sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Família que adotou criança vítima de maus tratos perde guarda para pais biológicos na Grande BH

Os empresários Valbio Messias da Silva e sua esposa, Liamar Dias de Almeida, com a filha adotiva
A criança, que foi retirada de casa aos dois meses, quando a Vara da Infância e da Juventude comprovou os maus tratos sofridos pelos pais, será devolvida aos pais biológicos. Ela viveu em um abrigo porque a família não tinha condições de cuidá-la.


Depois de duas mudanças de lar, a pequena M. E., de 4 anos e cinco meses, deverá passar por uma nova adaptação. Ela irá se despedir dos pais adotivos e da irmã, de 12, e retornar para a casa de sua família biológica, com quem conviveu por apenas dois meses. A decisão de deixar para trás o lar onde ela mora há dois anos e meio vem da Justiça. Em sentença unânime, três desembargadores da 7ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) decidiram devolver a criança aos pais biológicos por julgar que eles conseguiram reverter o quadro de maus-tratos constatado em 2009.

Foi nessa época que os pais biológicos de M. E. perderam não somente a guarda da menina, mas também de outros seis filhos mais velhos. Estes já retornaram para casa. Amanhã, as duas famílias se encontram na Vara da Infância da Juventude de Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), onde moram, para definir como será a reaproximação de M. E com o “antigo e novo lar”.

O caso polêmico, que se arrasta há quatro anos, divide opiniões até mesmo entre magistrados. Em primeira instância, a ação de destituição do poder familiar dos pais biológicos, proposta pelo Promotoria da Infância e Juventude de Contagem, foi acatada pela Justiça em outubro do ano passado. “Fiz o parecer levando em consideração que a menina não teve contato algum com os pais biológicos e com base em laudos de assistentes sociais e psicólogos que indicam a permanência com o guardião como mais adequada”, explica o promotor da Infância e Juventude de Contagem, Manoel Luiz Ferreira de Andrade.

No recurso impetrado pelos pais biológicos, a dona de casa Maria da Penha Nunes e o mestre de obras Robson Ribeiro Assunção, réus no processo, o TJMG reformou a decisão anterior.

Acolhimento

O acordão foi publicado em abril e no documento o relator do processo, desembargador Belizário de Lacerda, argumenta que "o direito à convivência familiar garante ao menor ser mantido na família de origem, cabendo ao poder público promover ações para a sua proteção e prioritariamente manter ou integrá-lo na família natural”. A colocação em família substituta, segundo o texto, deve ser exceção e ocorrer somente diante da impossibilidade de criação pela família biológica.

O desembargador levou em consideração ainda um parecer técnico que comprova estar a família de origem apta a receber novamente os filhos e a posição da Procuradoria Geral de Justiça, que alegou não haver justificativa para apenas um filho ser afastado do acolhimento familiar. O órgão garantiu ainda que o vínculo afetivo com a família substituta não era determinante a ponto de causar traumas na menor com a ruptura daquela relação adotiva.

A reversão no processo garantiu que a família biológica de M. E. pudesse reaver a guarda da menina. Até então, ela estava com os pais adotivos provisoriamente, enquanto corria o processo de adoção. Antes disso, havia passado por um abrigo para crianças na cidade.

'Meus filhos são muito bem tratados. Ela não se acostumou com a outra família? Por que não pode se acostumar com a gente também?' 

- Maria da Penha Nunes, dona de casa, com o marido Robson 

Pais convivem com dor e esperança

De lados opostos, as famílias divergem quanto ao tema. Enquanto o alívio de ter a filha de volta enche de alegria os corações de Maria da Penha e Robson, os empresários Valbio Messias da Silva, de 49, e Liamar Dias de Almeida, de 47, sofrem em pensar que verão a filha partir. “Só nós sabemos o quanto estamos sofrendo com isso. Minha filha está em minha casa e tem pai, mãe, irmã, avós, tios, primos, cachorro e tudo aquilo que uma criança merece ter. Aqui ela nunca foi maltratada e muito menos abandonada”, diz Valbio.

Ao lembrar da época em que a criança chegou à sua família, Valbio conta que M. E. foi incluída de imediato no plano de saúde e na mesma escola particular da outra filha. “Constituímos advogado e iniciamos o processo de adoção”, diz o pai adotivo, que ingressou com um processo de destituição do poder familiar, dessta vez por formação de laços afetivos e não mais por maus-tratos, como o primeiro do MP. O documento foi indeferido em primeira instância, mas a família deve ingressar com recurso.

Eles não concordam com a mudança de lar porque, além dos fortes laços que criaram com a menina, acreditam que a inserção dela em uma nova família vai gerar traumas psicológicos e emocionais na menina. “Temos laudos de profissionais da Vara da Infância e da Juventude de Contagem que recomendam não retirar a criança de nossa casa, que a saída irá trazer danos a ela”, afirma o pai adotivo.

