Relações de gênero permeiam o
cotidiano das crianças desde cedo. Meninas e meninos aprendem, por processos
ora sutis, ora escancarados, qual é o lugar social que devem ocupar na
sociedade em função de seu sexo. Procurando compreender como crianças vivenciam
essas relações de gênero em suas rotinas fora da escola, realizamos uma
pesquisa que foi publicada no artigo Casa, rua, escola: gênero e escolarização
em setores populares urbanos (SENKEVICS & CARVALHO, 2015). Neste texto,
trazemos uma síntese de nossos resultados.
Por Adriano Senkevics, do Ensaios
de Gênero
Estudamos 25 crianças – 11
meninos e 14 meninas, a maioria entre oito e nove anos de idade – oriundas de
famílias de camadas populares do município de São Paulo, matriculadas em uma
escola municipal de um bairro periférico. Em seus cotidianos, o balanço trabalho-lazer
apresentou-se como chave para compreender como se organizavam suas rotinas em
termos de responsabilidades, recreação e acesso à rua. É fato que todas as
crianças envolviam-se em algum grau com os afazeres domésticos, em especial com
a arrumação de sua cama ou de seu quarto; diferenças entre os sexos tornaram-se
mais acentuadas no que tange às práticas voltadas para a manutenção da unidade
doméstica como um todo, em que o fim era o benefício coletivo. A esse respeito,
constatamos uma divisão sexual do trabalho doméstico, em que a participação das
meninas era bem mais expressiva que a dos meninos, mesmo quando o envolvimento
das crianças era secundário.
Afazeres domésticos: qualquer
unidade doméstica demanda a realização de tarefas como lavar a louça. Se não há
uma divisão igualitária, esse tipo de serviço com frequência recai sobre as
mulheres e as meninas.
Com frequência, o engajamento das
garotas nos afazeres domésticos era entendido como uma “ajuda” à figura
materna. De fato, as mães exerciam a função de delegar responsabilidades,
tornando-se a referência em torno da qual as tarefas eram cumpridas. Havendo
caçulas, a participação das meninas na organização familiar aumentava, na
medida em que elas se tornavam parcialmente responsáveis por eles. Ao mesmo
tempo, uma tarefa típica de uma irmã mais velha não encontrava simetria na de
um irmão mais velho.
Entre os garotos, raros foram os
casos em que eles manifestaram não ter nenhum envolvimento nos serviços de
casa, porém, no decorrer das entrevistas, mostrou-se evidente que suas
participações não encontravam simetria nos compromissos diários de suas irmãs e
colegas. Uma das exceções foi Lourenço, caçula de uma família composta por mãe,
uma irmã e dois irmãos. Quando entrevistado, ele disse em tom desolado que não
tinha com quem brincar porque todos os seus irmãos eram mais velhos. Em
consequência da sensação de tédio, motivada pelas escassas opções de entretenimento
e sociabilidade de que dispunha, Lourenço foi inequívoco: “Ué, não tem nada pra
fazer, aí eu arrumo a casa quando tá ‘tudo’ suja!”. Não obstante esse caso, a
menor participação masculina permanecia patente entre as crianças estudadas.
Nas fratrias mistas, alguns
depoimentos apontavam que as meninas percebiam o quanto estavam sobrecarregadas
se comparadas a seus irmãos, e algumas delas até mesmo denunciavam tais
disparidades. À guisa de exemplo, Débora pontuou que, na ausência da mãe, era
ela quem se encarregava pelo serviço doméstico, ao passo que seu irmão ficava
livre para as atividades de lazer: “Quando ela [mãe] ia fazer um curso, né, eu
tinha que arrumar toda a casa sozinha, enquanto meu irmão tava jogando
videogame.”
Nas periferias das grandes
cidades, é comum encontrar nas ruas uma proporção mais elevada de meninos. No
geral, os garotos dispõem de mais oportunidades de lazer que seus pares do sexo
feminino. (Foto: Jornal de Picos)
O leque de atividades desempenhadas
pelas crianças nos momentos de lazer em suas residências apresentou, novamente,
forte diferenciação por sexo. Apenas as meninas declararam brincar de boneca,
casinha e faz-de-conta sobre temáticas familiares. Outras atividades,
reconhecidamente masculinas, compunham a rotina dos garotos e, por isso, não
eram tão facilmente apropriadas pelas meninas, tais como o vídeo game. De modo
semelhante, muitos meninos não eram encarregados rotineiramente por nenhum
serviço doméstico, ao passo que jogavam livremente seus vídeo games e dispunham
de acesso liberado ao ambiente da rua.
