quarta-feira, 6 de março de 2013

"A PROSTITUIÇÃO QUE TEMOS HOJE PODE ESTAR COM OS DIAS CONTADOS"


“A questão da escolha, em todas as profissões, é algo muito relativo. Quem, em sã consciência, pode dizer que uma menina em situação de miséria tenha feito uma boa escolha ao sair de sua casa para trabalhar em casa de família na cidade grande, longe de seus pais e sujeita a todo o tipo de abuso? A prostituição está ligada à exploração, ao abuso infantil e ao tráfico humano, mas há muitas outras atividades ligadas a isso. E são esses crimes que devem ser combatidos e punidos, não as atividades extintas”.


 Reproduzimos aqui uma interessante entrevista que a professora Lora Aronovich, em seu blog  http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br , fez a uma garota de programa.

Gosto muito de fazer perguntas, e já entrevistei algumas pessoas aqui no bloguinho. Planejo realizar várias outras.
 Sempre quis entrevistar a Monique. Minha história com ela é a seguinte: pouco depois de eu entrar no Twitter, em agosto de 2010, passei a ser seguida por uma moça (ok, mais de uma) inteligente, carinhosa e divertida. Era a Monique. E, lógico, comecei a segui-la também.
 Aí, em setembro de 2011, a YouPix fez uma matéria sobre garotas de programa no Twitter, e perguntou a alguns blogueirxs o que achavam delas. Eu fui uma das entrevistadas, e respondi que não via nada de mais, que eram pessoas como todas as outras e mereciam respeito, embora eu não seguisse nenhuma prostituta no Twitter. Então a Monique chegou pra mim e quis saber: "Ué, e eu?". E eu, sempre a última a saber: "Vc é prostituta?".
 Desde então, fiquei morrendo de vontade de entrevistá-la pro blog. Mas a danada sempre fugia das minhas investidas. Até que ela publicou um excelente guest post no blog da Cynara Menezes, outra pessoa que eu admiro, e eu fiquei com inveja. Como assim? O que a Cynara tem que eu não tenho, fora uma reputação a zelar? Daí retomei a ideia da entrevista com a Monique, e desta vez ela topou, pra minha felicidade.
 Claro que a entrevista ficou gigantesca, e terei que publicá-la em três posts. Este é o primeiro. Perguntas mais "políticas" (tudo é político!), sobre legalização da prostituição, ficaram mais pra frente, mas vamos chegar lá.

Não quero falar muito sobre a Monique porque acho que ela fala (brilhantemente) por si. Basta saber que ela atua como prostituta em Porto Alegre. Minhas perguntas estão em itálico/negrito, e as respostas dela, na fonte habitual.
Eu: Como você prefere ser chamada na sua profissão: prostituta, garota de programa, acompanhante de luxo, profissional do sexo, algum outro termo ou nenhum desses?
  Monique: Acho agradável e sonoro usar meretriz, mas sempre que preciso falar de mim, e da minha atividade, uso "prostituta". É interessante: o termo gera reações fortes, muitos amigos e amigas pedem que eu não use, por que não me veem "assim"... Não me veem como uma prostituta. O termo em si carrega um peso imenso, um tom agressivo, de modo que às vezes acabo usando "acompanhante" mesmo. Dispenso o "de luxo" por uma série de questões que abordaremos no decorrer da entrevista.
 A diversidade de termos usados para definir nosso trabalho é impressionante. Descobri, semana passada, que em alguns cantos do Paraná, por exemplo, usa-se "polaca", em referência às moças polonesas (e de outras nacionalidades) expulsas de casa e enviadas ao Brasil para a prostituição (conta-se que das moças "desonradas" tosava-se os cabelos,  pendurando-os depois num prego, e isso era tudo o que a família guardava delas depois da expulsão -- polonesas, alemãs, judias).
Essa diversidade semântica certamente não contribui para que nos vejamos como "categoria". A maioria das garotas que atua através da Internet não se vê como prostituta -- a prostituta seria aquela que exerce seu trabalho nas ruas, ou em lugares "baratos". Do mesmo modo, a prostituta de rua mantém certa distância das garotas de site, não as vê como "putas de verdade". Essa falta de entender-se como grupo, como classe, atrapalha bastante na hora de brigarmos por direitos e visibilidade.
  
