quarta-feira, 16 de março de 2016

O que as feministas da periferia podem ensinar à luta das mulheres

Flaviane Silva (Coletivo Troca Entre Manas)
Em 2015 houve uma explosão feminista dentro do Brasil que ficou marcada como a Primavera das Mulheres. As redes sociais foram tomadas por hashtags, como #PrimeiroAssédio, #AgoraÉQueSãoElas e #MeuAmigoSecreto, que denunciaram diversos tipos de violência contra a mulher. 


O feminismo e o debate sobre a desigualdade de gênero ganharam força dentro da mídia, em publicidades mais inclusivas, em mudanças na linha editoral de grandes revistas, em discursos do Oscar, em músicas de cantoras pop famosas. Dentro das faculdades e de colégios coletivos feministas se formaram ou se fortaleceram.

Mas esse feminismo que foi e continua sendo pautado pela mídia abrange, de fato, todas as mulheres?

Em busca de responder a essa questão, o HuffPost Brasil entrevistou mulheres das periferias de São Paulo e Rio de Janeiro para entender como elas militam, enxergam e exercem o feminismo em suas vidas.

Representatividade

"Vivemos um momento muito importante, pois a questão de gênero está sendo evidenciada em muitos cantos. É a voz da mulher tomando capas das revistas, o noticiário. Mas é importante pensar como isso tudo está chegando às mulheres negras da periferia. Nossa preocupação é a inclusão dessa mulher no debate, muitas das nossas não são letradas, não têm acesso à internet (a net chegou em minha casa apenas em 2012, só em 2007 eu tive computador em casa), essa mulher é também a mais afetada pelas políticas públicas destinadas ao público feminino, como a questão da reprodução. Não temos hospitais em bairros onde há muito mais de 200 mil habitantes. Como assegurar direitos a essa mulher? Não temos creches para seus filhos. Como ela pode sair para trabalhar? Não temos ruas com iluminação. Como ela pode se sentir segura?"
Jéssica Moreira, 24 anos, Perus, SP (Coletivo Nós, Mulheres da Periferia)



"Eu tenho visto toda essa movimentação feminista na rede, e meio que me deixa feliz e triste ao mesmo tempo. Feliz por estarem propagando nossas idéias e triste pois muitas vezes a fala das manas é acadêmica demais, não contemplando a mulher da favela, que tem suas especificidades e muitas vezes não tá na facul. Sinceramente as mulheres feministas que me representam são mulheres negras e periféricas, e geralmente elas não estão na mídia. Sobre discursos do Oscar, eu, como muitas, acordo muito cedo para fazer minhas coisas (5h20 da manhã), na hora que passa o Oscar eu já estou no terceiro sono porque preciso fazer meu corre pela manhã."
Flaviane Silva, 18 anos, Periferia da Caixa D'água, Niterói, RJ


Recortes dentro da Luta

"Nosso feminismo tem um recorte: a luta da mulher branca burguesa não é a mesma luta da mulher negra e de periferia. A minha mãe trabalha desde que eu me entendo por gente e eu cuido da minha irmã desde os meus nove anos de idade. E isso não é uma coisa que uma menina branca burguesa normalmente passa. Aos 9 anos ela está onde? Na natação, no balé e sendo cuidada pela minha mãe... Cuidada por mulheres negras de periferia. Nesse sentido a gente busca sempre conversar com as meninas periféricas para pensar o reflexo que o período da escravidão trouxe pra gente até hoje. Nossas mães, que são mulheres negras, periféricas, lutadoras, mulheres que estão na luta, estão ainda ocupando este lugar de cuidar dos filhos da mulher branca para que a mulher branca possa militar, por exemplo."
Elânia Francisca, 31 anos, Grajaú, SP

 Elânia Francisca

"O feminismo como é conhecido e difundido pela sociedade não se aproxima em sua totalidade do feminismo periférico, pois nós temos lutas diferentes oriundas de quem vive na periferia. O tipo de feminismo que lutamos é aquele que compreende nossas dores, nossas necessidades e reconhece a violência que sofremos na periferia. O feminismo da mulher branca é diferente do da mulher preta, assim como existe diferença de luta entre outras vertentes do feminismo e do feminismo periférico. Portanto o feminismo acadêmico não me completa, pois ele não entende minhas dificuldades e não estuda minhas lutas, pois ela muitas vezes ou não está nos livros da Academia, ou está nos livro que a Academia não lê."
Aline Juliano, 20 anos, Grajaú, SP



