quinta-feira, 27 de março de 2014

''Eu, vítima e violentada quando menina, entre os sábios antipedofilia do papa''

É uma daquelas notícias que, há alguns anos, teria sido considerada ficção científica. Agora, ao invés, graças à decisão de Francisco que quer continuar com firmeza na linha iniciada por Bento XVI, Marie Collins, uma mulher irlandesa abusada por um padre aos 13 anos, foi nomeada membro da nova comissão antipedofilia da Santa Sé. 


Uma mulher que, quando menina, foi vítima de violência estará envolvida, portanto, no mais alto nível para fazer com que as regras e as leis já existentes correspondam também a uma verdadeira mudança de mentalidade na hierarquia.

"Eu esperava que houvesse um representante das vítimas na comissão, mas não tinha ideia de que seria nomeada", afirma Marie Collins. "Para mim, foi uma surpresa absoluta. A instituição dessa comissão é uma medida muito positiva do Papa Francisco e pode levar a uma mudança real do modo pelo qual o problema da proteção dos menores e do cuidado pastoral das vítimas será gerido no futuro. Há muito trabalho a fazer."

"Como sobrevivente de um abuso clerical, para mim, foi uma viagem longa e difícil. A minha confiança e o meu respeito pela Igreja Católica foram minados pela forma como o meu caso e, em geral, os casos de abuso foram enfrentados. Houve momentos em que eu me perguntei se eu realmente devia ir embora. Por isso, agora, o fato de me encontrar como parte de uma comissão desse nível no Vaticano é algo que eu nunca poderia ter previsto. E é preciso aproveitar a oportunidade para fazer a voz de uma vítima."

O anúncio ocorreu nesse sábado, de surpresa, depois de uma aceleração desejada pessoalmente pelo papa: "A Comissão para a Proteção dos Menores" contra o fenômeno da pedofilia, por enquanto, é composta por quatro homens e quatro mulheres, representantes dos vários países. Além de Collins e do cardeal Sean O'Malley, estão a francesa Catherine Bonnet; a inglesa Sheila Hollins; o jurista italiano Claudio Papale, professor de direito canônico; a ex-embaixatriz polonesa Hanna Suchocka; e dois jesuítas da Gregoriana: o argentino Humberto Miguel Yánez, diretor do Departamento de Teologia Moral, e o alemão Hans Zollner, decano do Instituto de Psicologia.

Os oito membros são apenas os primeiros, porque outros serão designados a partir das diferentes áreas geográficas do mundo. O nascimento da comissão antipedofilia havia sido discutida pelos oito cardeais conselheiros de Francisco – O'Malley é um deles – em dezembro passado.

As nomeações desse sábado são apenas um primeiro passo. Os estatutos já estão sendo estudados, e os oito membros terão que se ocupar deles, definindo "as competências e as funções" da própria comissão, para garantir a segurança das crianças, a prevenção, o estudo dos procedimentos penais, os deveres e as responsabilidades civis.

A finalidade é a de aconselhar o papa e a Santa Sé sobre as normas antipedofilia e o cuidado pastoral das vítimas. O novo órgão, que também terá que identificar novos colaboradores, não irá substituir a força-tarefa da Congregação para a Doutrina da Fé que lida com esses casos, nem aos vários dicastérios envolvidos na formação do clero. Mas irá colaborar com todos os escritórios vaticanos, fornecendo indicações e propostas concretas.

Marie Collins foi a única vítima de abuso a tomar a palavra no primeiro simpósio internacional sobre pedofilia clerical organizado pela Gregoriana em fevereiro de 2012, com o apoio do Vaticano e com a participação de bispos e superiores religiosos de todo o mundo.

Ela havia contado que, aos 13 anos, enquanto estava internada em um hospital de Dublin, havia sofrido violências. "O fato de que o homem que abusou de mim fosse sacerdote acrescentou uma grande confusão na minha mente... Aqueles dedos que tinham abusado do meu corpo na noite anterior eram os mesmos que, na manhã seguinte, seguravam e me ofereciam a hóstia sagrada."

