os lados e sem o sorriso que pouco antes eu distribuía aos meus colegas de redação.
Duas horas e pelo menos 15 assédios depois sinto bolhas nos pés e dor na alma: o machismo de todo dia, assim, filmado e legendado, parece que expõe mais as vísceras de uma sociedade desigual em gêneros, onde a mulher está vulnerável a assobios, olhares e expressões sussurradas por desconhecidos como “gostosa”, “bundinha” e “delícia”.



O EXPERIMENTO
Tirando o microfone escondido na bolsa, usei o tipo de roupa que eu e milhares de teresinenses (incluindo as mães, filhas e irmãs dos meus assediadores) usamos todos os dias para ir à rua. Meu produtor caminhava à frente, sempre a alguns passos de distância, permitindo me filmar com uma câmera escondida acoplada em sua mochila.
Preparação para experimento que relata assédio contra mulheres nas ruas de Teresina / Foto: O Olho

Mesmo acompanhada de um produtor e do motorista que compõem a equipe do O Olho, tive a sensação de leve desamparo por estar “sozinha”, sujeita aos assédios dos quais eu fugia sempre que precisava estar em algum local público, passando por homens.

Meu temor não era motivado por me considerar gostosa, linda e estonteante (porque não sou e porque mesmo uma mulher que é, não merece receber nenhum tipo de agressão verbal e sexual), mas porque basta ser mulher, estar andando sozinha nas ruas, que quase prontamente alguns homens sentem-se no direito de avaliar a forma física e até de fazer convites sexuais.
Lá está você pagando o plano de saúde da sua mãe no Centro da cidade, quando alguém que você nunca viu, e que sequer cruzou os olhos, alheio aos seus problemas e vontades, grita: “Vamos lá em casa delícia?”. Não é um convite, é uma invasão.

A “CARCAÇA” QUE VESTIMOS PARA IR À RUA

Antes de sair à rua, é preciso vestir, além da roupa, um outro acessório, quase invisível, mas essencial se você for mulher: uma expressão fechada, de quem não quer conversa. Nós, mulheres, costumamos mantê-la enquanto temos que perambular por espaços públicos, principalmente se estivermos sozinhas e houverem homens desconhecidos por perto.



É tolhendo pequenas liberdades diárias femininas, inclusive a de sorrir e se vestir como bem entender, que o machismo vai trancando as mulheres em calabouços pisicológicos.
“Não olhe para os lados, evite passar perto de homens, se falarem algo sobre seu corpo, não responda”.  Esse não é um ensinamento passado verbalmente de mãe para filha, ou entre amigas. É um comportamento quase intrínseco à quem pertence ao sexo feminino no mundo ocidental. Tanto faz se você está numa pequena e quente capital no Nordeste brasileiro, ou na fria Nova York norte-americana.

Um experimento idealizado pela ONG Hollaback, permitiu analisar o quanto as mulheres sofrem com o assédio masculino nas ruas de Nova York / Imagem: Reprodução Youtube

Inspirada em um experimento realizado em Nova York por uma atriz de uma ONG que registrou mais de 100 comentários de assédio masculinos em um vídeo filmado durante uma caminhada de dez horas pelas ruas de Manhattan (clique aqui para ver o vídeo) , resolvi fazer o mesmo teste em Teresina, andando por ruas do Centro e da zona Sul por cerca de duas horas durante um sábado pela manhã.

AGRESSÃO VERBAL: “B******** GOSTOSA”
É quase meio-dia. Passo por vários homens na porta de um bar e sinto um grande alívio por ter sido apenas olhada, como se passasse por um raio-X de aeroporto, mas sem nenhum comentário verbal.
Mais a frente, ainda degustando uma tranquilidade que eu mal sabia que seria fulgaz, passo por um homem branco de uns 50 anos. Ele fala baixo, mas eu ouço: “b******** gostosa”.  Gelo imediatamente, fico com as mãos tensas e tenho vontade de chorar.

Reprodução Youtube/O Olho


Parece que volto no tempo e lembro de ter 20 anos, descer do ônibus no bairro Saci, zona Sul de Teresina, enquanto caminho várias quadras até minha casa. Também era meio-dia e eu vinha da Universidade Federal do Piauí, onde cursava Ciências Sociais. Aquele caminho era comum para mim, e quase todo dia eu o fazia intercalando ônibus e longas caminhadas até minha casa.
Naquele dia, há sete anos, um homem pára, pergunta as horas, eu olho para o relógio e antes de responder ele coloca a mão debaixo da minha saia, fala “b*********” e sai correndo. Fico atônita. Ainda tenho forças para gritar enquanto ele corre para a outra rua: “Infeliz, maldito”, falo bem alto com a revolta, humilhação e ódio engasgados.
Chego em casa me culpando por ter respondido a um estranho na rua. Eu era jovem demais para saber que a culpa não era minha. Só muitos anos depois consigo contar essa história para meu noivo, amigos e amigas.

