domingo, 24 de fevereiro de 2013

“Ser seguidor de Jesus é ser ateu de muitas imagens de Jesus que existem na sociedade e na própria Igreja”


Entrevista com Juan Antonio Estrada
"À medida que vamos nos tornando cada vez mais pessoas, reagindo diante dos acontecimentos com cada vez maior profundidade, na medida em que vão se traduzindo em nossa vida uma série de valores (justiça, misericórdia, verdade, capacidade de perdão, etc.), e na medida em que vamos perfilando uma forma de viver, vamos nos fazendo Filhos de Deus".

Juan Antonio Estrada é jesuíta, teólogo, estudioso da cristologia, professor de Filosofia na Universidade Pública de Granada, e autor do livro “Da salvação a um projeto de sentido. Por uma cristologia atual”, que acaba de ser publicado pela Desclée.

Nesta obra reflete sobre o tradicional debate em torno da humanidade e da divindade de Jesus Cristo: “Crer ou não crer na filiação divina de Jesus é uma matéria de fé, ao passo que crer em sua condição humana é questão de sentido comum”, afirma, e critica que a Igreja tenha adotado “uma maneira de entender o humano que é estranha ao que encontramos nos Evangelhos e no processo de Jesus”.

Entre a vida e a ressurreição de Jesus (outra das tradicionais oposições da fé cristã) Juan Antonio inclina-se pela vida: “as Bem-aventuranças continuam valendo a pena, mesmo que não houvesse ressurreição depois da morte”, disse, e lamenta que “infelizmente o Evangelho tem 2000 anos, e, paralelamente, foi se desenvolvendo uma linha que colocou em primeiro plano a meritocracia e o vale de lágrimas”.

Conclui com a mesma ideia: “Ser seguidor de Jesus é ser ateu de muitas imagens de Jesus que existem na sociedade, inclusive dentro do próprio cristianismo e da própria Igreja”.
A entrevista é de Jesús Bastante e publicada no sítio espanhol Religión Digital, 19-02-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Não há oposição, atualmente, entre Cristo e a contemporaneidade?
Bom, esse é o miolo do livro. O livro tem um antecedente que pode explicar o título, e é um livro que escrevi há alguns anos e que se intitulava “O sentido e o sem sentido da vida”. Nele me colocava a questão de por que na sociedade em que vivemos, que alcançou um nível material muito elevado, há tanto descontentamento, tanta consciência de sem sentido, de falta de estímulo e de entusiasmo para viver, que depois se manifesta em uma série de coisas, como por exemplo, algo que as pessoas não sabem: que na Espanha há pelo menos 10 suicídios por dia, e não são suicídios verificados nas classes sociais que têm mais problemas econômicos, mas é algo transversal.

Gente cansada de viver?

Sim, e gente desesperada, que não encontra sentido em sua vida. Aquele livro foi, acima de tudo, de reflexão sobre a sociedade, com um enfoque a partir da filosofia. Mas depois de escrevê-lo, me coloquei a questão do que poderia Jesus de Nazaré dizer ao homem de hoje. E para isso, era preciso colocar-se a questão do projeto de sentido de Jesus. Daí vem o título do meu livro.

Quando pensamos na salvação, pensamos sempre em Jesus e no além, em algo depois da morte. Mas a tese do livro não é essa, mas que a salvação começa no aqui e agora da história. E a salvação no aqui e agora se traduz em viver a vida de uma forma que vale a pena.

No Evangelho parece bastante claro que Jesus defende esta ideia do Reino que se realiza na terra, dia a dia. Quando isto foi esquecido, em que momento mudou-se o discurso pelo do juízo final e do “comporte-se bem nesta vida para que na próxima obtenha sua recompensa”?

É isso que procuro transmitir, recordando que o Evangelho significa “boa notícia”, e que Jesus veio para dar essa boa notícia para a história. Infelizmente, este livro tem 2000 anos, e, paralelamente, foi se desenvolvendo pouco a pouco uma linha que colocou em primeiro plano a meritocracia, isto é, viver mal neste vale de lágrimas onde o que temos que fazer é mérito para depois obter a nossa salvação.

Algo parecido com o carma?

De alguma maneira. Essa foi a teologia que imperou em boa parte do catolicismo.

O resto é heterodoxia?

Bom, como é lógico, há diversidade de correntes. Tampouco é apenas uma questão exclusiva dos católicos; creio que é algo que se deu bastante no cristianismo em geral. Se nos fixamos na liturgia, os cânones repetem muitas vezes “que por tua morte e ressurreição nos deste a vida”. Eu penso que deveria ser “por tua vida, por tua morte e por tua ressurreição”. Não devemos deixar a vida em segundo plano.