Você pode me falar um pouco da sua experiência na prostituição? Como você começou, há quanto tempo, quanto você cobra?
  Comecei por curiosidade. Estagiava num escritório de importação e exportação, ganhava menos de um salário mínimo. Encontrei um anúncio por aí que me oferecia ganhos de um salário mínimo e meio diários, não tive dúvidas. Cabe ressaltar que naquele período o poder de compra do salário mínimo era ridículo e o desemprego uma dura realidade. Mas muito antes disso eu já era fascinada pelo "meio", pelas histórias que procurava conhecer, e pela ideia de sexo com desconhecidos. Hoje, posso dizer que conheço bem o meio... Ocupei vários "papéis" nele, mesmo o de cliente eventual, quando casada (algumas poucas vezes contratei mulheres acompanhantes para casal. Nunca me interessei em contratar a companhia de homens, sempre considerei desnecessário, a oferta de sexo grátis e casual para mulheres é ampla. E não creio que me sentiria bem pagando).
Estive "fora" por um bom tempo. E voltei. Por razões bastante pessoais e nem todas ligadas diretamente à necessidade financeira, voltei a atuar no ramo, desta vez de modo individual, como prostituta. "Construí" a Monique conforme meu gosto e o que achava mais adequado para o momento (2009). Teve um impacto extraordinário, surpreendente. Fazia ensaios "conceituais", amadores mas de extremo bom gosto, que passaram a ser imitados pelas colegas aqui no RS. Meu blog tinha um sucesso extraordinário, acabei "ensinando" para muita gente como tirar partido da internet em seu trabalho, indo muito além do MSN. Toda essa coisa acabou de forma muito engraçada, com o surgimento de muitas candidatas à Monique (loucura), que imaginavam que eu ganhava rios de dinheiro (vã ilusão).
No meio disso, tive muitas dúvidas sobre essa minha escolha. Quem entende o que está fazendo sabe que as coisas não são leves. Procurei ajuda na psicoterapia e, durante mais de um ano, fiquei meio que "parada", atendendo apenas a clientes conhecidos. Procurei outros caminhos, mas sentia essa jornada incompleta. Decidi por ficar "até o fim". Deste momento em diante, fiz a volta, minhas fotos atuais são as mais clichê possível, a forma como propagandeio os serviços também. Conheço a importância da Monique-personagem, mudei o ambiente da coisa -- embora isso tenha sido um "efeito colateral" não antecipado, não planejado.
Sempre tive dois interesses, o sexo e escrever, e, atualmente, procuro separar mais as coisas do que fazia no início. Para isso, passei a usar o Twitter mais como expressão do que eu penso e menos para a promoção de uma personagem.
Cobro, hoje, menos do que considero adequado, e mais do que a maioria. Rejeito a ideia de "elite" na prostituição -- é uma ideia que glamuriza o que, em verdade, não possui glamour algum. O que quer que pareça luxuoso por aqui é falso: podes frequentar bons hotéis, estar em festas chiques, acompanhar em viagens maravilhosas -- mas nada daquilo é real, nada daquilo é teu. Posso, em certo sentido, comparar isso ao trabalho da babá de uma família de milionários: ela cuida de crianças, deve educá-las, mas não pode amá-las, não pode se envolver. Tem seu conforto garantido enquanto está empregada, enquanto é útil, mas pode ser dispensada a qualquer momento. Pode desfrutar de viagens e algum luxo, mas sempre se mantém "em seu lugar". Tem uma importância ilusória, seu papel naquela história, embora pareça muitas vezes importante, é apenas coadjuvante. Nada disso lhe pertence, essa não é a sua vida.
Para desestimular quem pense em entrar no ramo com a ilusão do glamour, posso mesmo dizer que os melhores momentos, os de maior luxo, as viagens mais interessantes, fiz enquanto fora do ramo. Isso que querem nos "vender" como luxo na prostituição são, na verdade, pequenas migalhas.
 
