sábado, 5 de março de 2016

A filha de ex-escrava que virou deputada e inspira o movimento negro no Brasil

Uma catarinense filha de uma escrava liberta começa aos poucos a ser “redescoberta” nacionalmente como ícone do movimento de mulheres negras. Antonieta de Barros foi a primeira parlamentar negra brasileira, eleita em 1934.

por Fernanda da Escóssia no BBC


Educadora, jornalista e política, Antonieta junta em sua trajetória, na primeira metade do século 20, três bandeiras caras ao Brasil do século 21: educação para todos, valorização da cultura negra e emancipação feminina.
A história de Antonieta inspira movimentos negros e de mulheres em Santa Catarina, onde nasceu, mas aos poucos chega a outros cantos do país.
O documentário Antonieta, da cineasta paulista Flávia Person, lançado no fim de 2015 em Florianópolis, tem previstas várias exibições em março, quando se comemora o mês da mulher. E leva o nome de Antonieta de Barros o prêmio nacional para jovens comunicadores negros criado pela Secretaria da Igualdade Racial do governo federal.
Nascida em 11 de julho de 1901, Antonieta foi a primeira mulher a integrar a Assembleia Legislativa de Santa Catarina e é reconhecida como a primeira negra brasileira a assumir um mandato popular.
Sua mãe, escrava liberta, trabalhou como doméstica na casa do político Vidal Ramos, pai de Nereu Ramos, que viria a ser vice-presidente do Senado e chegou a assumir por dois meses a Presidência da República.

Leonor e Antonieta (de pé, ao centro) estudaram graças aos esforços da mãe, ex-escrava


Por intermédio dos Ramos, Antonieta entrou na política e foi eleita para a Assembleia catarinense em 1934, dois anos depois de o voto feminino ser permitido no país – acontecimento que acaba de completar 84 anos.
Antes da política, a educação foi sua grande bandeira.
Graças ao esforço da mãe, ela e a irmã, Leonor, concluíram o que então era conhecido como “curso normal”, que formava professoras.
Antonieta se formou em 1921 e, no ano seguinte, fundou o Curso Particular Antonieta de Barros, voltado para alfabetização da população carente e dirigido por ela até sua morte, em 1952.
Ela foi professora de Português e Literatura, e diretora do atual Instituto de Educação.
Criou, ainda, o jornal A Semana e dirigiu o periódico Vida Ilhoa, em Florianópolis. Também assinava crônicas com o nome de Maria da Ilha.
Nunca se casou.


Referência

“Quando vim morar em Florianópolis, tinha uma imagem do Sul como uma região branca, que valorizava as influências italiana, alemã e açoriana. Mas descobri essa mulher negra incrível e quis contar a história dela”, diz a cineasta Flávia Person.
Ela foi aos poucos descobrindo quem era a mulher cujo nome aparecia em vários pontos da capital catarinense, de um túnel a uma escola estadual.
Antonieta, o filme, foi selecionado num edital do governo catarinense e ganhou um financiamento de R$ 60 mil.
É todo feito com imagens que Flávia localizou em acervos variados, como os da Casa da Memória de Florianópolis e do Museu da Escola Catarinense, além do baú de fotos da família, cedidas pelo sobrinho-neto de Antonieta, Diógenes de Oliveira.
O documentário conta a vida de Antonieta e algumas de suas batalhas. Numa delas, na Assembleia catarinense, um opositor acusou-a de estar fazendo “intriga de senzala” – ela respondeu assumindo sua condição de mulher e educadora negra.
Hoje o auditório da Assembleia leva seu nome, bem como uma comenda oferecida pela Câmara Municipal de Florianópolis.
A escola Antonieta de Barros está fechada desde 2007, segundo a Secretaria de Educação estadual, devido a problemas estruturais – o prédio é tombado pelo patrimônio histórico.
Segundo a pasta, há um projeto de restauração para transformá-lo em um espaço com biblioteca, local para exposições e salas de aula.
 “No Sul do Brasil, negros sempre tiveram situação de invisibilidade histórica, e personagens como Antonieta ajudam a reduzir essa invisibilidade”, afirma Alexandra Alencar, doutora em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e criadora do projeto “Outras Antonietas”, voltado para professoras negras.
A iniciativa, financiada graças a um edital da Fundação Palmares, órgão do governo federal, pesquisa experiências de professoras negras no estado, reúne trabalhos acadêmicos e debate a condição da mulher negra na educação.
“Professoras negras relatam vivências muito variadas. Muitas se sentem uma ilha dentro de sua escola. Outras contam que qualquer assunto entendido como ‘coisa de negro’ é encaminhado a elas, como se a história negra fosse um interesse pessoal delas, e não um tema que deveria ser tratado pela escola como um todo”, relata.
Fora de Santa Catarina, outros projetos e coletivos voltados para a cultura negra, como o Afreaka, de São Paulo, valorizam a figura de Antonieta de Barros.

“Antonieta foi protagonista em uma época em que as mulheres, ainda mais as mulheres negras, eram relegadas à total submissão e desempenhavam papel coadjuvante na sociedade”, afirma Gisele Falcari, professora de Literatura numa escola técnica de São Paulo e colaboradora do Afreaka.
Na avaliação dela, Antonieta rompeu os estereótipos ligados ao gênero, à etnia e à classe social, mas ainda não tem, assim como outras mulheres negras, o reconhecimento merecido – embora a professora admita que isso está mudando.
Reconhecimento
Desse esforço de resgate do nome de Antonieta de Barros faz parte o prêmio criado pela Secretaria da Igualdade Social e batizado em homenagem a ela, voltado para jovens comunicadores negros e negras.
O edital foi lançado no ano passado, mas, por problemas técnicos, acabou cancelado e será relançado este ano.
A secretaria federal afirma que Antonieta, além de ter sido a primeira mulher negra a assumir um mandado popular, teve ações de comunicação, educação e política importantes.
Há um texto sobre ela no livro Literatura e Afrodescendência no Brasil: Antologia Crítica, financiado pelo órgão.

Antonieta de Barros com grupo de alunas; para ela, educação veio antes da política

Ao ver essas iniciativas Valdeonira Silva dos Anjos, de 80 anos, diz que se sente em um processo de reencontro com uma velha conhecida.
Professora negra aposentada, Valdeonira estudou na escola dirigida por Antonieta de Barros e graduou-se em História. Também foi uma das fundadoras do grupo que deu origem à Amab (Associação de Mulheres Negras Antonieta de Barros).

“Antonieta é um exemplo. Como mulher negra, foi pioneira em várias áreas e nunca se omitiu”, lembra.

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