quarta-feira, 2 de março de 2016

Guatemaltecas submetidas à escravidão sexual clamam por justiça

 Vítimas de estupro e escravidão sexual cobrem o rosto durante o julgamento com medo de represálias.

Em 1998, o Projeto lnterdiocesano REMHI (Recuperação da Memória Histórica) investigou o ocorrido durante o conflito armado interno que sacudiu a Guatemala por mais de 40 anos. O informe final "Guatemala: nunca mais”, que esteve a cargo do então bispo e diretor do Escritório de Direitos Humanos do Arcebispado da Guatemala (ODHAG), Juan José Gerardi, calcula que entre 1954 e 1996 aproximadamente 150 mil guatemaltecos foram executados extrajudicialmente e mais 50 mil foram desaparecidos de maneira forçada.



Mais de 600 massacres e 440 comunidades Maya exterminadas deixaram como sequela 1 milhão de exilados e refugiados, 200 mil órfãos e 40 mil viúvas. Nove de cada 10 vítimas eram civils desarmados, em sua maioria indígenas.

Em suas conclusões, o informe evidenciou também que pelo menos 60 por cento das mais de 55 mil violações aos direitos humanos cometidas contra a população foi responsabilidade direta do Exército. Dois dias depois da apresentação, em 24 de abril de 1998, monsenhor Gerardi foi brutalmente assassinado.

A história da comunidade de Sepur Zarco, das suas mulheres valentes, dos horrores que tiveram que viver, mas também da sua incontida sede de justiça e exigência de reparação, é marcada, então, em um contexto que o sociólogo Carlos Figueroa Ibarra definiu como "o maior genocídio que se observou na América contemporânea”.

Um contexto cujas raízes estão firmemente incrustadas em um sistema de dominação patriarcal, em que "a violência sexual goza de legitimidade social e é uma ferramenta de sustentação de tal modelo”, explica a Aliança Rompendo o Silêncio e a Impunidade.

Durante o conflito armado interno, esse delito se exacerbou e se instrumentalizou como arma de guerra. "A violência sexual foi utilizada de forma generalizada, massiva e sistemática, como parte da política contrainsurgente do Estado, e constitui um delito de lesa humanidade, crime de guerra e elemento constitutivo de genocídio”, afirma a Comissão para o Esclarecimento Histórico, em seu informe "Guatemala: Memória do Silêncio”.

A Aliança assinala que a violência sexual segue impregnando a sociedade guatemalteca, mesmo que se mantenha invisibilizada como crime de lesa humanidade, e é normalizada socialmente.

A cada ano são registradas mais de 50 mil denúncias por violência contra as mulheres (uma média de 142 denúncias diárias), 15 mil gravidezes de meninas menores de 14 anos e mais de 600 feminicídios.

Estes dados se somam ao elevado nível de impunidade (em 2014, tão só 243 casos tiveram sentença), projetam a Guatemala como o país centro-americano mais afetado pela epidemia de violência contra as mulheres.

As mulheres de Sepur Zarco: olhando nos olhos, sem titubear

Na Sala de Vista da Corte Suprema de Justiça, vítimas e vitimadores estão frente a frente. 15 mulheres valentes do povo originário maya Q’eqchi’ derrotam fantasmas e decidiram percorrer o caminho rumo à verdade e à justiça.

Com o rosto quase totalmente coberto com mantas, como medida de segurança, as mulheres permaneciam imóveis, olhando seus carrascos, com uma paciência infinita, escutando com atenção cada palavra que se pronunciava na sala e que a tradutora, sentada ao lado delas, traduzia em seu idioma ancestral.

Sempre como medida de segurança e para evitar a revitimização, as mulheres declararam em audiência de antecipação de prova. Contaram ante os juízes os horrores vividos, as humilhações e as violências sofridas, iniciando assim o difícil caminho para a verdade.

Em 1982, um dos tantos destacamentos militares organizados pela política contrainsurgente do Estado guatemalteco se instalou na comunidade de Sepur Zarco, no nordeste do país.

"A comunidade tinha iniciado os trâmites para a legalização das terras, e isto foi motivo suficiente para que os militares capturassem e desaparecessem com os homens, por considerá-los insurgentes. Ao ficarem viúvas, as esposas dos tais homens foram consideradas ‘mulheres sozinhas e, portanto, disponíveis’. Foram submetidas à escravidão doméstica, violência sexual e escravidão sexual”, denuncia a Aliança.

O horror dos abusos se prolongou durante mais de seis meses e marcou suas vidas para sempre.

Foi até 2011, após participar do Tribunal de Consciência contra a Violência Sexual de Mulheres durante o Conflito Armado Interno (2010), que 15 mulheres q’eqchies’ decidiram romper o silêncio e apresentar uma querela penal pelos abusos sofridos. Várias organizações acompanharam e continuam respaldando este esforço extraordinário.