As pessoas mais próximas a você sabem que você é prostituta? Você já sofreu algum tipo de discriminação ou risco?
Há uma certa aceitação social bem maior do que eu imaginava em princípio, mas não suficiente para que eu me exponha excessivamente... Todas as pessoas que são importantes pra mim sabem o que faço -- e é também para não acabar prejudicando essas pessoas que eu procuro me preservar. O risco existe, é constante.
 Há uma curiosidade muito grande sobre o tema também, bem maior do que em outros momentos. A impressão que me passa é que há um certo desespero em justificar determinadas atitudes da parte de algumas meninas, ou uma vontade maior de dar o passo... É preocupante. Pode parecer estranho, mas eu sinto uma certa ilusão de quem está de fora a respeito de como funcionam as coisas no mundo do sexo pago, e isso me assusta.
 Sobre discriminação, já sofri, sim. Às vezes, não percebemos, ou deixamos pra lá, mas mesmo nos motéis, que, em sua maioria, vivem da atividade das acompanhantes, somos eventualmente discriminadas e tratadas de modo grosseiro. É só um exemplo daquilo que acontece quotidianamente, mas nem quero me estender muito a esse respeito. Cansa.
 Você é muito ativa na internet, tem milhares de seguidores no Twitter, e parece se relacionar bem com todo mundo. Você não tem troll não? Não tem moralista que quer te converter? Como é isso de participar de uma rede social sendo parte de uma profissão que muitas vezes é mal vista pela sociedade?
  
O Twitter é uma plataforma muito rápida nas reações às opiniões. Tem muita gente que começa a me seguir pensando que vai encontrar algo tradicional, mulher pelada, twitcam, dancinha sexy... e encontra outra coisa. E gosta. Ou não. Por outro lado, há muitas pessoas que começam a me seguir, e interagir, que não se dão conta tão de imediato de que sou prostituta [Nota minha: conheço alguém assim!].
 A ideia da mulher bonita, autônoma e de opinião embasada é revolucionária no Brasil atual. Pode parecer loucura essa situação em pleno século XXI, mas não é. Quem dá abertura para isso é a mídia com a hiper exposição e estereotipia das loiras e popozudas, as quais não se permite que tenham conteúdo outro que não aquele esperado. Obviamente existe espaço para algo diferente aí, mas a obtusidade vigente não enxerga.
Isso me permite surpreender e fazer as coisas ao meu jeito, moldar a relação com os seguidores de um modo que seja aceitável pessoal e socialmente. É divertida, e também importante pra mim, essa interação. Foi um modo de, por assim dizer, "sair do armário". Essa minha presença virtual constante me tirou do isolamento em que estava, me fez muito bem, aprendi muita coisa. Por outro lado, só uma pessoa bastante ingênua pensaria que todos ali estão por admiração, carinho, amizade [Nota minha: também conheço pessoas assim!]...

Há muita gente que me odeia me seguindo, cuidando meus passos, ironizando minhas palavras. Aprendi com o tempo a não amplificar o grito dos trolls, nem dar grande espaço pra quem nada de bom vê em mim. Quanto ao "bullying" dos religiosos e conservadores, já foi bastante comum acordar cedo, ligar o telefone e encontrar dezenas de mensagens me ameaçando com o fogo do inferno ou me prometendo o perdão divino. Inferno e Céu, na minha visão simplista, são aqui mesmo, e o perdão divino não me interessa. Não o perdão desse deus deles, punitivo e sádico... Sei muito bem quem sou, o bem e o mal que faço, e os ignoro.

Como é fazer sexo com alguém por quem você não sente tesão? Você costuma recusar cliente se não vai com a cara dele?
 