Reconhecer-se enquanto feminista

"Feministas todas nós somos e, em nosso caso, já éramos, antes mesmo da palavra. E nossas mães e avós, diaristas, babás, também já eram. E as mulheres que vivem ao nosso redor, utilizam o transporte público todos os dias, não possuem sistema público de saúde de qualidade e lutam por creches? Também já são feministas, pela garra que apresentam ter dada as diversidades e desigualdades presentes em nossas periferias. Somos feministas na tentativa de ir contra a maré disso tudo e passar na universidade (voltar de madrugada para casa e sair praticamente no mesmo dia). Somos feministas há muito tempo."
Jéssica Moreira, 24 anos, Perus, SP (Coletivo Nós, Mulheres da Periferia)


Aline Juliano

"Eu conheci o feminismo através de mim mesma refletindo minha vida e dificuldades como mulher negra. Não consigo saber um dia ou uma hora que me tornei feminista. Me considero feminista pelo fato de militar, no meu cotidiano, contra os pequenos machismos, a fim de conseguir meu espaço e respeito na sociedade como mulher preta, algo que sabemos ser extremamente difícil... Me considero feminista porque luto para sobreviver em uma sociedade que me exclui a todo momento e principalmente por ser mulher, acima do peso, preta e periférica."
Aline Juliano, 20 anos, Grajaú, SP


A importância do feminismo dentro da Periferia

"O território periférico é marcado por forte machismo aliado a uma falta de direitos a serviços básicos que chega a ser inacreditável. Muitas vezes, não há luz na rua por onde andamos. Temos medo, o estupro ronda nossa mente e coração. Não à toa, já que a violência contra a mulher preta, da periferia, sobe em níveis alarmantes. A violência doméstica, mais uma vez aliada à questão econômica e social, encarcera em suas próprias casas muitas mulheres. Não há serviço social suficiente nas periferias. Dito tudo isso, sim, é muito importante acolher, ouvir, dar apoio às mulheres da periferia. É nessa forma de exercer o feminismo que nós acreditamos. Pois cada mulher vai trazer sua bagagem de vida, de conceitos, de questões e contradições que precisam ser levadas em conta. Não é simplesmente levar o feminismo para a periferia, mas sim viver junto às mulheres, ter empatia às suas histórias e narrativas, muito mais que levar a teoria feminista , apontando em cartilha como deve ser uma feminista."
Jéssica Moreira, 24 anos, Perus, SP (Coletivo Nós, Mulheres da Periferia)


Coletivo Nós, Mulheres da Periferia

Modo de organizar a militância

"A militância de internet não é o suficiente, hoje as redes sociais têm um papel importante, porém não pode ser seu único espaço de ação. Eu milito dentro de escolas da periferia, tanto na questão do feminismo como do racismo, e a Fernanda Gomes atua na ocupação de moradia do Brás e no coletivo NegraSó da PUC. Mas nós sempre estamos auxiliando outros projetos de nossas amigas, estamos batalhando no dia a dia, ajudamos uma amiga aqui outra ali... São ações pequenas mas que para o indivíduo é extremamente importante; a militância se dá também em pequenas ações e todos os dias."

Ane Sarinara, Osasco, SP (Página Feminismo Periférico)


"O jornalismo é a ferramenta que escolhemos para dar voz às mulheres que nunca são ouvidas pela mídia e, quando são, é de forma sensacionalista ou sexista. Além disso, temos como objetivo pautar a grande imprensa, servindo de ponte entre a mídia e as mulheres não ouvidas da periferia. Pretendemos contribuir para o empoderamento das mulheres moradoras da periferia de São Paulo, promovendo espaços de reflexão, debate, informação, troca de conhecimento, experiências e visibilidade sobre seus protagonismos, histórias e dilemas."
Jéssica Moreira, 20 anos, Perus, SP (Coletivo Nós, Mulheres da Periferia)


 Ane Sarinara

"A gente vai pra rua, pra internet, pra onde for pra tentar desconstruir, mostrar que nós queremos e devemos ter nossos direitos garantidos, para deixarmos de morrer na mão de macho, tanto marido, conhecido, desconhecido, estuprador e polícia. Porque na periferia a gente tem medo de morrer na mão da polícia, além de tudo."

Flaviane Silva, 18 anos, Periferia da Caixa D'água, Niterói, RJ



Fonte: Brasil Post

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