Marginalizadas, discriminadas,
estigmatizadas e aborrecidas, as pessoas que exercem o trabalho sexual não têm
outra opção do que levar em silêncio as constantes violações aos seus direitos.
Mais cedo do que tarde, um organismo em El Salvador pretende transformar essa
história.
Por Tomás Andréu
Projeto de Lei busca reconhecer e proteger quem se dedica à atividade
sexual
É um ato de consciência: usar o
corpo como ferramenta de trabalho, para dar prazer em troca de dinheiro. Mas
esta decisão pessoal não goza de boa reputação nem na sociedade nem nos
governos latino-americanos. e colocar à prova as máximas autoridades desse país
centro-americano.
O não governamental Movimento de
Mulheres Orquídeas do Mar elaborou um anteprojeto de lei para a proteção dos
direitos das trabalhadoras sexuais de El Salvador. A proposta será apresentada
formalmente à Assembleia Legislativa, em 2016, mas, no fim de novembro próximo,
será feita uma apresentação e discussão pública, segundo declarou às Notícias
Aliadas a diretora executiva deste coletivo, Haydeé Laínez.
Este organismo assessora as
pessoas que decidem empregar-se outorgando serviços sexuais. A entidade
aglutina cerca de 2.700 mulheres de todo o país e tem presença nos
departamentos de Sonsonate, San Miguel, Santa Ana e San Salvador. Além disso, o
coletivo é parte da Rede de Mulheres Trabalhadoras Sexuais da América Latina e
Caribe (RedTraSex).
A ideia de dignificar o trabalho
sexual em El Salvador surgiu muito pouco tempo depois do nascimento do
Movimento de Mulheres Orquídeas do Mar, em 2005, mas foi há cinco anos quando
uma equipe desta organização com assessoria internacional se dispôs a analisar
todas as leis do país — em favor e contra as trabalhadoras sexuais — para criar
seu anteprojeto.
"Esse documento tem a
essência do sentir das trabalhadoras sexuais”, enfatiza Laínez em conversa com
as Notícias Aliadas. Para ela, há uma clara violação aos direitos de suas
companheiras já que não têm acesso a créditos bancários, prestações sociais,
como seguro social ou direito à aposentadoria. Tampouco podem adquirir uma
moradia própria.
"Trabalhamos 365 dias por
ano. Pagamos impostos porque, quando pagamos a água, a luz, a telefonia,
estamos pagando nossos impostos”, assegura Laínez, de 46 anos, que iniciou no
trabalho sexual aos 18 anos. Ela logrado driblar os embates da vida e da
sociedade. Teve que batalhar com clientes abusivos, com os insultos na via
pública, com a polícia e os militares, e as fiscalizações municipais. E, como
se fosse pouco, com as extorsões das gangues.
Fiscalizações municipais repressivas
A Constituição da República de El
Salvador não proíbe nem pune o trabalho sexual, no entanto, as contravenções
das municipalidades, sim, fazem isso. Punem com multas e prisão a oferta e
demanda de serviços sexuais. Por isso não é estranho que o Corpo de Agentes
Metropolitanos (CAM) — espécie de polícia municipal — e os agentes de segurança
do Estado assediem quem oferece seus serviços sexuais na rua. Mais do que
implementar multas, as autoridades o que buscam é a chantagem e mudam as
infrações por prazer sexual.
Haydeé Laínez, directora
executiva do Movimento de Mulheres Orquídeas do Mar.
"É curioso que as
fiscalizações [leis secundárias] nos reconhecem, mas nos reconhecem unicamente
para nos discriminar e para extorquir dinheiro”, assinala Laínez.
O anteprojeto de lei do trabalho
sexual tem como coluna vertebral o reconhecimento desse trabalho ante as
autoridades e a sociedade salvadorenha. Disto se depreendem outros pontos não
menos importantes, como uma melhor atenção em saúde, livre de preconceitos e
discriminação. Além disso, a possível aprovação dessa iniciativa derrogará as
leis secundárias das municipalidades, que perseguem quem oferece serviços
sexuais. Também colocará um fim à exploração sexual em locais fechados, como os
clubes noturnos ou o tráfico de pessoas.
"A história tem vendido à
humanidade que o que fazemos não é trabalho e até nós temos acreditado nisto,
mas é preciso desmentir e sensibilizar os governantes e a sociedade sobre este
tema”, comenta Laínez, que está a ponto de se graduar na licenciatura em
Trabalho Social.