Não faço sexo sem tesão. A ideia do "encontro às cegas", onde farei sexo com alguém a quem nunca vi, me excita. Saber que do outro lado da porta me espera alguém que, dentre as centenas de acompanhantes que anunciam em sites aqui de Porto Alegre, me escolheu e ME DESEJA, amplifica essa sensação. É meu modo particular de sentir essas coisas.
Certamente, não bate com a maneira como outras sentem... Agora, quanto a recusar atendimento por que "não fui com a cara" do cliente, considero isso inaceitável para quem tem um mínimo de consciência sobre a atividade que escolheu exercer. Lida-se muito, e talvez principalmente, com a auto-estima de PESSOAS. Seria lícito a um psicólogo recusar paciente por conta de sua aparência, por exemplo? Ou um professor recusar-se a ensinar? Não. É um compromisso que assumimos. Vejo assim.
No entanto, já recusei atendimento enquanto negociava ao telefone... Clientes que usam termos chulos, uma conversa onde fica claro que não haverá entendimento. Eu recuso. Dependendo eu trollo mesmo. Deve ser surpreendente para eles, pois não acredito que seja algo com que estejam acostumados.
  
É possível ter orgasmo com clientes? Você já fingiu? Os clientes procuram uma estrela pornô na cama? E por que tantas vezes há esse requisito de "não beijar"? Beijos são mais íntimos que sexo?
  Há uma ideia geral de que a prostituta deve abrir mão de seu prazer em detrimento do prazer do outro. Isso precisa ser combatido, não é possível que se exija ou estimule que alguém abra mão de seu prazer. Não entendo o sexo sem a busca do prazer. Sim, eu tenho orgasmo com clientes. Não tenho orgasmos em todos os encontros, mas procuro meu prazer em todos os encontros. Nunca fingi, nem pretendo.
Quanto a preferências, não se pode generalizar -- pessoas são diferentes entre si. Há quem procure garotas com performance de atriz pornô, há quem procure uma performance mais natural, há quem procure bom papo...


Quanto a beijo, não há regras, não. Isso é lenda. Tenho percebido em alguns anúncios e foruns o beijo como diferencial de mercado: as garotas mais procuradas são as que beijam. Analisando as coisas com calma, penso que essa ideia tenha tido origem no pensamento masculino, na ideia de que "beijar puta é chupar pau por tabela, ou à óbvia rejeição em beijar homens alcoolizados e de mau hálito, além de doenças respiratórias graves como a tuberculose (lembremos de como a prostituição era exercida antigamente, em lupanares ou recantos boêmios). Criou-se uma tradição, com um propósito claro. Eu não vejo, nunca vi, beijo como algo mais íntimo que sexo. Não é. 
 
Quais você diria que são as principais vantagens de atuar como prostituta? E as desvantagens?
  
Pra uma pessoa tímida como eu, agendar encontros pela internet é uma boa possibilidade de conhecer pessoas interessantes. Há quem argumente que eu poderia, então, fazê-lo de graça. Bom, eu até poderia. Mas precisaria encontrar outra forma de renda, e isso reduziria substancialmente o tempo que posso dedicar a esses encontros, assim como minha disposição. Além do mais, nenhum outro trabalho me daria a renda que me dá a prostituição. Não tenho formação alguma, começar uma carreira em qualquer área agora seria complicado pra mim... Tenho planos, estão em marcha, mas não implicam em saída imediata da atividade. Essa é minha situação pessoal, eu escolhi viver assim. Agora, isso muda de pessoa a pessoa.

Conheci muita gente nesse meio e sei que muitas escolhem essa atividade sem avaliar corretamente o peso da opção que está fazendo. Obviamente, o envolvimento com esse tipo de situação gera muitos problemas, a maior parte deles criada pelo preconceito e condenação moral, fatores quase insuperáveis. Há uma tensão constante em relação a serem "descobertas" (como se fossem criminosas), há o assédio constante das drogas, há o uso intenso de álcool como instrumento de facilitação das relações.
 No fim das contas, entra-se para ficar um período, pagar os estudos, quitar dívidas, e acaba-se ficando por muito tempo, décadas, muitas vezes. Uma minoria consegue atingir seus objetivos. A prostituição acaba sendo uma "carreira" da qual só se sai pela "aposentadoria compulsória", por conta da idade ou morte (assassinatos de prostitutas por seus companheiros não são raridade), ou pela via do casamento (não que eu acredite em casamento como caminho para felicidade, mas é o que muitas buscam).
  