Está a Igreja mais voltada para a Quinta-feira e a Sexta-feira Santa do que para as Bem-aventuranças e o resto da mensagem de vida de Jesus?

Sim. Temos que compreender que as chaves da morte e da ressurreição de Jesus estão em sua vida. Isto é um problema muito antigo. Rahner, um dos teólogos mais determinantes do século XX, e talvez o mais importante, dizia que “a herança oculta dos católicos é o monofisismo”. Quer dizer, que acentuamos de tal maneira a divindade de Jesus e a sua filiação que nos esquecemos de que é um homem e que, portanto, está submetido a todos os condicionamentos humanos.

E, ao contrário, apostar na rotunda e profunda humanidade de Jesus, não pode levar à perda da sua divindade?

Por um lado, temos que ter presente o contexto histórico em que vivemos. A sociedade da cristandade acabou, embora restem as gerações mais idosas que foram educadas nessa sociedade. Mas já não existe. Hoje vivemos em uma sociedade secularizada, laica, na qual cada vez mais o cristianismo vai perdendo sua possibilidade e capacidade de influência.

Vai se convertendo em algo indiferente?

Sim, e também minoritário. Nesse contexto que estamos vivendo, temos que nos colocar a questão de que crer ou não crer na filiação divina de Jesus é uma matéria de fé, ao passo que crer na condição humana de Jesus é de sentido comum. Não há dúvida de que foi um homem. Um judeu do século I, influenciado por seu código cultural e religioso, vivendo em uma família muito marcada pelas tradições, etc. O que temos que ir vendo é como, desde a humanidade de Jesus, vai se gerando progressivamente uma dinâmica de tomada de consciência de filiação. A evolução de Jesus é muito importante.

Quando Jesus se dá conta de que é Filho de Deus?

É difícil determinar, porque é um processo. Me parece que tem muita importância um versículo que está no final do Evangelho da Infância de Lucas, onde este diz: “Jesus crescia em sabedoria, em conhecimento e em graça diante de Deus e dos homens”. Quer dizer, ele ia vendo coisas que em outro momento não via, o que acontece com todos nós. A relação de Jesus com Deus vai se desenvolvendo. Nós não entendemos da mesma maneira o que é ser mãe, ser pai ou ser filho quando temos 8 anos, 20 ou quando temos 50 anos. Evidentemente, nas diferentes etapas da vida vai havendo uma tomada de consciência. E nos Evangelhos há uma série de dados que deixam ver essa tomada de consciência de Jesus, através da qual vai se abrindo um novo horizonte a Jesus, que o obriga ao que é típico na evolução humana: aprender do livro da vida e ir crescendo em santidade. Porque Jesus não sabia tudo, não era um super-homem. Assim, vai se perfilando sua consciência de Deus, cada vez mais madura, mais adulta e mais profunda, que vai ter momentos chaves. Eu dou muita importância ao batismo. Para fazer um paralelismo, salvando as distâncias, diria que o batismo para Jesus é o que foi a queda do cavalo em Damasco para Paulo: um antes e um depois. Há uma manifestação de Deus Pai ao povo, uma epifania de Deus que se comunica com Jesus, que experimenta uma consciência nova em sua vida, que o obriga a mudar de prática.

Por isso começa sua vida pública?

Claro, começa quando ele tem consciência de ser o enviado de Deus para construir o Reino, que é o projeto de sentido de Jesus. O Reino de Deus no meio dos homens.

E que sentido tem esse projeto na sociedade atual?

Jesus lutou por valores, valores humanos. Quando Jesus fala do que Deus quer para o ser humano, nunca fala de práticas religiosas. A passagem tão conhecida de Mateus que diz “tive fome, tive sede, estive doente...” é um exemplo. Ou quando João Batista envia uma mensagem a Jesus e ele manda dizer que conte o que viu: como os cegos recobram a vista e os pobres são evangelizados. Jesus luta pelos valores humanos. Por isso eu sempre digo que Jesus veio para nos ensinar a sermos pessoas e para cumprir o plano de Deus acerca do ser humano. No entanto, enquanto pessoas, vamos aprofundando e vamos nos humanizando. Eu creio que o processo da vida humana é um processo de humanização, e a novidade e o central do cristianismo é que, à medida que vamos nos humanizando com o passar dos anos, nós também vamos nos assemelhando mais a Deus, e santificando-nos. Ou seja, a salvação não é uma superestrutura e a humanização uma estrutura, como a natureza ou a sobrenatureza. Ao contrário, à medida que vamos nos tornando cada vez mais pessoas, reagindo diante dos acontecimentos com cada vez maior profundidade, na medida em que vão se traduzindo em nossa vida uma série de valores (justiça, misericórdia, verdade, capacidade de perdão, etc.), e na medida em que vamos perfilando uma forma de viver, vamos nos fazendo Filhos de Deus. Portanto, o processo de humanização e o processo de santificação é o mesmo. Não precisamos ser humanos primeiro, e depois santos; mas sendo humanos somos santos.

