segunda-feira, 13 de maio de 2013

Tráfico de pessoas: violação de direitos e ameaça à vida e dignidade humana


O trafico de pessoas vem, nas últimas décadas, e particularmente nos últimos anos, tornando-se um problema de dimensões cada vez maiores, a ponto de ser denominado como a ‘a escravidão contemporânea’. Constitui-se um crime de proporções alarmantes e com um grau de desumanidade inimaginável...

... Uma afronta à dignidade humana que envenena e envergonha a humanidade”, destaca a Irmã Eurídes Alves de Oliveira, em entrevista por e-mail à revista IHU On-Line.

Irmã Eurídes é religiosa da Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria, mestra em Ciências da religião, pela Universidade Metodista de São Paulo – Umesp, coordenadora da rede Um Grito Pela Vida e integrante da coordenação do GT de Enfrentamento ao Tráfico Humano da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB.



IHU On-Line – Quais os principais passos para a realização do sonho da erradicação do tráfico de seres humanos?
Eurídes Alves de Oliveira – O tráfico de pessoas configura em nossos dias uma grande chaga social, que desumaniza e crucifica milhões de pessoas em todo o planeta. Constitui uma das formas mais explícitas da escravidão do século XXI. Reflete profundas contradições históricas das relações humanas e sociais da humanidade. Vulnera e viola a dignidade e a liberdade de numerosas pessoas, particularmente mulheres e crianças, mercantilizando e ferindo seus corpos, matando seus sonhos e direito de viver. Configura hoje uma das piores afrontas à dignidade humana e um das mais cruéis violações dos direitos humanos. Um afronta à imagem do Criador. Sua erradicação é sonho e missão de todos nós, que acreditamos na possibilidade de um “outro mundo possível”, em uma sociedade pautada no direito, na justiça social e na superação de toda forma de violência, exclusão e tráfico. Na manifestação do Reino de Deus como um espaço de vida para todos/as.
A realização deste sonho, deste projeto, supõe a superação da indiferença e da alienação da população em geral em relação a esta realidade-clamor. Um firme compromisso de todos: igrejas, sociedade civil e Estado. Urge uma ação determinada e firme de todos. Das autoridades competentes, para coibir, punir os que traficam. Do estado e da sociedade no sentido de denunciar, informar, e educar, assistir e proteger as vítimas, e acima de tudo de lutar pela superação das causas geradoras e sustentadoras desta iníqua realidade.

Sociedade sem tráfico

Só será possível a concretização do sonho de uma sociedade sem tráfico de pessoas, se houver uma ampla comoção e mobilização social e política, articulada em redes de proteção e defesa de direitos das populações empobrecidas, vítimas em potencial deste hediondo crime. Através da gestação de um novo modelo de desenvolvimento, que centre sua atenção nas pessoas e nas suas necessidades básicas. Trata-se de uma tarefa que se impõe a todos nós como imperativo humano e divino.
Concretamente, o empenho em construir uma sociedade sem tráfico de pessoas consiste num processo permanente de intervenção em todos os níveis e dimensões. Através de ações locais de sensibilização e informação, pelas lutas por políticas públicas que garantam os direitos fundamentais das vítimas, principalmente a adolescência, juventudes e mulheres, pelo efetivo cumprimento e adequações na legislação e dos mecanismos de proteção e controle dos Estados-nação.

IHU On-Line – Como compreender que o tráfico de pessoas está em terceiro lugar na economia mercadológica do crime organizado, perdendo apenas para o tráfico de armas e drogas?
Eurídes Alves de Oliveira – O tráfico de pessoas não é uma questão que se esgota em si mesma; não é um problema isolado ou apenas de índole moral. Está estreitamente conectado com mecanismos globais derivados de uma estrutura política e econômica alicerçada na injustiça, na violência e na exacerbada sede de lucro por partes das elites dominantes. O tráfico de pessoas e as muitas outras faces da pobreza e da exclusão, que atinge milhões de pessoas em todo mundo, é resultado de um sistema estruturado e sustentado pela lógica do mercado, cujo fim é o acúmulo da riqueza nas mãos de uns poucos via mercantilização de tudo, até da pessoa humana. É o espelho da irracionalidade do capitalismo global, que para manter sua soberania imperialista utiliza-se desses meios espúrios como o trafico drogas, pessoas e armas como canais de enriquecimento e poder.