Na sua experiência, por que você acha que tantos homens procuram prostitutas? Você tem uma opinião sobre boa parte dos seus clientes?
  Pra muitos, o sexo continua sendo aquela coisa misteriosa, aquele doce proibido, o prazer secreto. É algo lúdico. E tem o fetiche do sexo pago, da profissional, da propaganda, da novela, de Hollywood... Afinal, qual a racionalidade em se tomar Coca-Cola? Engordar, ficar doente? Muitas mulheres também procuram isso em acompanhantes (femininos ou masculinos). Eu entendo que esse lado lúdico do sexo deve ser estimulado nas pessoas, pode ser visto como uma terapia alternativa. Assim é com a maior parte de meus clientes.
Há também os deficientes, e os atendo com gosto, entendo sexo como uma necessidade básica, e é inegável a dificuldade que tem um deficiente para ter sexo com quem entende suas necessidades e limitações, e lide bem com elas. Há os que considerem essa fugidinha como "a única contravenção possível" em um mundo onde são constantemente cobrados. E há os que querem apenas conversar -- muitos entendem a prostituta como uma psicoterapeuta e eu, nesses casos, recomendo que procurem um analista, não gosto dessa "mistura de funções", não me considero apta. Nem interessada... Mas existem meninas que preferem o cliente falante e perguntador, preferem matar o tempo do programa com conversa ao sexo em si.
 
Muita gente diz que prostituta vende o corpo, o que parece uma afirmação realmente exagerada, já que o corpo continua sendo seu. Outras pessoas corrigem e dizem que é o "aluguel" do corpo. Mas você afirma, no excelente post que escreveu, que você não aluga seu corpo, e sim seu tempo. Você poderia falar mais sobre essa distinção? E você acha que a maior parte dos seus clientes faz essa distinção?
  
Consideramos, por evidente, que todo o trabalhador aluga seu tempo e sua força de trabalho. Temos uma visão diferente em relação à prostituta. E por quê? Porque ainda temos uma visão romântica do sexo, do despir-se, do encontro. Porque ainda temos aquela visão arcaica, que eu combato incessantemente, de que a prostituta deve abrir mão de seu prazer, de seu desejo, em detrimento do desejo do outro. Mas eu vejo a cada dia mais acompanhantes dizendo não àquilo que não desejam, enquanto percebo que mulheres que não fazem sexo pago cedem cada vez mais em suas relações, estáveis ou casuais, para agradar ao parceiro.


Transito pelos dois meios, recebo relatos todos os dias, e sei bem do que estou falando. É falha, portanto, a ideia de quem contrata uma prostituta está comprando um corpo e dele pode dispor como quiser. Para isso, existem (e não estou ironizando) as bonecas infláveis e, sim, há gente que as compra. Há um mercado em franca ascensão de bonecas cada vez mais realísticas. Deste modo, posso dizer que talvez nem todo o homem que contrata uma prostituta saiba exatamente o que quer, e aos clientes que ainda insistem na ideia de que a prostituta vende o corpo eu recomendo enfaticamente que comprem uma boneca dessas. Embora o investimento inicial seja bem maior, vão servir-lhes para uma vida toda. Vida, a do comprador, sejamos claros. Mulheres de plástico não morrem.

