sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Com quantos paus se constrói um estuprador-universitário


 Nenhum garoto nasce com ganas de violar. O comportamento não pode ser atribuído à natureza masculina, ao instinto primitivo, à força da biologia. Ou todos os homens, sem exceção, estuprariam. Um estuprador é fabricado.

 Vi isso, mais uma vez, ao escrever a reportagem “Estupro na Faculdade”, publicada na edição de setembro de CLAUDIA. O texto mostra que nas melhores universidades brasileiras os alunos estupram suas colegas como parte da vida recreativa estudantil. E as instituições fingem não ver o “abatedouro” de mulheres funcionando em suas dependências. Fingiam. O escândalo atingiu primeiro a Universidade de São Paulo (USP), a mais influente instituição de ensino superior da América Latina, onde alunas da tradicional Faculdade de Medicina denunciaram abusos, de que foram vítimas, em festas ocorridas às barbas da diretoria. Uma CPI instalada na Assembleia Legislativa de São Paulo apurou esses casos e ainda racismo e homofobia praticados também na Unesp, Unicamp, nos campi da USP de Ribeirão Preto e Pirassununga, e ainda na PUC de São Paulo e de Campinas. Dividi o trabalho de apuração com a brava repórter Gabriela Abreu e chegamos a vítimas na Universidade Federal do Ceará, Federal de São Carlos e a estudantes de Brasília e de Seropédica (RJ), que admitiram a existência do crime na UnB e na Rural do Rio de Janeiro.

Mas, em termos de requinte, a USP lidera no ranking da desumanidade, tendo a Faculdade de Medicina na proa. Pelo menos são os históricos mais visíveis, uma vez que as apurações avançaram da CPI para a Justiça, com dez casos de estupro em fase de investigação, dois já com réus respondendo a processos criminais.

Com quantos paus se faz um estuprador acadêmico? Estendemos essa inquietação ao reitor da USP, Marco Antonio Zago. A assessoria de imprensa havia dito que ele preferia responder por e-mail. Perguntamos a Zago: “Ao que o senhor associa a ocorrência de estupros na comunidade acadêmica? Em tese, não seria nesse ambiente – no qual os homens têm maior acesso à educação, à informação sobre saúde física e emocional e também sobre direitos – que deveria haver maior respeito às mulheres?” E a assessoria, então, respondeu: “O reitor prefere não se manifestar sobre esse assunto”. Zago havia se recusado, antes, a informar quantos casos estavam sendo apurados em sindicâncias internas, o número de alunos punidos e os tipos de sanção. A aura de impunidade sempre contribuiu com a modelagem do caráter do macho-livre-para-voar.

Como disse o filósofo Sérgio Barbosa – com quem concordo plenamente – os alunos da USP, em especial os da medicina, se veem sob uma soma de prestígio: são homens, dominantes, foram aprovados no mais difícil vestibular do país, estão próximos de mentes brilhantes, de grandes descobertas da ciência nacional. E por isso se sentem acima da lei, da ética, do respeito. Podem subjugar o “ser inferior”. Ou o imediatamente abaixo deles: a colega mulher.

Pesa na elaboração da cultura, o macho que se espelha no outro macho para se tornar ainda mais macho. São comuns, segundo os relatos ouvidos pela CPI e pelo Ministério Público Paulista, as rodas da vanglória – uma fórmula carcomida de constituir masculinidade. Os futuros médicos se juntam para contabilizar quantas comeram, pela frente e pelo ânus. E para medir o tamanho da lista de mulheres que eles conseguiram apagar num único evento etílico – proibidos na instituição depois do fuzuê público causado pelas denúncias. Apagar de verdade. Pelo menos dois brutos admitiram que adulteraram bebidas ou deram remédio para suas presas ficarem ainda mais vulneráveis – e “facinhas” para o coito. Alguns dos crimes teriam sido cometidos por dois sujeitos ou mais – com potência física turbinada por estimulantes, drogas e genéricos -, que atacaram ao mesmo tempo uma só aluna. Note-se: entre os acusados encontra-se um estudante com histórico de assassinato.

Quantos paus? Vamos ver mais este: a subversão de valores. No início das apurações, as vítimas tiveram o nome pichado em banheiros, foram chamadas de vagabunda para baixo e repreendidas até por mestres, inconformados com as denunciantes que – palavras dos doutores – jogaram o bom nome da Faculdade de Medicina na lama. As agredidas foram, ainda, achincalhadas por alunas que corroboram com as tradições das festas, dos trotes e das cerimônias de passagem para a seleta e fechada sociedade acadêmica.



O hinário entoado nos jogos universitários é mais uma vara colocada na edificação do machismo. Há peças impublicáveis e crivadas de obscenidades em quase todas as torcidas das faculdades Brasil afora. Cito apenas o hino da Batesão, a bateria da Medicina da USP-Ribeirão Preto, que trata mulher assim: “morena gostosa”, “loirinha bunduda” e “preta imunda”. Soma-se à formatação do violador o silêncio cúmplice — que vai de funcionários a gestores, passando por estudantes e professores. Muitos na comunidade nada dizem contra a dor e a humilhação imposta aos recém-chegados, mais fracos, homossexuais e às mulheres. O Ministério Público deu um basta. Emitiu uma recomendação para a instituição proibir o Show Medicina, uma associação cultural, espécie de confraria máscula, que há 73 anos promove um espetáculo teatral anual. Nos últimos tempos, virou um entretenimento de horror para destratar alunos e funcionários, com imitações de colegas gays e piadas sobre as lideranças feministas da faculdade que combatem o estupro. As promotoras Beatriz Budin e Silvia Chakian escreveram na peça formal do inquérito civil que conduzem: “Ficou apurado também que, para integrar o Show Medicina, os interessados passam por um ritual constituído de trotes violentos e humilhantes, com forte assédio moral e sexual, além de violência física e noitadas com prostitutas nas dependências da universidade”.

Nesta terça (1º/9), horas depois de receber a recomendação das promotoras, a direção da faculdade proibiu o Show Medicina. Se não agisse assim, poderia responder a uma ação judicial. Olhar para essa confraria permite entender a gênese dos abusos: as estudantes sempre foram impedidas de participar. A elas, os homens reservavam a função de costurar o figurino, sem direito a opinar sobre a criação do espetáculo nem mesmo ver os ensaios. É mais uma forma de perpetuar o mandão no poder. E um treino para tratar as mulheres como se elas fossem a sobra do carretel de linha.

Fonte: M de Mulher

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