Essa visão não se choca com a própria configuração da Igreja como humana e divina, parecendo que o humano é o mundano?

Esse é o problema, que a Igreja, nesse sentido, adotou uma maneira de entender o humano que é estranha ao que encontramos nos Evangelhos e que é estranha ao próprio processo de Jesus. Jesus foi um ser profundamente humano, que foi se abrindo cada vez mais à miséria humana, dando uma resposta cada vez maior, através da qual Deus vai se fazendo cada vez mais presente na sociedade.

A instituição eclesiástica, então, se esqueceu em parte dos Evangelhos?

Sim, a instituição e também os cristãos. Os cristãos tiveram a infelicidade (e a instituição católica pecou por isso) de deixar, durante séculos, a Bíblia em segundo plano, o que nos afastou das fontes do cristianismo. Isso nos obrigou a recolocar certas coisas que construímos ao longo de vários séculos, fora das fontes evangélicas. Essa é uma referência crítica para nós, como tentava ser também o livro.

É muito interessante ver como a filiação divina de Jesus vai percorrendo diferentes estágios, na colocação à prova, na oração do horto... e ver como Jesus ia crescendo também na fé, no conhecimento e proximidade de Deus. Tudo isso está implicado no desenvolvimento humano de Jesus, que tem que servir para nós de modelo, porque, no fundo, não conhecemos a Deus. Deus sempre é um mistério para nós, sempre podemos nos perguntar se Deus realmente existe. Essa é uma pergunta que atravessa todas as religiões, todas as origens da humanidade. Se não podemos responder com absoluta segurança, nem demonstrar que Deus existe, é muito mais difícil revelar a natureza de Deus dando a última palavra. Mas através de Jesus podemos nos encontrar com tudo isto. Minha maneira de compreender a encarnação me leva a pensar que nós não cremos em Deus de forma abstrata. Nós cremos no Deus de Jesus. Portanto, qualquer maneira de entender a divindade que seja contraditória com a vida de Jesus não é aceitável para nós. Indiferente de quem o disser e as palavras que utilizar. O critério último para conhecer a Deus é a vida de Jesus. Por outro lado, encontramos isto nos Evangelhos. O prólogo do Evangelho de João o diz de maneira radical: “Ninguém jamais viu a Deus; quem nos revelou Deus foi o Filho único, que está junto ao Pai”. Ou o que disse Mateus: “Graças te dou, Pai, Senhor do céu e da terra, que escondeste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos”.

Nesse contexto podemos entender o que é a encarnação. Nós, cristãos, no campo da divindade, fizemos alguma coisa que para outras religiões pode ser chocante: tudo o que não se encaixa nos parâmetros da vida de Jesus não pode ser divino para nós. Nesse sentido, ser seguidor de Jesus é ser ateu de muitas imagens de Jesus que existem na sociedade, e que, infelizmente, existem também dentro do próprio cristianismo e da própria Igreja. Imagens impossíveis de serem compatibilizadas com a vida de Jesus.

Por exemplo, continuar crendo no Deus do Antigo Testamento?

Essa foi uma das revelações que Jesus nos fez: que Deus é pai e que não temos que ter medo dele. Por isso devemos revisar muitas das imagens selvagens de Deus que estão presentes na Bíblia judaica. A Bíblia não é um livro, é uma biblioteca, porque é uma série de livros diferentes, escritos por diferentes autores em datas muito diferentes e em lugares geográficos muito distantes entre si. Mas nessa biblioteca nos vai sendo contada a experiência religiosa de um povo. Como de imagens primitivas e muitas vezes genocidas e antimorais da divindade, se vai, pouco a pouco, pelo trabalho dos profetas e dos enviados de Deus, refinando, mudando e espiritualizando essa divindade, preparando o caminho para que chegue a plenitude da revelação da humanidade de Jesus.

Jesus ressuscitou?