Ainda sobre a ideia de alugar o tempo, lembro que todos os encontros têm sua duração pré-determinada e que, no meu caso, não ultrapasso as duas horas jamais. Também sou constantemente convidada para almoços, jantares, cafés, viagens, shopping... Eu cobro por isso, a não ser nas raras oportunidades em que eu mesma convido.
 Essa é a maior ilusão na qual caem as prostitutas menos conscientes, a de que irão receber vantagens dos clientes. Muitas confusões desnecessárias começam assim, para os dois lados. Prostitutas, cobrem sempre, que a "paixão" por vocês diminui rapidinho. É uma maneira de se preservar, em realidade.
 
Você se assume feminista, certo? Você vê contradições em ser feminista e ser prostituta, ou você não vê a exploração do corpo da mulher como uma das características da prostituição? Ou você vê a prostituição como algo empoderador pra mulher?
  
Sim, sou prostituta e feminista. Não vejo a prostituição como a exploração do corpo da mulher, e isso já está claro na resposta anterior. A publicidade é a exploração do (não apenas) corpo feminino para fins comerciais, não a prostituição. Sim, é verdade que transito em um meio extremamente machista, e enfrento muitas dificuldades por tentar impor meu modo de pensar -- perseguições veladas ou nem tanto em foruns que tratam do assunto, por exemplo. Não é uma situação fácil, não. Assim como não é fácil convencermos os homens a dividir tarefas, e, no entanto, não desistimos da ideia do casamento.

A consciência quanto ao feminismo veio das redes sociais: comecei a ler sobre o assunto e perceber que minhas posições e ideias eram claramente feministas. O passo seguinte, assumir meu feminismo, foi algo bastante complicado. Sentia receio da rejeição dentro do movimento. Em muitos aspectos, tenho visto que nós, prostitutas, enquanto categoria, vivemos em uma espécie de limbo: exploradas, subjugadas pelos homens e rejeitadas pelas mulheres -- feministas ou não. É necessário quebrar essa barreira. Precisamos abrir espaço para falar de direitos a quem nem sabe que tem direitos. Não considero a prostituição como algo empoderador da mulher, considero o feminismo como algo empoderador da prostituta enquanto mulher.

Como você sabe, há muita divergência dentro do feminismo em relação à prostituição. Algumas feministas crêem que a prostituição é uma profissão como outra qualquer; outras, que é exploração. Essas últimas geralmente são chamadas de "abolicionistas".
 Sei que a crítica das prostitutas às feministas abolicionistas é que elas veem vocês como vítimas, não como agentes das suas próprias escolhas. Por outro lado, a prostituição está ligada à exploração e ao abuso infantil e ao tráfico de pessoas. Pode-se dizer que a questão da escolha é muito relativa para inúmeras mulheres, principalmente as menores de idade e as que estão em situação de miséria. Quais são seus sentimentos em relação a isso?
  
A questão da escolha, em todas as profissões, é algo muito relativo. Quem, em sã consciência, pode dizer que uma menina em situação de miséria tenha feito uma boa escolha ao sair de sua casa para trabalhar em casa de família na cidade grande, longe de seus pais e sujeita a todo o tipo de abuso? A prostituição está ligada à exploração, ao abuso infantil e ao tráfico humano, mas há muitas outras atividades ligadas a isso. E são esses crimes que devem ser combatidos e punidos, não as atividades extintas. Ninguém pensaria em erradicar o trabalho das costureiras, muito embora saibamos que a escravidão sustenta, torna possível, a existência de muitas das confecções em atividade no mundo hoje.
 Quanto ao abuso infantil, ele ocorre sob nossos olhos, diuturnamente, sem que seja necessariamente ligado à prostituição. É sabido que os abusadores são, em sua maioria, pessoas de confiança da criança e da família. Então, os argumentos apresentados não são, por si, suficientes para que eu consiga me posicionar contra a prostituição. Principalmente, levo em conta o fato de que, ao nos posicionarmos contra a prostituição, acabamos por nos posicionar contra a mulher prostituta, segregando, discriminando, reforçando a situação de limbo, de gueto.
 É imprescindível a reinserção da prostituta, da mulher prostituída, na sociedade, e isso não se dá quando condenamos sua forma de sustento, sua atividade, quando, de certo modo, a culpamos por sua "vida pecaminosa". Esse posicionamento só colabora para que elas se afastem mais e mais das "pessoas de vida digna". E quem sou eu, quem é você, pra julgar a dignidade do meu semelhante, sua sinceridade de princípios, sua índole?
Em resumo, a exploração tem que ser combatida sempre, a utopia de uma sociedade sem explorados têm de ser perseguida sempre, mas não acredito que a negação da realidade seja um bom caminho rumo a esses objetivos.