Igualmente, Bianca nos contou
parte do seu dia na companhia de Larissa da seguinte maneira: “Nós fica mexendo
no computador, ou nós assiste TV e dorme”. Como essas garotas não estavam
autorizadas a brincar na rua, restavam a elas a televisão, o computador,
algumas brincadeiras e… dormir. Para Gisele, a situação parecia se assemelhar:
“Hum… assim… durante o dia… [pensando]… Eu fico só… assim, às vezes brincando
de boneca, às vezes dormindo”. Escassas oportunidades de lazer, poucas saídas à
rua, baixo exercício da sociabilidade e, de quebra, uma sobrecarga de serviços
domésticos, compunham uma lista de características mais comumente encontradas
nas rotinas das meninas. Em contraste, o lazer parecia se configurar por um
leque de atividades mais diferenciado entre os meninos, as quais se alternavam
entre atividades realizadas no interior do domicílio e aquelas praticadas nos
espaços exteriores.
Nos fins de semana, a situação
era semelhante aos demais dias. Para os meninos, os sábados e domingos pareciam
ser extensões de suas tardes livres para o entretenimento e a circulação na
rua. Para muitas meninas, constatamos dois cenários distintos: por um lado, a
possibilidade de dedicar-se ao lazer, com eventuais e controladas saídas à rua,
e o envolvimento em atividades menos recorrentes, tais como fazer compras ou
ajudar a mãe no preparo de refeições consideradas especiais. Por outro lado, os
sábados e domingos também podiam ser uma extensão de suas rotinas entediantes,
a exemplo das duas falas abaixo:
Eu não gosto de final de semana.
[…] É ruim… é chato demais ficar em casa. (Pâmela)
É [concordando com Pâmela], ficar
em casa… sem fazer nada. (Thaís)
Assim, o tédio que algumas
meninas sentiam diante da escassez de opções de lazer em casa e da baixa
circulação no espaço público era potencializado aos sábados e domingos. Nesse
cenário, a escola – durante o recreio, no parque, no pátio, na sociabilidade
dentro e fora da sala de aula – era o espaço que lhes provia as únicas
oportunidades no seu dia-a-dia de exercer algo que lhes apetecia e que fugisse
das obrigações cotidianas.
Em razão das desigualdades de
gênero no âmbito doméstico, é fundamental que sejam fornecidas, às meninas,
oportunidades de lazer e de sociabilidade. Mais do que os meninos, elas se vêem
privadas disso em seus cotidianos. (Foto: Sebastião Moreira/Efe)
Eram as idas e vindas para a
instituição escolar os poucos instantes que muitas das crianças, em especial as
garotas, tinham para usufruir o espaço da rua. Para quase a totalidade das
meninas, a “rua” era retratada como um ambiente cheio de perigos; com
frequência, elas tomavam casos particulares de violência para generalizar
exemplos por vezes abstratos acerca dos riscos do espaço público. Para além de
uma aversão pessoal aos ambientes exteriores, tratava-se de um rígido controle
imposto por seus familiares.
Assim como para as discrepâncias
na responsabilidade pelas tarefas domésticas, as meninas também foram capazes
de perceber desigualdades de acesso à rua se comparadas aos seus irmãos. Como
resultado disso, expressavam sutilmente incômodos como, por exemplo, as
críticas de Iara acerca da frequência à rua por parte de seu irmão de 15 anos.
Segundo seu relato, as razões que o autorizavam a ficar até tarde na rua eram
claras: “Porque ele é menino e ele é chato dentro de casa”. Aquilo que Iara
descreveu como uma “chatice” no interior do lar se devia ao fato de seu irmão
não se prestar a nenhuma tarefa doméstica, nem mesmo a arrumação de sua própria
cama. O não envolvimento nos afazeres domésticos implicava uma “punição” um
tanto peculiar: permanecer nos espaços exteriores. Já o quase confinamento da
garota se articulava à sua importância na execução dos serviços domésticos. Aos
olhos de sua família, Iara dificilmente seria entendida como uma “chata”.
Esses são alguns achados que
apontam para um cenário bastante sexista nas relações de gênero construídas
entre as crianças e seus familiares no âmbito doméstico. No texto original,
discutimos em mais profundidade o envolvimento das crianças nos afazeres
domésticos, nas oportunidades de lazer e na circulação ao espaço público. Esses
aspectos são fundamentais para entender as expectativas e práticas que modulam
a experiência de meninas e meninos e, assim, atuam para a construção de seu
próprio gênero.
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