No livro, vou analisando as diferentes passagens das Escrituras e as interpretações atuais, tendo em conta, além disso, que nos encontramos sempre com um problema que não podemos resolver facilmente: que os Evangelhos, que são os relatos que nos falam acerca da ressurreição de Jesus, são textos que foram escritos aproximadamente 30 ou 40 anos depois da sua morte. O mais próximo pode ser o de Marcos, mas não sabemos exatamente quando foi escrito. Eu sempre tive a opinião de que havia um “proto-Marcos” anterior ao Evangelho de Marcos que temos agora. Nesse contexto, nos encontramos com um paradoxo: os relatos que nos narram algo sobre a vida de Jesus são os mais tardios; enquanto que as afirmações mais primárias sobre a ressurreição, que são aquelas que temos através de Paulo, não nos falam sobre o como da ressurreição, mas tentam dar-nos seu significado a partir da teologia. Então, aí há um conflito. E eu tentei estabelecer como cada evangelista tem seu próprio horizonte da ressurreição, assim como Paulo.

Triunfou o de Paulo?

Sim, mas os outros continuam aí. Eu creio que se tivéssemos ficado, no Novo Testamento, apenas com os relatos de Paulo, e se não tivéssemos tido o Evangelho, o cristianismo não seria hoje o que é. Porque eu creio que a teologia mais adequada para falar de Jesus, de sua morte e ressurreição, é a teologia narrativa, o relato. E o relato não se encontra em Paulo.

A ressurreição vai jogar luz sobre a vida de Jesus, isto é, que a reflexão sobre a encarnação do Filho de Deus é posterior à ressurreição. Não é anterior. Eu creio que os discípulos estavam convencidos de que era o Messias, o profeta do tempo messiânico (por isso, é comparado, às vezes, com Elias); mas realmente a filiação divina é um elemento que vai surgir depois da ressurreição. Acontece que os Evangelhos foram escritos desde a ótica da ressurreição.

Então, a vida de Jesus faz sentido pela ressurreição?

Eu diria que não, porque se a vida de Jesus não valesse por si mesma, de nada me valeria dizer que ressuscitou. Eu creio que a vida de Jesus tem um valor em si mesma, e evidentemente a ressurreição é a confirmação por parte de Deus, apesar do fracasso histórico de Jesus, que acaba na cruz. A vida de Jesus, ou tem sentido em si mesma ou não tem sentido em absoluto.

Quer dizer que se Jesus não tivesse sido o Jesus dos Evangelhos, mesmo que tivesse ressuscitado, não estaríamos falando dele?

Exatamente. Inclusive mais. Eu diria que, se agora mesmo nos encontrássemos com o fato de que a morte fosse realmente o fim do ser humano e que não há ressurreição possível, mesmo assim continuaria valendo a pena a vida de Jesus. As Bem-aventuranças seguem valendo a pena, mesmo que não houvesse ressurreição depois da morte. Logicamente, o fato de que haja ressurreição depois da morte valoriza ainda mais a vida de Jesus, mas a vida de Jesus tem um significado em si mesmo, que não depende apenas da ressurreição.

Qual é a “oferta” de sentido que o cristianismo pode fazer hoje? A Igreja dá resposta a essa oferta?

Creio que estamos em uma mudança de época. Há filósofos (não teólogos) que dizem que estamos em um novo “tempo axial”. O tempo axial, do qual se fala muito na filosofia, foi aproximadamente há 2.500 anos, no século VI a.C., que foi quando surgem os profetas de Israel e aparecem Buda, na Ásia, e Confúcio, na China, o Tao, Zaratustra... grandes constelações de sentido e grandes ideologias que vão dar lugar aos grandes sistemas de pensamento e às grandes religiões. Alguns dizem que hoje estamos vivendo uma mudança que possivelmente é o começo de uma nova época. Com a globalização o mundo fica pequeno, a cultura começa a ser mundial... e isso, de alguma maneira, desloca todas as grandes instituições e todos os sistemas de pensamento. Também na filosofia há hoje uma grande crise global. E, logicamente, isto afeta também as grandes religiões, que se encontram hoje com um novo desafio: responder a uma nova situação histórica, a uma nova sensibilidade e às grandes demandas que os cidadãos têm hoje, para as quais não basta ter respostas antigas.

Eu gosto muito de um livro que na sua época fez grande sucesso, que é Introdução ao Cristianismo, de Ratzinger, da década de 1960. É um livro que segue sendo muito válido, no qual, já na introdução, Ratzinger diz algo muito pertinente: que quando se ouve falar de teólogos ou de teologia, antes de ouvir as respostas já se sabe o que vão dizer. Porque se contentam em repetir velhas respostas, apesar do perigo de que as velhas respostas já não possam responder às novas demandas e às novas perguntas.

Ou seja, que há tempo que não se faz teologia?

Bom, há de tudo. Há tentativas de responder à sensibilidade do mundo de hoje, mas evidentemente se segue fazendo muita teologia obsoleta e anacrônica, que não responde à sociedade secularizada e laica em que vivemos.
Fonte: Ihu

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