Reação

A mãe biológica da criança, no entanto, diz que hoje a sua família está preparada para recebê-la M.E. Diferentemente da época em que a menina foi retirada de casa, por denúncia de maus-tratos e abandono, os pais têm perfeitas condições de criar a filha. “Apesar do pouco contato que tivemos com a menina, sentimos muita falta dela nesse período e estamos muito felizes de tê-la de volta”, diz a mãe.

Maria da Penha conta que quando os filhos foram levados para o abrigo, ela estava com depressão, ficava nervosa e chorava muito. “Comecei o tratamento e tudo mudou. Hoje, a realidade é outra. Meus filhos são muito bem tratados. Ela não se acostumou com a outra família? Por que não pode se acostumar com a gente também?”, diz. No recurso impetrado em segunda instância este foi um dos fundamentos para requerer a guarda da criança, bem como o fato de o pai ter deixado de beber, hábito comum à época.

A advogada do casal, Cinthya Marta de Andrade Rodrigues, defende que a mudança de comportamento foi muito expressiva. “Eles permaneceram abertos ao apoio psicológico tamanha era a vontade de ter os filhos de volta. Hoje, todos estão inseridos em programas sociais e atividades esportivas, além de terem todo o acompanhamento na escola”, afirma.

Lei confusa pode ser mudada

No seu artigo 19, a nova Lei de Adoções – nº 12.010/2009 descreve que a manutenção ou reintegração da criança ou adolescente em sua família terá preferência em relação a qualquer outra providência. Isso quer dizer, segundo especialistas, que levar a criança, mesmo após passar por processo de adoção, para os pais biológicos, avós ou tios é a prioridade no Brasil.

Mas, na prática, o artigo gera críticas que já fazem o Ministério da Justiça começar a elaborar um novo texto. O Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) entende que o que a lei rege hoje é um equívoco.

Segundo o advogado e presidente da instituição, Rodrigo da Cunha Pereira, o que é bom para a criança é que deve ser considerado. No semestre passado, segundo ele, o ministério convidou o IBDFam para discutir uma proposta de alteração na lei. Quando o texto ficar pronto, ele deverá passar pela análise da Câmara dos Deputados e do Senado. “A lei contém um equívoco primário, que é privilegiar a família biológica.

O conceito de família para o direito e principalmente a partir da psicanálise evoluiu muito. Já se mostrou que os laços de sangue não são suficientes para garantir afeto, então o que interessa é que maternidade e paternidade são funções muito além da biologia”, analisou Rodrigo da Cunha.

Vínculos

O presidente do instituto explica que alguns juízes já entendem que o melhor para a criança é ficar com os pais adotivos, considerando até mesmo um abandono anterior ao início do processo. Por outro lado, outros podem seguir a lei à risca e mandar restabelecer os vínculos. O termo usado atualmente é parentalidade socioafetiva, segundo Rodrigo da Cunha, que diz respeito a um novo conceito jurídico de família. “Diante disso, são cada vez mais raros casos de crianças que voltam para a família biológica porque o direito está evoluindo nessa concepção de paternidade socioafetiva.”

Rodrigo considera uma violência contra a criança tirá-la da família adotiva neste momento, após três anos de convivência. “Não existe um tempo ideal para a guarda provisória, deveria ser um processo rápido, mas não acontece. O problema é que o tempo da criança é diferente. É uma violência tirá-la de lá, do lugar onde está ambientada há três anos”, afirmou.

Segundo a assessoria do juiz Marcos Padula, da Vara de Infância e Juventude, as crianças só são devolvidas quando a guarda ainda é provisória, mas em casos de sentenças de adoção com trânsito em julgado a situação é definitiva.

Palavra de especialista: Wellerson Eduardo da Silva Corrêa, defensor público, coordenador do Núcleo da Infância e da Juventude

Prioridade é o filho

No caso de perda da guarda dos filhos por maus-tratos ou abandono, o mais comum é que os guardiões ganhem os processos de adoção e, consequentemente, a proteção definitiva das crianças. Diante da impossibilidade de comprovar a manutenção da família, os pais biológicos são submetidos a um processo de destituição do poder familiar e perdem o direito de ficar com filhos.

No entanto, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) trata como prioridade a manutenção e a reintegração da criança e do adolescente à família de origem ou na família extensa, como avós, tios, ou parentes por afetividade. Se houve o processo de reintegração é porque a Justiça entendeu que a família tem condições de criar bem a menina e que essa era a melhor medida a ser tomada.
Fonte: Estado de Minas

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