sexta-feira, 31 de agosto de 2012

"A dor e o estigma da puta pobre" por Patricia Mattos



A segunda palestra do Seminário organizado pela Pastoral da Mulher de Belo Horizonte foi a cargo da Dra. Patrícia Mattos. Ela  é professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e coordenadora da Pós-Graduação em História. Coordena o Núcleo de Estudos de Gênero (NEGE/UFSJ).
"A profissão de prostituta não é, na maioria dos casos, uma escolha propriamente dita dessas mulheres. Essa escolha, como diz Pierre Bordieu, é apenas aparente, constituindo-se, na verdade, em uma “escolha pré-escolhida”, na qual as prostitutas são inclinadas a orientar suas condutas a partir de alternativas previamente definidas pelo contexto de vulnerabilidade e precariedade do universo familiar."


Reproduzimos aqui o artigo que elaborou para o Jornal “O Grito Mulher” com motivo deste evento comemorativo dos XXX anos da Pastoral da Mulher de BH
Provavelmente, não existe tema mais perpassado por estigmas, enganos e preconceitos do que o tema da prostituição. Ao mesmo tempo em que é repulsiva, também é fascinante. A figura da prostituta fascina por ser a promessa de intensidade sexual e satisfação imediata e ilimitada do desejo masculino. Com ela, a separação entre ativo e passivo, entre sujeito desejante e objeto de desejo, que está por trás da construção social das subjetividades masculina e feminina, fica manifesta.  É por isso que o estigma social contra a prostituta expresse, de modo aberto porque estigmatizado, toda uma violência simbólica dirigida, de modo velado e nunca admitido, às mulheres como um todo. Enquanto os homens da ralé, quando taxados de “delinquentes”, são sempre “ativos” (ladrões, bandidos, traficantes), isto é, praticam as ações criminosas como sujeitos de sua própria vontade, a designação mais comum  de delinquência feminina está ligada à passividade, à utilização de seu corpo para servir à vontade de outrem. O homem delinquente é, ainda que de forma ambígua, reconhecido em seu meio como viril, forte, corajoso, destemido, enfim, como detentor de todas as virtudes ligadas a um “código de honra”, enquanto a mulher delinquente é vista e julgada apenas de maneira negativa como “mulher de vida fácil”.
    O desafio a que me proponho é mostrar como essa tensão é vivida pelas próprias prostitutas, isto é, como as condições materiais e sociais precárias de existência constroem subjetividades precarizadas, com baixa autoconfiança e autoestima, que irão cumprir o seu destino inexorável de viver uma vida “sem saída, sem reconhecimento social”. O que se procurará deixar evidente, ao contrário do que pretende as abordagens “politicamente corretas” sobre o assunto, é que a profissão de prostituta não é, na maioria dos casos, uma escolha propriamente dita dessas mulheres. Essa escolha, como diz Pierre Bordieu, é apenas aparente, constituindo-se, na verdade, em uma “escolha pré-escolhida”, na qual as prostitutas são inclinadas a orientar suas condutas a partir de alternativas previamente definidas pelo contexto de vulnerabilidade e precariedade do universo familiar.
     O que há de comum na história de vida das mulheres entrevistadas é um tipo de socialização familiar disruptivo, que irá impedir a transmissão afetiva de valores como disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo, num contexto familiar marcado pela ausência da figura paterna e pela presença de relações instrumentais de todo tipo, a começar pela frequência e naturalização de abusos sexuais sofridos na infância por essas mulheres. Além da carência, em qualquer medida significativa, de conhecimento resultante de um capital escolar incorporado, essas mulheres em sua infância nunca foram percebidas como “um fim em si mesmas”, como crianças com desejos, sentimentos, aspirações, medos e angústias que necessitavam de cuidado, proteção e afeto. Será essa falta de “segurança afetiva” que irá produzir um exército de “perdedoras”, sem qualquer chance na competição social por recursos escassos. Essa falta de uma “economia emocional” marcada pelo autocontrole não produz apenas pessoas banidas da função de trabalhadoras úteis, que constitui a base do reconhecimento intersubjetivo da dignidade, mas também impossibilitada de desenvolver uma dimensão expressiva de sua existência, para além dos clichês sociais, dos modelos sociais que chegam a elas como “modelos prontos”, prêt-à-porter.   
         Flávia e Marluce são dois tipos-ideais dentre dezenas de prostitutas entrevistadas por mim no Rio de Janeiro entre 2006 e 2008. O tipo ideal, como nos ensina Marx Weber, é a seleção dos aspectos mais característicos de um papel social de modo a enfatizar os aspectos essenciais e a descartar os secundários.