Elite triunfante

Como bem expressa Élio Estanislau Gasda , “há uma elite triunfante e exibicionista, que trafega em seus jatinhos, banqueiros, empresários, senhores da mídia que deram as costas aos milhares de seres humanos empurrados para os vales da morte do capitalismo. Aí se escondem os crimes mais cruéis contra a vida humana, como a escravidão e o tráfico de seres humanos. O capitalismo sustenta esta máquina de pilhagem de miseráveis com a cumplicidade da sociedade e do sistema financeiro. Ao aceitar o dinheiro do tráfico, os bancos se omitem ante o terror imposto a pessoas indefesas. É dinheiro sujo procedente de bordéis, masmorras, carvoarias, barracões. São dólares de sangue extraído destes reféns dos criminosos vorazes cujo poder está longe de esgotar-se”.
Os agentes, “empresários do crime” do tráfico de pessoas que vão desde os aliciadores até os agenciadores mais ocultos do sistema, fazem parte de uma rede bastante complexa e bem articulada que envolve inúmeras pessoas e instituições que deveriam estar a serviço da vida e dos direitos das pessoas, mas que se articulam e agem contrariamente, configurando um cenário de morte de “nova e velha escravidão”.

IHU On-Line – O que faz do tráfico de pessoas um dos mais urgentes apelos históricos para a sociedade em nossos dias?
Eurídes Alves de Oliveira – O tráfico de pessoas é uma das formas mais antigas de violação de direitos e de ameaça à vida e à dignidade humana. Nas últimas décadas correram profundas mudanças estruturais na economia e na geopolítica mundial, configurando o cenário de um mundo globalizado e portador de inúmeras possibilidades. O capital e a informação se locomovem com facilidade, rapidez e agilidade. Assiste-se a um grande avanço no campo das redes de comunicação e um amplo movimento de mobilidade humana, ampliados os fluxos migratórios, dentro dos quais o tráfico de pessoas é uma das faces obscuras.
O tráfico de pessoas vem, nas últimas décadas, e particularmente nos últimos anos, tornando-se um problema de dimensões cada vez maiores, a ponto de ser denominado como a “a escravidão contemporânea”. Constitui-se um crime de proporções alarmantes e com um grau de desumanidade inimaginável. Trata-se de um afronta à dignidade humana que envenena e envergonha a humanidade. O Brasil, país de origem, trânsito e destino desta prática criminosa, é responsável por 15% das pessoas exportadas da América Latina para a Europa.


Apelo histórico

O tráfico de pessoas constitui-se no urgente apelo histórico pela sua gravidade e amplitude. Trata-se de um delito de grande incidência mundial na contemporaneidade. Apesar da sua amplitude, é uma realidade ainda bastante oculta nos cenários e agendas das instituições. O tráfico de pessoas funciona como uma epidemia silenciosa que vai ceifando vidas e sendo tolerada pela sociedade como um problema distante e de pouca relevância. Urge aguçar nossa capacidade de pessoas históricas e construtoras da história. Romper com o silêncio que faz novas vítimas. A crueldade do escândalo do tráfico de pessoas exige uma opção pastoral decidida e inegociável. Sua presença dolorosa e perturbadora é sacramento da presença de Deus clamando por libertação.

IHU On-Line – Quais são os fatores que favorecem a entrada de pessoas como vítimas deste crime? A pobreza, o desemprego e a ausência de educação podem ser citados nesse sentido?
Eurídes Alves de Oliveira – Inserido na complexa estrutura do modelo de desenvolvimento capitalista, o tráfico de pessoas tem na globalização excludente a causa e cenário para o seu surgimento, crescimento e sustentação. Como um fenômeno multifacetário, são muitos os fatores básicos que contribuem para a entrada das pessoas nesta rede criminosa, fatores de ordem socioeconômica e política, cultural e ideológica: a pobreza, a ausência de oportunidades de trabalho, a discriminação de gênero, a violência doméstica, a desinformação, a cultura hedonista veiculada pela mídia, a instabilidade política, econômica em regiões de conflito, a migração forçada, o turismo sexual, a corrupção das autoridades, leis deficientes, a impunidade, são os mais citados pelos estudiosos do assunto como fatores que favorecem a inserção das pessoas neste mercado do crime.