Alívio quando estou sozinha na rua, sem possibilidades de assédios / Foto: Nataniel Lima/O Olho


As mulheres, quando ouvem, solidarizam-se imediatamente e passam a relatar também suas histórias. S.R., uma amiga jornalista, por exemplo, conta que chegou a ameaçar com pedras um homem que a assediou nas ruas a chamando de “gostosa”. Os homens, por outro lado, ouvem a mesma história e acabam rindo. Acham que é apenas uma anedota. Não é. Violência sexual não tem graça.

COMO SE SENTIR UM “NADA”

Logo eu, que me considero uma jovem mulher de 27 anos, empoderada, firme, forte (quase sempre), me senti um “nada”. Ocupo um cargo de chefia em um universo onde 80% dos colegas de profissão em posição de comando são homens. Não choro fácil e não abaixo a cabeça porque alguém não gostou de algo que fiz ou disse. Na rua, porém, eu baixei.
Quando passava por grupos de homens, tentava instintivamente atravessar a rua e ficar o mais longe possível deles, mesmo sabendo que minha missão nessa reportagem era seguir em frente e registrar caso fosse importunada.


Homens bem arrumados, homens desarrumados, mais novos, mais velhos, brancos, negros, mulatos. Não há um perfil para o assediador. Em comum, a sensação de impotência. No assédio, ficou claro para mim, há uma relação de poder em que se tenta colocar as mulheres em uma posição submissa.
Na rua, dificlmente encaro alguém, olho nos olhos, nada que possa ser interpretado erroneamente como um “convite”. Percebo nas mulheres próximas a mim, uma espécie de solidariedade quando tenho que passar por grupos de homens. Uma troca de olhares assustados antecedem meus passos, como se me perguntassem: “Menina, tem certeza que vai por aí?”.
Sim, eu poderia responder, retrucar, e algumas vezes já fiz isso na rua (quando estava perto de outras pessoas a quem poderia recorrer para manter minha segurança). O medo de ser seguida e (mais) agredida é ainda maior, e na maior parte das vezes as mulheres se calam já que muitos homens, ao ouvir um “não”, se revoltam, xingam e partem para a violência.



Quando a experiência chega ao fim, me sinto exausta. Não pelos calos no pé ou pela roupa quase ensopada de suor. O que cansa é todo o desgaste emocional de sentir medo e vulnerabilidade por ser mulher.
Um exemplo disso foi retratado em 2012, quando uma jovem belga de 25 anos decidiu gravar o que ouvia dos homens enquanto caminhava pelas ruas de Bruxelas – e principalmente de sua vizinhança, em um bairro pobre da cidade. O resultado foi o documentário Femme de la Rue (Mulher da Rua, em tradução livre). Um dos homens chega pelas suas costas, dizendo que ela é “linda”. Outro, simplesmente a cruza na calçada, vira o rosto em sua direção e a chama de “vadia”.

COMENTÁRIOS ABUSIVOS NÃO SÃO CANTADAS
Comentários sexuais abusivos e ameaçadores não são cantadas. Paquerar alguém pressupõe permissão, reciprocidade. A chave está em uma palavra: consentimento. Assédios sexuais em locais públicos são um problema social. Não tem a ver com “fulano de tal” que é grosseiro, ou aquele outro indivíduo que é machista. Não são casos isolados.



Cada “fiu-fiu” e “meu bem” direcionados à mulheres na rua que não são conhecidas de quem profere o “elogio” é, na verdade, apenas mais um sintoma de uma cultura que incentiva e considera a misoginia (a repulsa, desprezo ou ódio contra às mulheres) algo inofensivo.
E mesmo essa sendo minha opinião pessoal, em um texto assinado por mim contando uma experiência pessoal com todos os viés decorrentes dela, não estou só nessa ideia. Pesquisa divulgada em 2013 aponta que 83% das mulheres brasileiras não gostam das cantadas de rua. A pesquisa feita pelo site Olga, aponta que quase oito mil mulheres responderam o questionário elaborado pela jornalista Karin Hueck, e 99,6% relataram já terem sofrido assédio na rua.
“A gente acha que o machista e o assediador é esse homem sem rosto, esse homem desconhecido que abusa das mulheres nas ruas escuras. Não é. Esses assediadores são pais, são filhos, são profissionais competentes que estão mais perto do que a gente imagina. […] Por quê? Porque o assédio é legítimo culturalmente. Ele é entendido como algo que faz parte do homem. Ele é entendido como algo bom, como flerte. Mas não é”, relata a jornalista Juliana de Faria em sua palestra no TED São Paulo.



