terça-feira, 1 de setembro de 2015

Política da Anistia Internacional para proteger os direitos humanos de trabalhadores e trabalhadoras sexuais

1. Por que a AI necessita de uma política para proteger os direitos humanos dos trabalhadores e trabalhadoras sexuais?
Os trabalhadores e as trabalhadoras sexuais são um dos grupos mais marginalizados do mundo. Em muitos países se veem ameaçados por toda uma série de abusos, como estupro, agressão, tráfico de pessoas, extorsão, remoção forçada e discriminação, e são muitas vezes excluídos do acesso a serviços de saúde. 


O mais comum é que apenas gozem de proteção jurídica, se é que realmente conseguem na prática. De fato, em muitos casos, estes abusos e violações dos direitos humanos são perpetrados pela polícia, por clientes ou por terceiros. Por exemplo, um estudo realizado em 2010 sobre os trabalhadores e trabalhadoras sexuais na capital de Papua Nova Guiné, Port Moresby, concluiu que, ao longo de seis meses, 50 por cento dos trabalhadores e trabalhadoras sexuais haviam sido vítimas de violação (por clientes ou policiais).
2. Qual a diferença entre legalização e despenalização? Por que a Anistia Internacional não pede que o trabalho sexual seja legalizado?

A despenalização do trabalho sexual significa que os trabalhadores e trabalhadoras sexuais já não infrinjam a lei por realizar trabalho sexual. Não se veem obrigados a viver fora da lei, e há um maior espaço para proteger seus direitos humanos. Caso se legalize o trabalho sexual, isso significa que o Estado formulará leis e políticas muito específicas que regulam formalmente tal trabalho. Isso pode provocar um sistema de dois níveis em que muitos trabalhadores e trabalhadoras sexuais – frequentemente os mais marginalizados, os que realizam seu trabalho nas ruas – atuem fora desta normativa e continuem sofrendo criminalização. A despenalização coloca nas mãos dos trabalhadores e trabalhadoras sexuais um maior controle para agir de maneira independente, auto-organizar-se em cooperativas informais e controlar seu próprio entorno de trabalho de uma maneira que a legalização frequentemente não permite. Durante nossa consulta com trabalhadores e trabalhadoras sexuais, a maioria daqueles com os quais falamos apoiava a despenalização, mas com frequência via com inquietação as implicações da legalização. Isso não se devia unicamente a sua desconfiança das autoridades encarregadas de fazer cumprir a lei, mas também ao temor de, se adotado o modelo errado de legalização, possa desempoderá-los ou até leva-los a sofrer criminalização e abusos.
Quando os trabalhadores e trabalhadoras sexuais deixam de ser vistos e tratados como “delinquentes” ou “cúmplices”, correm menos risco de sofrer táticas policiais agressivas, e podem exigir proteção e melhores relações com a polícia e desfrutar delas. A despenalização devolve os direitos aos trabalhadores e trabalhadoras e os converte em agentes livres.
Não nos opomos à legalização em si, mas queríamos nos assegurar de que as leis aprovadas promovam os direitos humanos dos trabalhadores e trabalhadoras sexuais e cumpram o direito internacional de direitos humanos.
3. A despenalização do trabalho sexual não incita o tráfico de pessoas?

É importante deixar muito claro que a Anistia Internacional condena todas as formas de tráfico de seres humanos, incluindo o tráfico com fins de exploração sexual. O tráfico de seres humanos constitui um abominável abuso contra os direitos humanos e deve ser penalizado como questão de direito internacional. Isso fica claro para todas as nossas deliberações sobre a política.  A despenalização do trabalho sexual não significa eliminar as sanções penais para o tráfico de pessoas. Não há indícios que sugiram que a despenalização leve a um aumento do tráfico. Acreditamos que a despenalização ajudaria a abordar o tráfico de pessoas. Quando o trabalho sexual é despenalizado, os trabalhadores e trabalhadoras sexuais são mais capazes de trabalhar juntos e clamar por seus direitos, para obter melhores padrões e condições de trabalho e uma maior fiscalização do sexo comercial e do possível tráfico de pessoas destinado a este fim. Quando não estão sob ameaça da criminalização, os trabalhadores e as trabalhadoras sexuais podem também colaborar com as forças encarregadas de fazer cumprir a lei para identificar os autores e as vítimas do tráfico.
Algumas organizações, como a Aliança Global contra o Tráfico de Mulheres, Anti-Slavery International e a Organização Internacional do Trabalho, concordam que a despenalização fomenta um maior reconhecimento dos direitos das pessoas que vendem sexo e podem ajudar a pôr fim às violações de direitos humanos que sofrem estas pessoas, inclusive o tráfico.
4. Como a despenalização do trabalho sexual pode proteger os direitos das mulheres?

A política proposta pela Anistia Internacional pretende proporcionar uma maior proteção aos direitos humanos das trabalhadoras sexuais – que frequentemente se encontram entre as mulheres mais marginalizadas da sociedade – promovendo uma maior proteção e um maior empoderamento das trabalhadoras sexuais. A desigualdade de gênero e a discriminação podem influir muito para que uma mulher se dedique ao trabalho sexual. Não somos ingênuos nem indiferentes a respeito deste problema. Mas acreditamos que criminalizar as mulheres por sua falta de opções ou utilizar leis penais e práticas policiais que façam sua vida menos segura não seja a resposta para este problema.
A criminalização das trabalhadoras sexuais torna mais difícil obter um trabalho de sua escolha. A política que propomos expõe uma série de ações que os Estados devem tomar – além da despenalização – para empoderar as mulheres e outros grupos marginalizados com o fim de garantir que ninguém tenha que realizar trabalho sexual para sobreviver.
Os Estados devem proporcionar acesso oportuno e adequado a medidas de apoio, por exemplo, serviços sociais, educação e formação e/ou um posto de trabalho alternativo. Isso não significa que as pessoas que se dedicam ao trabalho sexual sejam obrigadas a participais desses programas.

5. Que provas a AI tem para respaldar sua proposta de política sobre trabalho sexual?

Dedicamos dois anos à elaboração de nossa proposta política para proteger os direitos humanos dos trabalhadores e trabalhadoras sexuais. Esta política se baseia em uma sólida investigação e consulta com várias organizações e pessoas. Examinamos o amplo trabalho realizado por organizações como a Organização Mundial da Saúde, ONUSIDA, o relator especial da ONU sobre o direito à saúde e outros organismos da ONU. Também examinamos as posturas adotadas por outras organizações, como ONU Mulheres, Anti-Slavery International e a Aliança Global contra o Tráfico de Mulheres. Realizamos investigações detalhadas, entrevistamos mais de 200 trabalhadores e trabalhadoras sexuais, e também ex-trabalhadores e trabalhadoras sexuais, a polícia, governos e outros organismos na Argentina, Hong Kong, Noruega e Papua Nova Guiné.
Nossos escritórios nacionais em todo mundo também contribuíram com a política mediante uma consulta ampla e aberta com grupos de trabalhadores e trabalhadoras sexuais, grupos que representam sobreviventes de prostituição, organizações abolicionistas, feministas e outros representantes dos direitos das mulheres, ativistas LGBTI, órgãos contra o tráfico de pessoas, ativistas que trabalham sobre o HIV/AIDS e muito mais.

6. Quem vende sexo precisa de proteção, mas por que proteger os proxenetas?

Nossa politica não consiste em proteger aos proxenetas. Segundo o modelo que propomos, os terceiros que exploram ou violam direitos de trabalhadores e trabalhadoras sexuais devem continuar sendo criminalizados. Mas existem leis excessivamente amplas, como as que proíbem “promover a prostituição” ou “administrar bordeis” que são frequentemente utilizadas contra trabalhadores e trabalhadoras sexuais e criminalizam as ações que empreendem para tentar manter-se a salvo. Por exemplo, em muitos países, se os trabalhadores e trabalhadoras sexuais trabalham juntos por razões de segurança, considera-se que formam um “bordel”. Nossa política pede que as leis se reorientem para abordar os atos de exploração, abuso e tráfico, em vez de estabelecer delitos de caráter muito geral que criminalizam os trabalhadores e trabalhadoras sexuais e colocam suas vidas em risco.
7. Por que a Anistia Internacional não apoia o modelo nórdico?

Embora o modelo nórdico não criminalize diretamente os trabalhadores e trabalhadoras sexuais, há aspectos operativos – como a compra de sexo ou o arrendamento de locais nos quais vender sexo que continuam criminalizados. Isso coloca em risco a segurança dos trabalhadores e trabalhadoras sexuais e os torna vulneráveis a abusos; podem continuar sendo objeto de perseguição por parte da polícia, cujo objetivo frequentemente é erradicar o trabalho sexual mediante o cumprimento da lei penal. Na realidade, as leis contra a compra de sexo significam que os trabalhadores e as trabalhadoras sexuais têm que correr mais riscos para proteger os compradores e evitar que sejam detectados pela polícia. Os trabalhadores e trabalhadoras sexuais com os quais falamos nos contaram que, de forma habitual, os clientes lhes pedem que visitem suas casas para evitar a polícia, em vez de ir a um local onde o trabalhador ou trabalhadora sexual se sinta mais seguro.
No modelo nórdico, o trabalho sexual continua extremamente estigmatizado, o que contribui para a discriminação e marginalização dos que se dedicam a ele.

8. Por que a Anistia Internacional acredita que pagar por trabalho sexual é um direito humano?

Nossa política não trata sobre os direitos dos que compram sexo: concentra-se exclusivamente em proteger trabalhadores e trabalhadoras sexuais que enfrentam uma série de violações de direitos humanos vinculadas à criminalização. Ao adotar esta política, a Anistia Internacional diz que acreditamos que devem ser protegidos os direitos de um grupo de pessoas que pode ser extremamente vulnerável a violações de direitos humanos.

9. Como organização de direitos humanos, esta votação significa que vocês promovem o trabalho sexual?

Não. Não acreditamos que ninguém deva realizar trabalho sexual contra a sua vontade, e ninguém deve ver-se obrigado ou coagido a se converter em trabalhador ou trabalhadora sexual. Existem provas de que, frequentemente, os trabalhadores e trabalhadoras sexuais se dedicam a este trabalho como seu único meio de sobrevivência, e porque não têm outra opção. Isso só perpetua a marginalização dos trabalhadores e trabalhadoras sexuais, e é por isso que queremos garantir que contemos com uma política que defenda seus direitos humanos.

10. A Anistia Internacional adotou uma decisão, mas o que ocorrerá em seguida?

A votação deu à nossa Junta Diretora Internacional luz verde para elaborar e acordar uma política com a qual proteger os direitos humanos dos trabalhadores e trabalhadoras sexuais. Esta política será discutida em sua próxima reunião de outubro. A Junta se baseará nas conclusões da consulta e na investigação realizada até esta data e tomará uma decisão sobre a melhor política para refletir o compromisso da Anistia Internacional de proteger os direitos humanos dos trabalhadores e trabalhadoras sexuais.

Fonte: Anistia Internacional

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