IHU On-Line – Qual o perfil das mulheres que são particularmente vulneráveis ao tráfico de seres humanos?
Eurídes Alves de Oliveira – O tráfico de mulheres e adolescentes para fins de exploração sexual é resultado das contradições sociais acirradas pela globalização e pela fragilidade dos Estados-nações, aprofundando as desigualdades de gênero, raça e etnia. O perfil das mulheres traficadas em geral são: pessoas situação de vulnerabilidades social, desempregadas, mães solteiras, com pouco estudo, que já sofreram violência. Quanto à etnia, há uma predominância para as afrodescendentes ou indígenas. São oriundas na sua maioria das regiões mais periféricas e sem condições dignas de sobrevivência. Mulheres que carregam o sonho e a disposição de conseguir um futuro melhor e para si e sua família.
IHU On-Line – Qual a importância de promover uma edição da Campanha da Fraternidade tendo como tema o tráfico de pessoas?
Eurídes Alves de Oliveira – O enfrentamento ao tráfico de pessoas está contemplado de forma oficial pela Igreja no Brasil, CNBB, nas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2011-2015, (n. 107 e 111): “O serviço à vida começa pelo respeito à dignidade da pessoa humana... Atenção especial merecem também os migrantes forçados pela busca de trabalho e moradia... as vítimas do tráfico de pessoas”. O que evidencia que a Igreja tem consciência de que o tráfico não é somente um problema sociológico, é também eclesiológico que exige uma decidida opção pastoral. Nessa perspectiva, a Campanha da Fraternidade é um espaço-meio para uma prática evangelizadora já consagrada da Igreja, a fim de consolidar suas opções por em pauta e contribuir com a sociedade na reflexão e enfrentamento das realidades mais gritantes que afligem a humanidade. É uma iniciativa mobilizadora de convocação dos cristãos e de todas as pessoas de boa vontade para uma problemática social que suscita compromisso.

A Campanha da Fraternidade sobre o tema do tráfico humano é sem dúvida de suma importância, dará maior visibilidade ao tema-realidade e contribuirá para fortalecer as iniciativas de enfrentamento já existentes, contribuindo para a formação da consciência da sociedade no sentido de romper a indiferença, compreender e atuar no seu enfrentamento.

IHU On-Line – Como tem sido o trabalho da rede Um Grito pela Vida?
Eurídes Alves de Oliveira – A rede Um Grito pela Vida é intercongregacional. É constituída por aproximadamente 150 religiosas/os de diversas regionais e congregações. Trata-se de um espaço de articulação e ação profético-solidária da vida religiosa consagrada do Brasil. Desde 2006, como parte constitutiva da CRB Nacional, atua de forma descentralizada e articulada com as organizações e iniciativas afins, nas diversas localidades, estados e municípios. Integra a Talitha kum – rede internacional de vida religiosa consagrada.
Os religiosos (e religiosas) que integram a rede Um Grito pela Vida atuam nas diversas regiões do país, articuladas em núcleos; eles (e elas) estão integrados com as organizações eclesiais e civis, fomentando, promovendo e/ou participando de atividades e processos de prevenção e assistência às vítimas, assim como na intervenção política, buscando instruir e instrumentalizar a sociedade, coibindo o crescimento da inserção de vítimas neste mercado do crime. Hoje esta rede conta com 17 núcleos articulados que se encontram periodicamente.

A rede Um Grito pela Vida nos permite ampliar alianças intercongregacionais em prol da vida ameaçada e ferida, das pessoas traficadas e violentadas em seus direitos e nos possibilita ensaiar passos de encarnação em novos espaços sociais, políticos e teológicos. Com o lema “Enfrentar o tráfico de pessoas é nosso compromisso”, a rede desenvolve um conjunto de atividades, tais como:
– Sensibilização e informação, priorizando os grupos em situação de vulnerabilidade, lideranças comunitárias, agentes de pastoral e outros.
– Organização de grupos de reflexão e estudo, aprofundando as causas e situações que o favorecem tais como: questões de gênero, violência, modelo de desenvolvimento, grande construções e projetos, grandes eventos, hedonismo midiático, aumento da precariedade do trabalho, corrupção, impunidade, entre outras.
– Capacitação de multiplicadores/as, visando ampliar a ação de enfrentamento ao tráfico de pessoas, principalmente para fins de exploração sexual.
– E participação e mobilização social e política de incidência na definição e efetivação de politicas públicas de enfrentamento ao tráfico de pessoas.

Fonte: Ihu

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