sábado, 22 de fevereiro de 2014

Maria de Araújo, a beata do milagre


Neste ano de 2014, lembramos o centenário de sua morte (17 de janeiro), embora sua memória tenha sido apagada da historia e da religião, permanece seu exemplo de vida e dedicação espiritual.


Por Francisco José da Silva

O sertão nordestino é um lugar místico, capaz de inspirar verdadeiras vocações religiosas. Um exemplo da fertilidade espiritual dessa terra árida e desértica semelhante à Palestina, podemos encontrar nas figuras dos beatos e beatas (como José Lourenço e Maria de Araujo), dos profetas populares e místicos (como Antonio Conselheiro) e dos apóstolos do sertão (como Padre Ibiapina e Padre Cícero). Entre as figuras e personagens mais significativas de nossa religiosidade devemos lembrar aqueles que surgem à margem da sociedade e da religião estabelecidas, os pobres, os analfabetos, os negros e as mulheres. Neste sentido, destaca-se a figura de Maria Madalena do Espírito Santo de Araujo (1863-1914), a ‘beata do milagre’ de Juazeiro do Norte, que sofreu com a exclusão, sendo considerada embusteira e mentirosa, porque o famoso ‘milagre eucarístico’ acontecido no final do século XIX na cidade de Juazeiro do Norte tinha como personagem central uma mulher feia, pobre, negra e analfabeta.



Esta mulher desde muito cedo apresentou tendências místicas, voltada para as práticas ascéticas da oração, jejum, penitência, além de ter visões, como o ‘casamento espiritual’ com Cristo quando era ainda criança, receber os estigmas de Cristo, ver Maria e os Santos, o que a levou a dedicar-se a uma vocação religiosa que a conduziu ao sofrimento e ao esquecimento, ao fim de sua vida seu tumulo foi violado e seus restos mortais foram perdidos. Mesmo o Padre Cícero Romão Batista, considerado santo pelo povo devoto do nordestino e o principal responsável pelos fatos milagrosos, reconhecia as qualidades religiosas e espirituais de Maria de Araujo. O nome desta mulher ‘Maria Madalena do Espírito Santo de Araujo’ traz a marca da religiosidade, ‘Maria’, como as duas principais Marias da Bíblia, Maria de Nazaré, a mãe do salvador, e Maria Madalena, a pecadora redimida, e por fim ‘do Espírito Santo’, lembrando assim a presença do espírito como sopro que dá vida, que anima e dá coragem, em especial aos perseguidos, para suportar as injustiças desse mundo.


Neste ano de 2014, lembramos o centenário de sua morte (17 de janeiro), embora sua memória tenha sido apagada da historia e da religião, permanece seu exemplo de vida e dedicação espiritual que só tem precedentes na vida dos santos e mártires cristãos, os quais sempre foram objeto de perseguição e morte por parte dos poderes políticos e religiosos das diversas épocas. A Igreja oficial se via diante de um dilema, pois se de um lado era necessário resguardar a fé dos ataques dos protestantes, dos positivistas e dos maçons, todos descrentes em relação à veracidade dos fatos da religião católica, por outro lado era necessário evitar o avanço descontrolado do cristianismo popular e laico, eivado de milenarismos e misticismos, que poderiam por em cheque a autoridade do clero e do magistério, bem como dos dogmas teológicos aceitos pelos intelectuais da Igreja, por fim, havia a questão dos milagres, das romarias e da renovação da fé proporcionada pelas devoções do catolicismo sertanejo. As questões se acumulavam: poderia Cristo deixar a Europa para fazer milagres numa cidade perdida no interior do Nordeste? Poderia uma beata ignorante, mestiça e pobre ter se tornado uma mediadora dos sinais divinos, em oposição aos teólogos e o clero instituído pela Igreja de Cristo?
  
É notável observar que, apesar de ser uma igreja cujos membros em sua maioria são mulheres, que venera de forma toda especial Maria, a mãe do Salvador, que reconheça Maria Madalena como apóstola dos apóstolos permaneça ainda uma igreja onde não há sacerdotisas, onde as mulheres ainda são vistas com suspeita. Uma instituição hierarquizada de forma medieval que mantém arcaísmos que minam seu discurso sobre direitos humanos, conservando contradições que precisam ser superadas. Só assim a Igreja ainda poderá assumir seu lugar como mãe e mestra, títulos ironicamente femininos numa igreja tão masculina.


Francisco José da Silva é professor mestre em Filosofia. Coordenador do Curso de Filosofia - UFCA (Universidade Federal do Cariri)

Fonte: www.opovo.com.br

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