Ela é criadora de uma página no Facebook chamada “Chega de Fiu Fiu”, que expõe, entre outras situações, atos que as mulheres deixam de fazer por conta do assédio. Um exemplo disso é que sair de casa vestindo o que quiser, independente do destino e do meio de transporte escolhido, ou então olhar quando alguém lhe chama na rua.
“Ah mas eu sou homem e adoro quando uma mulher me ‘elogia’ na rua”, pode argumentar um. A diferença é que crimes sexuais contra mulheres são estratosfericamente maiores do que em relação aos homens. Numericamente, temos motivos para temer.

Campanha da página “Chega de Fiu Fiu” no Facebook alerta contra assédios que mulheres sofrem nas ruas / Imagem: Reprodução Facebook
É possível, sendo homem, ouvir um “elogio” sem medo de ser perseguido, seguido ou até mesmo violado contra a própria vontade – como ocorre com muitas mulheres.
Em outubro de 2013, a estudante Anne Melo, chegou a ser presa por agentes da Tropa de Choque após ser chamada por um dos policiais de “gostosa”, durante o protesto realizado no centro do Rio de Janeiro.
Um vídeo divulgado nas redes sociais mostra o momento em que a jovem foi detida sob acusação de desacato. Segundo a estudante relatou, depois de receber o suposto “elogio” de um PM que estava na garupa de uma moto do Choque, ela respondeu ao policial de forma “agressiva”. Terminou presa por não ter aceitado a “gracinha” proferida por uma figura de autoridade.

“ASSEDIE A SUA MÃE”
Uma campanha (vídeo abaixo) realizada pela empresa Everlast do Peru, selecionou homens que, constantemente, assediavam mulheres na rua e localizou suas mães. Decidindo por participar da campanha, elas foram produzidas com acessórios como perucas e vestimentos tornando-as mais jovens e quase irreconhecíveis.
Resultado: foram alvos de cantadas dos próprios filhos. Ao descobrirem a real identidade de quem eles estavam cantando, os assediadores pediram desculpas e alegaram arrependimento e constrangimento. A pergunta que não quer calar: homens que assediam mulheres gostariam que suas mães ou filhas fossem assediadas da mesma forma?


CARETA E SÁTIRA

Em março deste ano virou notícia uma jovem de Belo Horizonte que, cansada dos assédios nas ruas, adotou uma “tática” para afastar as cantadas indesejadas. A estudante de administração pública na FJP (Fundação João Pinheiro), Débora Adorno, 22, faz uma careta que consiste em dobrar o lábio superior para dentro da boca, de forma que a arcada dentária fique exposta constantemente.
“Os homens ficam com asco. É uma situação ruim para eles. Tem homens que veem a cantada de rua como um elogio. Pensa que a mulher gosta e que está na rua para isso mesmo”, contou ela ao site Uol.
O vídeo abaixo também mostra, de forma satírica e com inversão de papéis (um homem “machista” assediando outros homens), pelo que passam as mulheres diariamente:


ESTAR EM ESPAÇO PÚBLICO NÃO TORNA SEU CORPO PÚBLICO

Estar em um espaço público não torna seu corpo público. Estar de blusa decotada ou short curto não é uma autorização velada para que seu corpo seja analisado e a opinião não solicitada seja despejada na sua cara sem seu consentimento – e isso vale para homens e mulheres.
Agressões disfarçadas de elogios não são bem-vindas. Demonstrar interesse por alguém em qualquer situação, sem ponderar sobre o ambiente ou a reciprocidade, não é lisonjeiro, é repulsivo. O simples ato de andar na rua carrega medos e limitações para as mulheres. A dinâmica do machismo – dominação do homem sob a mulher – se estabelece em ações comuns do cotidiano.
Acuar as mulheres com “gracejos” que tentam submetê-las à libido masculina é uma delas; julgar e culpar a mulher pela roupa que usa (“também, com uma blusinha dessas, pediu pra ser assediada!”), culpabilizando a vítima, são atitudes que refletem uma sociedade que cultiva não apenas a cultura do assédio, mas também do estupro – já que ambas são pautadas na objetificação das mulheres.
Campanhas de conscientização sobre o assédio verbal nas ruas e punições mais rígidas, também contribuem para tirar o tema do campo pessoal, colocando-o no seu devido lugar: o espaço público, já que este é um problema social mais amplo. Na Argentina, por exemplo, três projetos de lei, um apresentado no Congresso argentino e dois na Legislatura de Buenos Aires, buscam punir – e, principalmente, prevenir – a prática difundida e naturalizada de violência de gênero com a qual sofrem cotidianamente milhares de mulheres em espaços públicos.
As sanções vão de multas a dez dias de prestação de serviços comunitários ou até mesmo prisão para os que praticarem o delito. Acima de tudo, a solução é tentar mudar a cultura em que vivemos. Expor os problemas e a partir daí debater a respeito das causas estruturais. As mulheres não podem e nem devem ficar amedrontadas e exiladas dos espaços públicos.



Produção e edição do vídeo: Nataniel Lima. Apoio: Ricardo Moraes.

Fonte: Geledes

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