        Flávia acostumou-se a transformar, como diz Bordieu, “necessidade em virtude”. É seu pai que a abandonou e não a procura, e ela diz que é ela que não tem vontade de procurá-lo atualmente, que não vê razão para isso. Desde pequena teve a necessidade de se “virar” sozinha, não podendo contar com ninguém a não ser com ela mesma, e hoje, afirma não precisar de ninguém como se isso fosse uma escolha sua, uma qualidade ligada à firmeza de seu caráter. A “dureza” fruto do abandono e do descuido se transforma em autonomia, em virtude moral.
        É com naturalidade que Flávia introduz o tema da experiência de abuso sexual sofrida por ela dos 8 aos 10 anos, período em que sua mãe  e ela moraram na casa de uma tia, irmã de sua mãe, com o marido desta e sua filha recém-nascida. Seu tio foi o seu abusador durante esse tempo.
       Flávia sabia intuitivamente que sua mãe não a protegeria caso soubesse do abuso. Um acontecimento como esse, longe de ser inesperado e surpreendente para sua mãe, parece ser comum, um destino natural dessa classe desde tempos imemoriais. Isso constitui, assim, o enredo de uma história que se repete, que passa de mãe pra filha como um legado, na qual as mulheres desde  muito cedo aprendem efetivamente que devem ser instrumentos para vontade sexual de outrem, primeiramente e, acima de tudo na dimensão sexual.
       Dando lastro a essa hipótese, é na estrutura familiar que se inicia o aprendizado da instrumentalização de si mesma, do seu corpo e de todos os seus desejos e projetos e, por consequência, a instrumentalização dos outros, que constitui uma das principais disposições de Flávia.
         A justificativa econômica para a “escolha” da profissão será dada por grande parte das prostitutas entrevistadas. E, mais uma vez, a dimensão econômica das desigualdades sociais serve para recalcar, inclusive na perspectiva da vítima, toda a gênese das condições sociais e modos de vida que produzem o desvalor social atribuído e vivido pelas prostitutas. O que fica de fora desse tipo de explicação é exatamente o drama moral e existencial vivido desde a mais tenra idade por essas mulheres.
       Marluce não se engana em relação à sua família. É com um realismo surpreendente que revela sua dor pela falta de amor e cuidado na infância.
        Comenta procurar ser aberta ao diálogo e disciplinadora com seus filhos, aplicando-lhes castigos, quando é preciso, ao contrário de sua mãe, cujos ensinamentos restringiam-se a tarefas domésticas e a frases vazias de sentido. Seus esforços se concentravam na propagação de uma espécie de “ética negativa” da sexualidade- “se você der, eu vou te colocar na rua”.
       Sem jamais poder articular conscientemente a situação da mulher da ralé, mas sentindo os efeitos da vulnerabilidade feminina nesse meio, onde, como disse uma informante, “mulher sozinha é toco de cachorro mijar”, sua mãe intui que a única chance de uma mulher ter um homem ao seu lado é a tática da “preservação” do corpo. A sexualidade para as meninas da ralé constitui um jogo de “vida ou morte”, em que seu “bem” mais desejado, seu corpo, ao ser tocado, desvaloriza sua dona, reduzindo-a a um “pedaço de carne”, como várias outras do mercado sexual.
      É no trabalho como faxineira na Prefeitura do Rio de Janeiro que Marluce irá sentir a linha tênue que separa uma trabalhadora “honesta” de uma prostituta. Além de fazer o seu trabalho duro de faxineira, ela ainda tinha que “atender sexualmente” seus superiores. Na medida em que o tempo foi passando e esse tipo de medida tornou-se recorrente em sua vida, Marluce então se decidiu pela prostituição aberta. Aqui se coloca, possivelmente, o principal drama oculto, o “não dito” vivido pelas mulheres da ralé em geral – a probabilidade de serem exploradas não só com “massa muscular” para serviços pesados, mas também para fins sexuais não só dos homens de sua própria classe, mas de outra classe social. No fundo, não existe uma fronteira tão clara entre a mulher “pobre e honesta” e a pobre “pobre e delinquente”, como as mulheres dessa primeira categoria tentam, de maneira compreensível, desesperada demarcar.
O entrelaçamento da trajetória de Flávia e Marluce se dá, uma vez que ambas são presas da ideologia da meritocrática que faz com que elas próprias imagem a “queda” na prostituição como uma escolha. Na verdade, ela é produto de uma socialização familiar de classe que transforma as mulheres, antes de tudo, em instrumentos do desejo masculino, ainda que só algumas delas possam vender o seu corpo com sucesso no mercado sexual.
Não perceber essa construção social é não perceber a gênese e o destino comum de toda essa classe explorada como corpo, da qual a prostituta é a metáfora perfeita.

 

 

 

     

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