"É o primeiro caso apresentado ante órgãos jurisdicionais nacionais por delitos de transcendência internacional contra mulheres. É um caso emblemático de mulheres que romperam o silêncio e querem demonstrar que sim, é possível buscar a justiça”, disse à Rel, Felipe Sarti Castañeda, representante legal da Equipe Comunitária de Ação Psicossocial (Ecap).

Ex-militares acusados por estupro e escravidão sexual contra mulheres guatemaltecas.
"É uma luta por todas aquelas mulheres da Guatemala que durante o conflito armado interno sofreram graves violências. Temos que recordar para ir sentando as bases para que nunca volte a se repetir”, acrescentou o também psicólogo do Ecap.

"A violência sexual em nosso país foi uma estratégia militar contrainsurgente, e foi utilizada para o controle dos corpos e dos territórios. O Estado terá que responder pelos crimes cometidos no marco dessa estratégia”, indicou Ada Valenzuela, presidenta da União Nacional de Mulheres Guatemaltecas (UNAMG).

"No caso das mulheres de Sepur Zarco, estamos colocando na mesa um tema que é muito atual para a sociedade guatemalteca”, disse à Rel Paula Barrios, diretora das Mulheres Transformando o Mundo.

"Julgar a violência e a escravidão sexual pode sentar um precedente histórico para o país, ao mesmo tempo em que estará conceitualizando e configurando esses tipos penais no marco dos crimes de guerra. Há centenas de mulheres que sofreram o mesmo horror e que merecem justiça e reparação”, assegurou.

De violadores a torturadores: perseguir todos os culpados

O julgamento foi iniciado no último dia 1º de fevereiro, no juizado A de Maior Risco, da capital guatemalteca. Os acusados, detidos desde junho de 2014, são o tenente coronel Esteelmer Francisco Reyes Girón e o ex-comissionado militar Heriberto Valdez Asig.

Estão sendo julgados, entre outros, por delitos de deveres contra a humanidade, em sua forma de violência sexual, escravidão sexual e doméstica contra um total de 12 mulheres; o assassinato de três mulheres (mãe e suas duas pequenas filhas); o desaparecimento forçado de seis homens – esposos das mulheres vítimas – e tratamentos cruéis contra duas meninas.

As organizações que acompanham as querelantes asseguram que são muitos mais os culpados por esses delitos, e assinalam a lentidão com a qual o Ministério Público está atuando para providenciar a captura de pelo menos outras cinco pessoas.

Além disso, recordam que existem nexos diretos entre os militares violadores de direitos humanos e os fazendeiros que disputavam as terras com as comunidades indígenas.

Para Anabella Sibrian e Miguel Zamora, da Plataforma Internacional contra a Impunidade, esses processos se marcam dentro de uma história e estrutura sociopolítica do Estado guatemalteco, que, desde o seu começo, se configurou em função dos interesses das elites econômicas tradicionais e, mais recentemente, dos novos poderes econômicos legais e ilegais (poderes fáticos).

Esses poderes utilizam a força militar e os órgãos de justiça para controlarem qualquer tipo de oposição aos seus interesses.

"O caso da comunidade de Sepur Zarco é um claro exemplo disso. Na medida em que toleramos que graves crimes fiquem impunes, estamos alentando que continuem sendo cometidos”, disse Sibrian.

É por isso que um amplo conjunto de organizações nacionais e internacionais estão acompanhando esse longo processo de busca pela justiça.


"As mulheres querelantes estão sendo estigmatizadas e vivem um contexto comunitário muito complicado, em que os militares voltaram a organizar os patrulheiros de autodefesa civil e os grandes fazendeiros continuam disputando com as comunidades indígenas o acesso à terra”, disse Ada Valenzuela.

"Além disso, nas redes sociais, se desencadeou uma forte campanha de desprestígio contra as mulheres querelantes e as organizações que as apoiam, assessoram e acompanham”, assinalou a presidenta da UNAMG.

Uma sociedade corresponsável: despojar-se da vergonha

Um dos objetivos desse julgamento é que as vítimas se despojem da vergonha e a transfiram para os vitimadores, que são quem devem carregar isso.

"Como é possível que a sociedade não tenha gerado condições para que as mulheres que sofreram violência sexual possam caminhar livremente e de forma segura?”, pergunta Paula Barrios.

"Devemos romper este continuum da violência contra as mulheres. Conseguir derrubar esse grande muro de impunidade – que, na Guatemala, é histórico – permitirá a todas as sobreviventes de violência sexual considerar que é possível chegar à justiça”, disse a diretora das Mulheres Transformando o Mundo.

Barrios explicou também que já estão elaborando e discutindo uma proposta para gerar um esquema e um estandarte de reparação para as vítimas, com enfoque de gênero e cultural.

"Essas mulheres estão com um empoderamento, uma firmeza e uma dignidade incrível. Apesar das ameaças e intimidações, estão firmes e decididas. E dizem claramente: estamos aqui para que se conheça nossa verdade, para que se saiba que o que aconteceu não foi nossa culpa, para que se castiguem os responsáveis e para que o que nós sofremos não volte a acontecer nunca com nenhuma outra mulher na Guatemala”, concluiu Valenzuela.


Fonte: adital

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