O anteprojeto de lei do Movimento
de Mulheres Orquídeas do Mar conta com o apoio financeiro do Plano
Internacional. Laínez afirma que reúnem várias instituições do Estado e da
sociedade civil no que ela denomina "Mesas de trabalho sexual”, das quais
participam os Ministérios do Trabalho, Saúde e Economia, e os organismos de
segurança, como a Polícia Nacional Civil e o CAM.
O cenário mais difícil, não
obstante, é a Assembleia Legislativa. No dia 1º de maio de 2015, foi eleita a
nova legislatura, que exercerá até 2018. Nos partidos majoritários, têm entrado
jovens. Isto suporia refrescar a mentalidade dos veteranos políticos do
Congresso. Ou pelo menos haveria uma vontade de escutar e debater temas
espinhosos, como a despenalização do aborto ou uma proposta de lei como a do
trabalho sexual.
As Notícias Aliadas fizeram uma
sondagem com distintas vozes dos partidos mais representativos do Palácio
Legislativo. Ainda que tenha havido resistência para opinar — os deputados
queriam conhecer por escrito a proposta antes de arriscarem-se a darem uma
declaração —, finalmente as reações têm pontos em comum, que esboçam uma
recepção aberta a escutar a proposta do Movimento de Mulheres Orquídeas do Mar.
O deputado e presidente da junta
diretora do Congresso, Guillermo Gallegos, da Grande Aliança pela direitista
Unidade Nacional (Gana), considera que, se bem o tema já seja "regulado em
vários países e não seria má ideia [regulá-lo em El Salvador] porque com isto
se mantém um controle; inclusive, através da regulação, se pode prevenir muitas
enfermidades de transmissão sexual”.
"Eu não descartaria apoiar
uma iniciativa como essa. É algo que se pratica aqui e em qualquer parte do
mundo, e nunca vai desaparecer. Não é que estejamos de acordo com isto, mas
ante a situação o melhor é regular. E, sim, sou da ideia de que deve ser dada
atenção [às trabalhadoras sexuais] através de uma regulação por lei”.
Estigmatização e vulneração de
direitos
O trabalho sexual não é um tema
agradável em boa parte dos círculos feministas ou progressistas. As primeiras
afirmam que as mulheres que oferecem serviços sexuais estão perpetuando a
máxima expressão do patriarcado, que reduz a mulher a um pedaço de carne, que
existe unicamente para satisfazer o homem. Os segundos dizem que um verdadeiro
homem jamais solicita um serviço sexual, porque isto não é para homens nem para
um cavalheiro. Que um rapaz seja trabalhador sexual é simplesmente impensável.
"Quem não conhece o trabalho
sexual, que não fale. Só as pessoas que temos exercido isso sabemos do que
falamos e o que isso significa. Se não vivem isso, como vão argumentar?”,
afirma Laínez.
Porém, apoio existe e vem de uma
importante entidade de El Salvador, denominada Coletivo Feminista para o
Desenvolvimento Local. Uma de suas vozes, Morena Herrera, assevera que "é
necessária uma regulação legal sobre o trabalho sexual, porque a ilegalidade na
qual se encontra o trabalho sexual só contribui para a vulneração de direitos,
a maior estigmatização e, em muitos casos, para a violência, a perseguição e a
criminalização das trabalhadoras do sexo”. Herrera também acrescenta que a
"dupla moral imperante na sociedade, incluindo a Assembleia Legislativa”,
não cria um cenário positivo para a proposta sobre o trabalho sexual, contudo,
"se o debate não se coloca no terreno da moralidade pública, mas no
reconhecimento de direitos e garantias cidadãs, com as quais o Estado tem
responsabilidades”, existem esperanças de que seja aprovada.
Ingrid tem 51 anos e há 25 anos
exerce o trabalho sexual. Para ela, uma lei que dignifica seu trabalho
"será um respaldo para nossos direitos negados e invisibilizados”. Através
dos seus serviços sexuais conseguiu terminar seus estudos de bacharelado, levou
comida para sua casa, e deu teto, vestimenta e educação para suas filhas, que
já sabem a que se dedica sua mãe. "Uma lei que nos beneficie colocaria
temor nas pessoas que tentem nos agredir ou explorar sexualmente”, comenta
Ingrid às Notícias Aliadas.
Sandra, de 30 anos, também é
trabalhadora sexual. Começou aos 18 anos por uma simples razão: fazia falta de
dinheiro em casa. Agora, não só faz por esta razão, também faz porque tem
consciência de sua condição. "Agora que sou uma trabalhadora sexual
organizada, me dou conta de que meu trabalho é como qualquer outro. Todos
cobramos em troca de algo. Uma lei em nosso favor nos permitiria ter acesso a
uma moradia digna. Realmente, mudaria nossa situação de exclusão, a que têm nos
submetido”.
Fonte: Adital
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