O capelão do hospital tentou tranquilizá-la, dizendo que, como era um padre, não podia agir mal. "Isso acrescentou um novo peso ao meu sentimento de culpa, e a convicção de que o que tinha acontecido era de responsabilidade minha, e não dele. Quando saí do hospital, eu não era mais a mesma menina...".

O arcebispo de Dublin, Diarmuid Martin, parabenizou Collins pela nomeação: "A sua contribuição ao trabalho para a proteção das crianças na nossa diocese foi crucial, e os seus conselhos e comentários críticos foram de inestimável ajuda e inspiração para mim".



Entrevista

No telefone, a voz da Marie Collins, irlandesa abusada sexualmente por um sacerdote quando tinha 13 anos e nomeada nesse sábado pelo Papa Francisco para a nova comissão para a proteção dos menores instituída precisamente contra o fenômeno da pedofilia, não trai emoções.

Determinada, mas também gentil e calma, Collins explica que "era justo e necessário chegar a pedir a ajuda explicitamente das vítimas. Um passo decisivo".

Eis a entrevista.

Por que Francisco escolheu justamente você?

Acima de tudo, quero dizer que para mim é uma honra. Mas porque ele me escolheu, eu só posso supor. Algum tempo atrás, eu conheci o cardeal arcebispo de Boston, Sean O'Malley. Ele estava na Irlanda para a visitação apostólica desejada por Bento XVI justamente para lançar luz sobre a pedofilia no clero depois da publicação do relatório Murphy, um estudo sobre os abusos sexuais cometidos por sacerdotes na diocese de Dublin de 1975 a 2004. Eu já tinha sido chamada por essa diocese como consultora. Depois, fui convidada para a Universidade Gregoriana de Roma, no dia 6 de fevereiro de 2012, para um congresso internacional. E lá contei diante de diversas autoridades vaticanas e a muitos bispos de todo o mundo os abusos sofridos. Eles me ouviram em silêncio e com respeito. Pessoalmente, nunca falei com o Papa Francisco, mas evidentemente ele estava informado.

Quais são as urgências que a comissão deve enfrentar?

Que se chegue, se os casos de abuso forem confirmados e a vítima permitir, à denúncia às autoridades civis. Esse passo é decisivo. Eu sofri não só com os abusos, mas também com o encobrimento que algumas hierarquias na Igreja deram ao meu molestador. Eu não era acredita. Ou ao menos diziam que não acreditavam em mim. Foi terrível.

Francisco está dando passos novos com relação ao passado?

Bento XVI também fez muito. Com Francisco, esse impulso, finalmente, essa política de não encobrimento e da verdade é perseguida mais, e me parece que com grande vigor. E estou feliz por isso.

No passado, no Vaticano, quem lhe ajudou mais?

O ex-promotor de justiça da Congregação para a Doutrina da Fé, Dom Charles Scicluna. Fiquei impressionada com a sua vontade de chegar a uma verdadeira proteção dos menores.

Você declarou que manteve a sua fé apesar de tudo.

Foi difícil. No começo, eu me sentia culpada. Eu era jovem. Tinha 13 anos quando sofri os abusos. Estava internada em um hospital, e um jovem padre abusou me várias vezes. À noite, as suas mãos me violentavam e, de manhã, me ofereciam a hóstia. Eu entendia que as suas ações eram erradas, mas estava confusa e comecei a pensar que era culpa minha. Em seguida, depois de tantos sofrimentos, da depressão, eu me casei. Foi depois do matrimônio que eu tomei coragem e falei com um sacerdote sobre o que acontecera comigo. Mas ninguém acreditava em mim. Os superiores do meu molestador chegaram a protegê-lo contra todas as evidências. Foi apenas 25 anos depois que as autoridades civis incriminaram aquele sacerdote. Em seguida, a Igreja também admitiu as suas culpas. Só depois dessa condenação, é que dentro de mim algo com relação a Deus e a religião mudou.

Por isso é importante a denúncia?

Sim. A minha vida recomeçou quando o meu agressor foi levado à justiça. Nesses anos, eu trabalhei com a minha diocese e com a Igreja Católica irlandesa. A minha vida não é mais uma terra estéril. Sinto que isso tem significado e valor.

Fonte: Ihu

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