No Brasil, a prostituição não é crime. Mas explorar a prostituição, é. Portanto, prostíbulos são ilegais. Como o projeto do deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), que propõe a regulamentação da prostituição, afetaria a sua vida? Você pode falar um pouco sobre o que acha do projeto?
  
Enquanto prostituta independente, o projeto do deputado Jean não afeta em nada a minha vida. O projeto é positivo justamente por que afeta diretamente a vida das prostitutas que atuam em outros nichos, menos favorecidos, pois determina claramente o papel das casas de prostituição, estabelece limites, define direitos para as trabalhadoras. Os prostíbulos, queiramos ou não, estão aí, em plena atividade. Ainda que fossem verdadeiramente proibidos, o que, na prática, não acontece, funcionariam na clandestinidade, criando suas próprias regras, fugindo à fiscalização. Toda a semana, recebo emails e telefonemas de meninas com interesse de trabalhar "para mim", de modo que entendo ser a mão-de-obra farta para este tipo de trabalho. Dispenso-as, não tenho interesse em agenciar, mas não posso negar que ainda seja procurada para este fim.


Durante muito tempo, entendia que mulheres procuravam pela prostituição como último recurso, devido ao desemprego. Em época de pleno emprego, o que percebo é o fenômeno oposto: os sites de anúncios estão lotados, as agências funcionam a pleno vapor e, em visita recente a algumas casas do ramo, percebo um bom aumento no número de mulheres dispostas a atuar no ramo. Também sei dos abusos e por isso defendo a regulamentação. Elas terão um instrumento mais efetivo, embora não perfeito, contra a exploração.
  Algumas feministas criticam que o projeto do deputado não prevê melhorias pras prostitutas, apenas “visa suprir uma necessidade da indústria sexual, que juntamente com as grandes corporações, buscam utilizar o corpo das mulheres para faturar altos montantes em grandes eventos como a Copa do Mundo." Como você rebateria essas críticas?

O projeto, a partir do momento em que define o que seria "exploração", já prevê melhorias. Hoje em dia não há percentual definido e as casas cobram o que bem entendem, estabelecem "multas" absurdas para as trabalhadoras e, em muitos locais, sequer a função da prostituta fica bem estabelecida, sendo muitas responsáveis inclusive pela limpeza do ambiente e pela reposição do material de trabalho (preservativos, lubrificantes, sabonetes).
  
Você tem contato com outras prostitutas? Há muita competitividade, ou há bastante cooperação entre as prostitutas? Você participaria de uma cooperativa?  
 Tenho contato com outras prostitutas, sim, procuro ter. Tenho amigas, tenho carinho verdadeiro por muitas dessas meninas de quem acabo por conhecer a luta, os sonhos, a vida... conheço muita gente! A competitividade nesta atividade é tão forte quanto na maioria das outras. A cooperação é pouca e sei que sou mal vista por muitas colegas por minhas tentativas de interação, e mesmo por falar tanto e tão abertamente do assunto. Mas já chegamos a obter avanços, já chegamos a conseguir manter por curto período um forum próprio, nosso, para nossa proteção...
 Parei de agitar esse espaço por falta de tempo e necessidade de cuidar da minha própria agenda. E, não nego, por receios diversos e bem reais. Chegamos a ser, aqui em Porto Alegre, acusadas de "formação de cartel" e de estarmos nos organizando mais do que os homens clientes -- ainda que nossa organização fosse incipiente, não tivesse mais do que alguns meses, a organização fosse pouca e tenha se dado dentre um número bem restrito de acompanhantes.

