domingo, 12 de maio de 2013

Sexualidade, protestantismo e política



A tolerância pode ser uma negação cínica. A intolerância seria muito bem vinda se o que se tolera (o mesmo que se nega) fosse algo vencível. Mas, enquanto Feliciano não recusa sair de seu posto e Silas Malafaia investe em suas hordas de higienização da sexualidade brasileira, a tolerância cínica parece o único caminho que a crítica a esses pastores pode seguir. Essa tolerância, se é negação limitada, guarda o anseio a uma negação radical, ou seja, anseia em algum dado momento efetivar-se sem limites e tornar-se intolerância declarada.


Ana Monique Moura*

Martinho Lutero (1483-1546), o fundador do Protestantismo, se colocou contra a Igreja Católica por não aceitar nela, dentre outras posturas, a intromissão da Igreja no comportamento e na ação de seus seguidores. Para Lutero, o que teria valor não era a ação, mas a fé. Esta tese estava inspirada na frase de Paulo que declarava: “O justo viverá pela fé” (Rm 1, 17). Neste aspecto, a fé bastaria para que o homem pudesse ficar em paz com Deus. Mas o que se vê é que a ordem protestante tomou um outro percurso.

O Protestantismo influenciou o nascimento de outras igrejas e do que chamamos hoje por evangelismo. Agora, a suposta Igreja Protestante e assim também seus diversos segmentos se inserem de modo geralmente incisivo na ação do fiel. Particularmente, o que temos mais notícia, é que a igreja de Silas Malafaia e os discursos do pastor Marco Feliciano querem realizar um movimento de cura dos desejos homoafetivos.

Este grandioso projeto de intromissão na ação do fiel, já que não condiz com a lição originariamente protestante, só pode ser denominada, isto parece básico, de pós-protestante. O irônico é que, a Igreja Católica, que foi julgada por Lutero por provocar intromissões na ação de seus fiéis, parece estar mais recuada diante de uma decisão sobre a ação do homem, especificamente, sobre a vida sexual do indivíduo, o que, não sejamos ingênuos, não significa completa isenção no assunto.

Mas, voltemos ao problema dos pastores.

Em, não por motivos vãos, afamada entrevista à Marília Gabriela, Silas Malafaia chegou a mencionar que as pesquisas da genética sobre os homossexuais “não deram em nada” e que a psicanálise de Freud defendia a “cura dos gays”. Mas, isso merece algumas réplicas minimamente básicas: 1. A genética tem comprovado, a contragosto de muitos, que é inevitável não concluir que há condicionamentos nos genes para a homoafetividade, aliás, para a afetividade em suas várias expressões. 2. A psicanálise de Freud admite a bissexualidade nos primórdios ou origens naturais de nossa sexualidade. Ou seja, se trata aqui de uma sexualidade híbrida, mista. Para Freud, nascemos com uma sexualidade fluida e só posteriormente ela é capaz de tomar um direcionamento mais isolado, o que não implica dizer que ela se desenvolve apenas posteriormente, mas desde a tenra infância, com os pais e suas simbologias possíveis.

Freud foi capaz de adentrar no âmago de algumas questões mais complicadas da sexualidade, sem deixar, contudo, respostas concretas, não só pela dificuldade de concluir certas abordagens, mas, confessemos, por alguns erros - principalmente em relação à abordagem machista que teve sobre a mulher, o que não convém falar aqui ainda, e talvez eu o faça em outro texto. Ademais, embora seja plenamente possível falar em curas de problemas individuais na psicanálise, não é por acaso, e talvez isso seja um privilégio, que a psicanálise se dá muito mais como uma pesquisa do que como uma clínica, ao contrário da psicologia influenciada por Wundt e da psiquiatria medicinal icônica, cujo método de “cura clínica” é tanto mais defendido. E, apesar disso, tal método jamais se efetivaria em relação à cura ou higienização moralista de uma sexualidade e, tampouco, graças à mínima sensatez resultante de suas investigações e casos, se esforçaria atualmente para isso.

A preocupação de Freud estava em descobrir a origem do desejo e de como se vivencia ele e não em curar possíveis “desejos pecaminosos”. Não há religião e respectivamente um conceito de pecado a ser prezado na psicanálise. A psicanálise nos chega para tentar travar uma pesquisa sobre neuroses e desejos. Somos feitos de neurose que, para utilizar uma nomenclatura lacaniana, são mitos individuais. A intenção não é estritamente curá-los no sentido medicinal do termo, mas contribuir para um esclarecimento deste problema tão humano. Aqui o problema não pode ser visto como doença estritamente, já que ela não é vislumbrada como uma inimiga do paciente, como bem lembrou a escritora e amiga íntima de Freud, Lou Salomé, e sim como um trampolim para o autoconhecimento. As pessoas procuram a psicanálise original para entender e resolver a descoberta da origem dos seus desejos e de suas repressões e não para curar ou banir um desejo pecaminoso e execrável por um Deus.



A autocontradição

O que parece minimamente contraditório é que o pastor busca pensar as condições existenciais mediante condições biológicas e ao mesmo tempo fala em desejos que ultrapassam as condições biológicas porque, diz ele, partem de uma opção isoladamente comportamental. Esta separação é um tanto problemática, uma vez que o biológico se exprime no comportamento e faz parte de uma cultura, embora primária. No caso da abordagem do condicionamento restritamente biológico, não existiria nem homem, nem mulher, mas macho e fêmea. Então o pastor não poderia falar em homens, nem em mulheres, como fala, já que ele pensa que a própria relação entre eles deve ocorrer mediante tão só as necessidades de reprodução e os limites biológicos mais primários.

Silas Malafaia, por outro lado, talvez até sem perceber, concebe as condições homoafetivas como algo praticamente possível para todos. E com isso, ele inclui a possibilidade de todos estarem sob a possibilidade do desejo homoafetivo. Neste caso, sua batalha é tentar mostrar para nós brasileiros que não devemos nos condicionar a possibilidade desse tipo de desejo, para ele, imensamente perigoso.

Na medida em que Silas Malafaia afirma ser a homoafetividade algo da ordem do comportamento, ele nos traz, interinamente, a ideia de que todos podem desencadear a homoafetividade. E aqui reside uma contradição. Sua tese culmina por ser tão mais favorecedora à homoafetividade como algo comum do que o que afirmam os grupos de emancipação LGBTT. A genética, neste sentido, perto do que traz Silas Malafaia, não é transgressora, mas aparentemente reducionista. Ao negar os resultados da genética, Silas se encurrala em uma delicadíssima e comprometedora tese que afirma não se tratar de genes determinantes, mas de algo muito mais amplo ao qual, não apenas um grupo, mas, todos, estão possivelmente submetidos.

Então, o problema aqui parece estar em como Silas Malafaia se utiliza de um argumento que ele próprio talvez não tenha compreendido. Não importa quais medidas teóricas ele tome, a razão do que ele tenta defender, não tem, pelo menos assim parece, algum sentido harmonioso, não contraditório. A fé chega aqui, por fim, como um adorno atrativo para cobrir esta confusão de ideias.

Silas Malafaia, declaradamente, sabemos disso, procura na religião a força para angariar seus adeptos ideológicos. Ele promulga o que Kant, no século XVIII, na obra “Crítica da razão prática”, já anunciava, criticamente, como “misticismo moral”. O que, não se poderia deixar de fazer esta relação aqui, muito recorda a Alemanha Nazista em seu discurso de dizimação dos homossexuais. Lembremos que Adolf Hitler (1889-1945) não estava sozinho. Seu grande braço era Heinrich Himmler (1900-1945), uma pessoa de fé religiosa estupenda que tentou construir a estética de toda a atratividade convidativa do partido nazista. Tal qual Hitler, embora com menos seguidores, Silas Malafaia sobe aos tribunais, palcos, púlpitos de nosso país para convocar a nação a uma manifestação de repúdio à emancipação e liberdade dos que não são heterossexuais. Ele pretende limpar a nação para conduzi-la a Deus. Essa é a “vitória em Cristo” (por sinal, nome de sua Igreja): Uma higienização dos desejos como pré-requisito de uma nação “limpa”. E, ademais, tal qual Himmler, Silas Malafaia o faz mediante o levantar de templos religiosos, poetizações da fé, livros evangelizadores, declarações supostamente proféticas e por meio da inserção religiosa em debates políticos. Eu resumiria a ideia de Malafaia com a seguinte frase: a homoafetividade é possível a todos, então, o respeito à homoafetividade tornará, senão toda, grande parte dos brasileiros passível a desejos homoafetivos. Isto soa não apenas conservador, mas também, indiretamente transgressor e, diretamente, se amputamos a segunda parte desta frase. Vê-se aqui uma contradição estupenda, porque estúpida, de Silas Malafaia.



O apoio de Silas Malafaia a Marco Feliciano

O novo presidente da Comissão de Direitos Humanos vem sendo criticado por ter se manifestado contra homossexuais. Contudo, alguns, e aqui se inclui Silas Malafaia, dizem que suas opiniões devem ser respeitadas, assim como as outras críticas exigem que se respeitem as opiniões contrárias às proferidas pelo pastor.
Silas Malafaia escreveu, em um artigo na Folha de S. Paulo, do dia 05 de abril de 2013, que Marco Feliciano deveria ser respeitado por suas ideias, pois, nas suas palavras, “nunca matou um gay”. Ora, a justificativa parece tanto mais absurda que a proposição anterior, não? Como se o ato desse dito não fosse, também, um tipo de ação violenta. Somado a isso, Marco Feliciano, no caminho similar de Silas Malafaia, declarou que atenderia a um homossexual “como atende a qualquer pessoa normal”, o que talvez muito exiba a sua violência tristemente velada porque, ao se esconder, declara-se, e parece tanto mais forte. Isso parece básico.
Trago, como contribuição para uma observação crítica a esse fato, um pouco de uma obra atual, do filósofo esloveno Slavoj Žižek, intitulada “Elogio da Intolerância”, na qual ele tenta dissecar o discurso da tolerância na medida em que lhe toma como estratégia do pensamento pós-moderno capitalista que aceita o discurso a favor do “outro”, da aceitação e respeito a esse “outro”, mas este discurso existe exatamente para manter o próprio sistema que o alimenta e, com isso, não infringir os meios detentores da moda fascista, da publicidade veladamente racista, da homofobia declarada e subliminar, que escorre, sem que muitos percebam, nas relações humanas e nas relações de mercado - se é que se pode fazer hoje em dia essa separação - no universo multiculturalista, que ao tolerar, em verdade, assume que nega.
Essa tolerância é recusada por Žižek na medida em que ele a pensa como estratégia do espaço liberal fazer crescer, a partir do ideal de multiculturalismo, os seus anseios de mercado nas diversas etnias, expressões intelectuais e religiosas. A tolerância deve ser negada para se pensar aqui o sentido de coexistência não violenta entre os seres humanos, em outros termos, segundo o viés gratuito do humano pelo humano.
Marco Feliciano, e na esteira dele, Silas Malafaia, ao dizer “atenderei a um homossexual como qualquer pessoa normal” funda esse discurso da tolerância, que ao invés de afirmar o outro, nega-o, e comete aqui um ato estrategicamente violento. Pergunto a vocês, como respeitar isso?
Mas, busquemos uma outra partida: E quando se trata do fato de utilizarmos a tolerância a nosso favor, para pensar sobre as relações de tolerância a partir de nós que estamos em frente ao púlpito desses homens? E é preciso, portanto, que se relembre que a tolerância se revela como uma negação quando se afirma enquanto tolerância. A afirmação da tolerância é negação. Aqui é possível falar, então, em uma dialética da tolerância.
O respeito é intolerante àquilo que funda o desrespeito. A tolerância é um ato de desrespeito que pode ser corrosivo. Aquilo que se respeita é admirado, como já pontuou Kant. Aquilo que não se respeita é tolerado, porque na tolerância, o que se tolera não é apreciado, mas suportado. A intolerância é uma negação radical. A tolerância é uma negação limitada. Portanto, se não há admiração e, com isso, a possibilidade de uma negação radical aos atos de Silas Malafaia e de Marco Feliciano, então é plausível que haja a tolerância, lembro, no significado que aqui fica exposto.
Silas Malafaia tenta nos ensinar como conseguir respeitar Marco Feliciano, ele mesmo, arauto do desrespeito. Mas eles são passíveis de tolerância, exatamente porque não podem ser respeitados e porque merecem uma intolerância realizada. Uma tolerância, em seu ponto mais alto parece com garras cortadas, cordas vocais trêmulas pela negação efetiva, o grito contra o constante suportar que quer acabar. Uma tolerância concluída convoca a intolerância.
A tolerância pode ser uma negação cínica. A intolerância seria muito bem vinda se o que se tolera (o mesmo que se nega) fosse algo vencível. Mas, enquanto Feliciano não recusa sair de seu posto e Silas Malafaia investe em suas hordas de higienização da sexualidade brasileira, a tolerância cínica parece o único caminho que a crítica a esses pastores pode seguir. Essa tolerância, se é negação limitada, guarda o anseio a uma negação radical, ou seja, anseia em algum dado momento efetivar-se sem limites e tornar-se intolerância declarada.
Ademais, permitam-me outra breve digressão. Seria o conjunto de direitos humanos uma forma planejada de tolerância? Há lógica em dizer sim. Acrescento: Para além do tão já pensado fundamentalismo violento que, quando reivindica os direitos, só exprime sua negação velada, o que são os direitos humanos, senão um modo de pensar homem em contraposição às condições mais gigantes e presentes, que não deixam de ser tanto mais humanas, porque tanto mais históricas? A velha guerra entre razão e instinto, faculdade nobre e faculdade inferior. Os direitos humanos vem nos dizer que temos direito a algo para além de nossa natureza selvagem e raivosa, mas, quando realiza esse percurso, torna tanto mais inalcançável uma existência mais digna com algo para além dessa natureza primária. Na realidade, estamos lançados numa selva de direitos que agora jogam entre si com múltiplas e meras razões de discurso, o que significa nenhuma razão.

Talvez a própria ideia de direitos humanos já guarde aí sua contradição e exiba sua falibilidade na existência de homens como Feliciano na afirmação de postos com, assim dizem, alto compromisso com a sociedade. Os direitos humanos não podem ser direitos universais e a-históricos, caídos do céu e entregues por um anjo. Eles são condicionados e construídos com uma vista lançada a um tipo de poder peculiar. Os direitos humanos sofrem, desde sua origem à realização e corolários, um processo incisivamente politizador. Isso já revela que os direitos humanos não são direitos humanos, mas direitos políticos, o que significa, direitos particulares, ao invés de direitos universais. E parece ser uma pena que a política aqui ganhe um sentido de tamanho poder violento. A poder violento das decisões sobre um todo social mancha aqui o puro significado da política, como já bem pensou a filósofa Hannah Arendt, em sua obra “Sobre a violência” publicada em 1970. Mas, talvez pareça mais sensato também pensar que, a política, exatamente por não ser imaculada, já componha todas essas medidas arbitrárias, por ser, em seu núcleo, algo perverso, como pensou o filósofo francês Voltaire, por outro lado, defensor do conceito tradicional de tolerância, como significado da afirmação e aceitação do outro, tese aqui negada. Se, originariamente, a política não é como Voltaire afirma, mas como Hannah Arendt defende, Voltaire não deixa de estar correto, na medida em que a política que ele pensa é a política latente, mesmo que mentirosa. E talvez por isso ela seja tanto mais política. Aqui ambos filósofos, finalmente, sub specie ironiae, ficam corretos.

É preciso saber, por outro lado, que há homens similares a Feliciano, que trabalham numa certa cúpula, ao seu lado, e o favorece, mas não estão sob os holofotes porque, talvez, não sejam pastores tão públicos e algo parecido ou diferente. Então, o problema não é tão só com as ideias do sujeito Feliciano. A crítica que, talvez, se faz a Feliciano, revela tanto mais uma angústia velada da sociedade contemporânea com o conceito confuso da relação livre entre cultivo institucionalizado de espiritualidade com o cultivo da variadas possibilidades de identidade cultural. Isto marca uma expressão marcante da crítica presente numa cultura liberal. Quando atacam Feliciano, atacam a sua igreja incapaz de resolver isso. Da mesma maneira, esta recepção indignada da sociedade só vem a colocar em cheque a postura de Malafaia. Se ele quis abarcar público pra si, como um religioso que discute com políticos e psicólogos, ao mesmo tempo conseguiu, a contragosto, em relação a outro público, seu lugar com o algoz da praça, pois revelou ao mesmo tempo as sujeiras de sua Igreja e sua burrice que, quanto mais pomposa, mais feia e vergonhosa.


Uma ferida no país?!
Na obra “A dialética do esclarecimento”, escrita pelos filósofos Theodor Adorno e Max Horkheimer no século XX, afirma-se que a burrice é uma espécie de cicatriz, ou seja, um resultado de algo que foi inibido em uma experiência frustrada por uma expectativa intelectual não realizada. A cicatriz do intelecto seria um sinal de que alguma aprendizagem que ali foi interrompida ou tornada impossível. Diria, sem negar isto, que a burrice talvez nem mesmo a ser cicatriz, mas uma ferida não cicatrizada. No caso do pastor Silas Malafaia e de Marco Feliciano, suas posturas podem indicar este tipo de ferida, composta de dizeres imprecisos e, portanto, de “falaborréias”.

Muitos de nós podemos tolerar a seguinte imagem, ou seja, negar que ela permaneça, na medida em que é possível afirmar vislumbrá-la: Toda a áurea desses pastores, todos os trejeitos que contornam seus discursos violentos não se expressariam, muito bem imageticamente, no nosso país, como uma horrenda ferida atraente para moscas?

 * Ana Monique Moura é mestre em filosofia pela UFPB. Autora do livro “Entre Kant, filosofias & arte”, Editora Sal da Terra, 2012 e com livro sobre cinema no prelo, sob o título “O olho e o pensamento”, 2013.
Fonte: Brasil de Fato

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