terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A discriminação das mulheres a partir da antiga Palestina


Carmen Sílvia Machado Galvão (Teóloga leiga, socióloga e escritora)
Em nossos dias, muitas mulheres ainda são oprimidas e sofrem discriminação, por serem mulheres, pela maternidade, por serem teoricamente mais fracas e, às vezes, por causa da cor, do estado civil, da pobreza ou da solidão. Se ela é velha e pobre, corre o risco do abandono e da miséria. Se jovem, movidos por interesses sensuais, aparecem muitos benfeitores, mais na busca de uma conquista, como se ela fosse um troféu de grife, um mero objeto de prazer, descartável. No Antigo Testamento, em função do regime patriarcal, a mulher era oprimida. E hoje?

Hoje, se de um lado, na cultura urbana, a mulher buscou e, de certa forma, conquistou espaços, mercê de sua capacidade e determinação, em muitos lugares da América Latina, especialmente no interior do Brasil, a mulher, presa a uma cultura de traços rurais, ainda vive sob a tutela patriarcal do pai (às vezes até da mãe), dos irmãos homens, do marido e, por continuidade, dos filhos.
A condição de Terceiro Mundo da América Latina relegou a mulher, em alguns casos, a objeto de trabalho, mão-de-obra barata e sem voz, instrumento gerador de prole e, não-raro, prostitutas, muitas vezes a mando da família, para ajudar a renda familiar. Nossa sociedade, eminentemente machista, dá à mulher um segundo plano meio irrelevante, nivelada às crianças, aos empregados e às pessoas estranhas. Mesmo nas grandes corporações, a mulher tem que ser melhor que os homens, pois a qualquer erro ou deslize, logo se diz: "É coisa de mulher!”. O pior é que, mesmo combatendo o machismo, em alguns casos, e fruto dessa distorção cultural, as próprias mulheres criam seus filhos homens dentro do mesmo machismo que a elas tanto faz sofrer.
Alguns segmentos sociais e da mídia, fizeram da mulher um objeto, onde um rosto bonito, um corpo bem feito, ou uma voz bem postada, servem ao processo mercadológico de uma sociedade de consumo. A luta da mulher hoje oprimida é como que um secular clamor histórico, que teria começado nas estepes do Oriente Médio. De lá para cá há toda uma caminhada de libertação que parece que ainda não chegou ao fim.
No período sedentário, a posição social da mulher (‘iša) revela mudanças insignificantes em relação ao período seminômade. A mulher continuava a ser considerada como "alguém que pertence a um homem” (Gn 20, 3). O homem é seu senhor, ba’al e proprietário (Ex 21, 3.22; 2Sm 11, 26). Em Israel a mulher era mais uma coisaque pessoa, incluída entre os bens do marido (cf. Ex 20, 17), quase ao nível das coisas materiais, animais do rebanho e escravos. Sempre dependente da autoridade masculina.
Tornando-se viúva, ela tinha por opções, colocar-se sob a tutela do pai (se a família do marido permitisse) ou do sogro, podendo até tornar-se concubina deste ou de um cunhado, para a geração de prole. Aos doze anos o pai escolhia com quem a filha ia casar, ou podia vendê-la como escrava (cf. Ex 21, 17). O homem que pagasse o dote estipulado (compra?), podia levá-la. A jovem era vista pela família – e isso perdurou até a Idade Média – como um objeto de compra e venda. A submissão ao marido situava-se na linha de um dever religioso. Dentro dessa cultura, São Paulo ensinaria:
Mulheres, sejam submissas a seus maridos... (Ef 5, 22; Cl 3, 18).
A prática da poligamia, ou concubinato, era permitida ao homem. A mulher era obrigada a tolerar a presença da outradentro de casa. O direito de divórcio só podia ser exercido pelo homem que, entre outros motivos, tinha a faculdade de pedir a separação em caso de adultério ou esterilidade. As tarefas da mulher na Palestina eram as mais pesadas: cuidar do marido, dos filhos, gerar prole (sinal de bênção divina), cozinhar, fiar, lavar roupa, supervisionar os serviço da casa, zelar pelos animais domésticos (gansos, ovelhas, cabras, etc.). A chamada "literatura sapiencial” chama de mulher virtuosa quem se esmera nesses trabalhos domésticos (cf. Pv 31, 10-31).
O corpo feminino era relacionado tão-somente com a reprodução. Prazer sexual – e isso ocorre até hoje na Palestina e Nas mutilações do fundamentalismo islâmico – era coisa, normalmente, desconsiderada entre as mulheres. Esterilidade, viuvez e até virgindade (na idade mais avançada) eram estados negativos e, às vezes, pela expectativa da maternidade do Messias, sinal de maldição divina. O marido, no Oriente Médio tinha para com a mulher, alguns deveres, mínimos, como a) dar-lhe alimento habitação e vestuário; b) cumprir os deveres conjugais; c) tentar resgatá-la em caso de rapto; d) zelar por sua saúde e integridade física; e) enterrá-la por ocasião da morte.
Como se pode ver, os deveres, além de mínimos, são os mesmos, praticamente, dedicados aos empregados ou escravos, revelando mais a necessidade de manter a mulher em funcionamento, para que ela cumpra suas tarefas e realize satisfatoriamente seu serviço. A partir da hermenêutica restritiva de Gn 3, 16 ("...teu marido te dominará...") todo um regime de submissão quase escrava estava desencadeado. Há quem acuse a Bíblia de ser demasiadamente machista. O problema, porém, vai mais além do livro em si. Trata-se de uma peculiaridade cultural. A maioria dos códigos, civis e religiosos daquela época, traziam consigo essas características. A Bíblia, como um "livro do povo” nada mais fez que relatar fatos culturais que, em princípio, lhe pareciam pertinentes àquela sociedade.
As viúvas em Israel, conforme já vimos, ficavam a espera de que algum irmão do marido falecido a escolhesse ou rejeitasse. Esse comportamento evidenciava que naquelas culturas, a mulher depois de viúva ficava como que escrava do clã do marido, a não ser que fosse liberada. E mesmo assim, teria que envergar, pela vida afora, o "traje das viúvas” já aludido.
Para a literatura sapiencial palestina, virtuosa era a mulher que se dedicava aos trabalhos domésticos. Quanto mais desagradável a tarefa ou pesado o trabalho, mais "virtuosa” a mulher era considerada, pelo marido e pela sociedade de seu tempo. As leis eram mais rígidas para com as mulheres. Aos homens eram facultados certos deslizes, como a embriaguez, a inconveniência e o adultério. Se a mulher fosse suspeita da prática de adultério, era condenada à morte por apedrejamento. No tempo de Jesus trazem para apedrejamento na praça uma mulher surpreendida em adultério. E o homem, onde estava?
O simples conversar com um homem na rua, já era um delito. A viúva podia conversar, desde que cobrisse o rosto. A mulher antes do casamento devia ser mantida reclusa (cf. 2Mc 3, 19). A menstruação ou qualquer outro mal ginecológico era considerado como uma impureza. Nesse período, a mulher não podia preparar alimentos, nem sentar-se em lugares públicos ou pisar jardins. A impureza feminina, não só a menstrual mas também a referente ao parto, era prescrita em lei religiosa (cf. Lv 12, 1-5; 15, 19-24).
A proibição das mulheres falarem nas assembléias (cf. 1Cor 14, 33ss) é decorrente do domínio (cf. Gn 3, 16) do homem sobre a mulher. Para caracterizar esse aspecto cultural, é interessante notar que todo o Oriente antigo, as mulheres eram proibidas de assistir cultos religiosos. No templo de Jerusalém elas podiam penetrar até o "pátio das mulheres” onde ouviam a pregação. Talvez esteja aí a raiz da resistência, subliminar, até hoje, da elevação de mulheres ao sacerdócio. No "muro das lamentações” até hoje, há espaço para mulheres separado dos homens. No Talmude há dois textos que evidenciam discriminação contra a mulher:
Aquele que ensina a lei à sua filha, ensina-lhe a devassidão... (IX/ 2, 9)
Eu te louvo e agradeço, ó Senhor Javé, por não ter nascido infiel, inculto nem escravo ou mulher... (XII/4, 12)
Apesar de condenar a opressão contra pobres, viúvas, órfãos, estrangeiros e outros sofridos, A Bíblia, por uma característica cultural, não faz referência, uma linha sequer à opressão da mulher. A segregação histórica da mulher remonta o alvorecer da humanidade, e muita discriminação atual é fruto ou seqüela das antigas culturas. A reforma dessa mentalidade só ocorre a partir da modificação de todo um processo sociocultural. É uma distorção que é preciso ser revista em cada etapa da história humana.
Fonte: Adital

2 comentários:

Anônimo disse...

Então a Bíblia não é a palavra de deus? é só um conto de fadas que não serve para guiar a vida dos cristãos?

APMMBH disse...

Prezado anônimo: a Biblia para nós, cristãos, é verdadeira palavra de Deus, mas isso não significa fazer uma leitura literal e fundamentalista da mesma. Recomendariamos ler atentamente o documento da Pontifícia Comissão Bíblica intitulado "A Interpretação da Bíblia na Igreja" (15/4/1993) e a CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA DEI VERBUM SOBRE A REVELAÇÃO DIVINA, do Concilio Vaticano II