terça-feira, 18 de outubro de 2011

Benigna – vítima de feminicídio, santa em sua comunidade, beata pela Igreja Católica


Benigna Cardoso da Silva, 13 anos, assassinada a golpes de facão no dia 24 de outubro de 1941, por um adolescente também de 13 anos, Raul Alves, apaixonado por ela e revoltado pela rejeição. Este crime ocorreu no Sítio Oitis, no município de Santana do Cariri, no Ceará. Essa história foi publicada no Caderno Regional do Diário do Nordeste, do dia 9 de outubro do corrente ano. Está em curso um movimento pela beatificação de Benigna, com o apoio da Igreja Católica, diante do surgimento de um novo santuário que atrai desde 2004 romarias para o local em que Benigna viveu e está sepultada. À Benigna são atribuídas inúmeras graças e até milagres que estão sendo documentados por um monsenhor italiano, Vitliano Mattioli, designado pelo Bispo Fernando Panico para relacionar no processo de beatificação.

Segundo a referida reportagem realizada por Elizângela Santos, Benigna nasceu no dia 15 de outubro de 1928, no Sitio Oitis, era uma menina pequena e franzina, que havia ido buscar água na cacimba, no final da tarde quando foi atacada pelo assassino (feminicida). O pote que ela carregava está guardado numa redoma de vidro no Santuário que foi construído em 2005, distante 200 metros do local onde ocorreu o assassinato de Benigna e que acolhe fotografia e ex-votos de seus devotos, levados para testemunhar e agradecer a graça recebida,. Para os moradores locais Benigna é "uma virgem mártir da pureza”, pois "morreu na defesa da castidade, resistindo ao assédio de seu algoz”.
 Essa história me impressionou. Eu desconhecia a existência dessa romaria, que este ano já está em sua 8ª edição, e embora não movimente multidões, já é tão significativa que a própria igreja reconhece a sua força e está a encaminhar a sua beatificação. Nem Maria, a milagreira do Pe. Cícero, em cuja boca a hóstia virou sangue, é considerada pela igreja. Além do mais, o assassinato de Benigna é um típico feminicídio, morta por um homem, para se defender de uma violência sexual, (teve três dedos decepados, cortes na testa, nos rins e na garganta), em luta por sua vida, integridade física e autonomia, diríamos nos dias de hoje. Os valores que esse feminicídio despertou na população como signos de uma atitude santa, que estão por trás de entendimentos puritanos, de um moralismo simples, guardam aproximações com os valores que sustentam a luta feminista, apoiados numa concepção racional de direitos das mulheres. A santidade de Benigna vai se constituindo como um novo mito religioso e popular do nordeste brasileiro.
Acontecimentos históricos com intensa carga simbólica para as culturas tornam-se mitos, constituindo-se em narrativas que exprimem um modo próprio de um povo ou uma comunidade contar uma história de si. O milagre por sua vez relaciona-se a um fato extraordinário, incomum, inesperado, sentido que Hannah Arendt também inclui no seu entendimento de milagre histórico atribuindo-o ao fato de o homem agir, significando que é possível esperar o improvável, pois a ação humana é capaz do inesperado, de maneira que o novo sempre surgiria na forma do milagre.
 Como milagre religioso, ou como milagre histórico, a história de Benigna está relacionada às condições de vida das mulheres num lugar constituído de uma comunidade rural no nordeste brasileiro, região de uma cultura reconhecidamente machista, em que prevalece a crença de uma superioridade masculina e da naturalidade da submissão das mulheres aos homens. É justamente no núcleo dessa cultura androcêntrica e machista que emerge a humanidade feminina de Benigna, mostrando que a história de uma pessoa imprime questões acerca da representatividade ou legitimidade dos significados da vida de um indivíduo diante de um grupo e do momento histórico ao qual pertence, ou como a história de um pode inserir elementos da história coletiva.
 Bendita Benigna, que venha a ser uma santa a expressar, não o sentido da maternidade e do cuidado, ou da devoção a Deus, como as demais santas, mas sim o sentido de defesa de si mesma, como mulher e como cidadã e de como esta sua atitude exprime um modo de vivência religiosa integrada com a vida real.
Maria Dolores de Brito Mota
Socióloga, Profª da UFC, Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Idade e Família, NEGIFegrada com a vida real.
Fonte: Adital


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