A reação machista foi impressionante: eu tirei uma semana de férias, começo de 2011, e, na volta, algumas colegas apavoradas me procuravam por medo, já que tinham sido ameaçadas por MSN de processo judicial (!) por conta de termos aumentado o valor do cachê. A ideia era de que teríamos nos combinado e isso daria aos clientes direito de reclamar ao CADE, de que estávamos cometendo crime contra a economia.
 Absurdo, mas as moças pouco sabiam de leis, e precisei acalmá-las. A cópia que me enviaram das conversas era assustadora e dava uma boa medida do quanto, e de como, há interesse em manipulá-las, manipular-nos, de modo vil. Não bastaria a quem tenha ficado insatisfeito com o aumento contratar outra acompanhante? Era necessário amedrontá-las? Que perigo, verdadeiramente, representamos? Que risco se corre quando prostitutas se organizam para sua defesa, sua proteção? A que forças estamos ameaçando?
  


A Suécia adota, desde 2009, medidas que punem a exploração da prostituição e o cliente. Esse modelo também existe na Noruega e na Islândia, e é um dos assuntos do momento na França, já que a ministra dos Direitos das Mulheres anunciou querer abolir a prostituição. Com o projeto do deputado, o Brasil não estaria indo na contramão desses países mais preocupados com os direitos humanos? Pra você, querer erradicar a prostituição seria uma utopia? Como você veria um mundo sem que as pessoas trocassem sexo por dinheiro?
  
Bom, não há dúvidas de que a Suécia é um país muito mais avançado do que o Brasil no que tange aos direitos dos trabalhadores. Mas a realidade sueca EM GERAL é distinta da nossa. A proteção social, os salários, os impostos, vamos copiar a Suécia em tudo então (óbvio que é brincadeira, pois todos sabemos que as coisas não funcionam assim e que vimos avançando muito recentemente). O que vale para eles não necessariamente vale para nós no contexto atual. Além do mais, prostituição e tráfico humano estão intrinsecamente ligados na Suécia. É a estrangeira que sai de seu país para se prostituir na Suécia -- muitas vezes sem sequer falar a língua local.
 Num mundo ideal, talvez as pessoas não trocassem sexo, cuidados médicos ou mesmo conhecimento por dinheiro. São necessidades humanas essenciais... Esse não é o mundo em que vivemos, mas isso não me impede de sonhar com ele.


Entretanto, não há imoralidade em trocar sexo por dinheiro. Precisamos parar de ver o sexo exclusivamente sob esta ótica romântica e conservadora. Sexo e romantismo, sexo e envolvimento, nem sempre estão ligados. Eu entendo assim. E esse entendimento me leva a crer que é possível que a prostituição como a vemos, como a temos hoje, possa estar com os dias contados. É possível lutar por essa outra visão, em que a profissional do sexo deixe de ser vista como um ser pernicioso, e entenda-se sua função como, quem sabe, verdadeiramente, uma espécie de terapeuta que auxilia na descoberta e na relação de cada um com sua sexualidade. Em época de "personal qualquer coisa" nem se trata de uma ideia muito revolucionária. Claro que isso exigiria maior preparo e profissionalismo...
 Por outro lado, olhando as coisas sem a ótica da utopia, com olhos de hoje: dá pra imaginar algum homem sendo perseguido no Brasil por conta de contratar os serviços de uma prostituta? E alguma prostituta desistindo da atividade por conta de lei desta natureza? Eu, sinceramente, considero absurda, na prática, a ideia difundida pela mídia romântica de que só existe traficante por conta da existência de drogados eventuais, um paralelo possível e mais conhecido dentre nós. Essa é uma maneira escapista e ingênua de racionalizar as coisas, fugindo do debate essencial, fingindo que estamos nos preocupando e fazendo algo para mudar a realidade que nos incomoda sem ir ao âmago das questões.

Fonte: http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br

Nenhum comentário: