quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Tráfico de pessoas e trabalho escravo: lugar teológico, clamor ético, missão da Igreja


Por Élio Estanislau Gasda SJ
O texto está organizado em três partes interconectadas. A primeira destaca as origens teológicas: do problema em questão: as estruturas de pecado e a idolatria. A segunda aborda as origens da ética cristã: o clamor das vítimas do pecado do mundo. A última parte reflete os aspectos fundamentais da missão da Igreja em relação a este problema[1].

RAÍZES TEOLÓGICAS

Consequências de um sistema estruturado no pecado

O tráfico de pessoas e o trabalho escravo constituiu o cerne de sofisticados sistemas econômicos ocidentais pré-capitalistas. A civilização babilônica, greco-romana e grandes áreas do Oriente, eram sistemas de produção escravagista. Adentrando no século XIX, enclaves econômicos coloniais espalhados por todo o mundo continuaram sustentando a escravidão e tráfico de pessoas, a pior da história. Atualmente, são um espelho das mazelas do capitalismo global. Sem uma leitura política da realidade é impossível uma aproximação coerente a esta tragédia. Portanto, não é uma questão que se esgota em si mesma. Está estreitamente conectado com mecanismos globais derivados de uma estrutura política e econômica alicerçada na injustiça e na violência.
Uma das muitas formas de violência contra os indefesos. Este ano comemoramos o aniversário dos 40 anos do Sínodo dos bispos de 1971, A Justiça no mundo[2]. Nele, a Igreja chamava a atenção para as contradições internas desta civilização. "É preciso superar os sistemas e mecanismos injustos e internacionais de dominação”. Na mesma linha, a Constituição pastoral Gaudium et spes do Concílio Vaticano II denunciava que o Luxo pulula junto à miséria (GS 63, 3).
A situação de injustiça no mundo é definida como situação de pecado. O documento de Medellín (1968) afirma que "ao falar de uma situação de injustiça nos referimos às realidades que expressam uma situação de pecado” (Paz, 1). Para os bispos latinoamericanos reunidos em Puebla, estamos diante de um mecanismo perverso que provoca e sustenta uma situação de pecado(Puebla, 1135). Para João Pablo II, o mundo contemporâneo vive sob o domínio da injustiça e de um sistema alicerçado em "estruturas de pecado” (Solicitudo rei socialis, 36)[3]. As causas das desigualdades sociais e do aumento da pobreza devem ser buscadas nos "mecanismos econômicos, financeiros e sociais” (SRS, 16). Tais estruturas estão ainda mais reforçadas, agravando ainda mais a dramática situação dos mais pobres (CA, 35, 56). Não é objetivo de o capitalismo satisfazer as necessidades humanas mais elementares e resolver o problema da pobreza (CA, 40).
O pecado do mundo(Jo 1,29; 15,18), encarnado em tais estruturas, rompe com qualquer possibilidade de humanização: Há uma elite triunfante e exibicionista, que trafega em seus jatinhos, banqueiros, empresários, senhores da mídia que deram as costas aos milhares de seres humanos empurrados para os vales da morte do capitalismo. Aí se escondem os crimes mais cruéis contra a vida humana, como a escravidão e o trafico de seres humanos. O capitalismo sustenta esta máquina de pilhagem de miseráveis com a cumplicidade da sociedade e do sistema financeiro. Ao aceitar o dinheiro do tráfico, os bancos se omitem ante o terror imposto a pessoas indefesas. É dinheiro sujo procedente de bordéis, masmorras, carvoarias, barracões. São dólares de sangue extraído destes reféns dos criminosos vorazes cujo poder está longe de esgotar-se.
O capitalismo serve-se dos miseráveis para aumentar seu poder, transformando milhões de seres humanos em mercadoria. Em nome do lucro, se negociam pessoas. É o principio da acumulação ilimitada a todo vapor. Quanto mais os traficantes enriquecem, mais se empenham em traficar, mais querem aumentar suas contas na Suíça, Bahamas ou Caribe.

São pecados gerados pela idolatria

Na raiz do tráfico de seres humanos e do trabalho escravo está a idolatria. O pecado mortal do capitalismo não é o ateísmo, mas a idolatria. A civilização do século XXI é profundamente idolátrica seja na economia, na cultura e na política: "A riqueza absolutizada é obstáculo à verdadeira liberdade” (Puebla, 494). Paul Lafargue, genro de Marx, escrevia num panfleto de 1886 titulado A religião do capitalismo, que "o capital é o Deus que todos conhecem, veem, tocam, cheiram, provam; existe para todos os nossos sentidos. É o deus que ainda não encontrou ateus"[4].
Na Bíblia, a idolatria aparece como pecado originante de outros pecados[5]. Javé exige desprezo e rejeição radical de outros deuses - élohim ajerim (cf. Ex 20,3-4; 34,13; Dt 5,7-8; 27,15). Adorar realidades criadas no lugar de Deus (cf. Is 10,11; Jr 9,13ss.; Ez 8,17ss.) é o mais grave dos pecados e a maior das imbecilidades (Os 8,4ss; 13, 2; Jr 14,22; Is 40, 12ss, etc.). Para Jesus, o ídolo é uma realidade histórica concreta, o dinheiro (Mt 6, 24; Lc 16,13). Converter o dinheiro em poder supremo significa negar radicalmente ao Deus da vida (Col 3,5). Para São Paulo, por trás da idolatria se esconde a opressão da verdade e a ocultação da injustiça. O pecado da idolatria traz conseqüências imediatas sobre o próximo: perversidade, injustiça, ganância, maldade, assassinato (Rom 1,18ss). Na raiz do tráfico de pessoas está a idolatria do dinheiro (1Tm 6,10; Ef 5, 5). Para João Paulo II, por traz dos mecanismos perversos se escondem verdadeiras formas de idolatria: dinheiro, ideologia, classe social, tecnologia (SRS 37). Aparecida denuncia a idolatria do dinheiro como a primeira causa da violência (Aparecida, 78).
Portanto, o tráfico de pessoas e o trabalho escravo não podem ser considerados apenas um dano colateral de um sistema econômico, ou um problema político. A idolatria os converte em questão religiosa: "a adoração do não-adorável, e a absolutização do relativo, leva à violação do mais íntimo da pessoa humana. Eis a palavra libertadora por excelência: ao Senhor Deus adorarás e só a Ele darás culto (Mt 4,10)” (Puebla, 493).
Enfrentar, denunciar e combater o tráfico de pessoas é confessar a fé no verdadeiro Deus. A mensagem de Jesus é essencialmente uma mensagem de libertação: "A queda dos ídolos restitui ao homem seu campo de liberdade essencial” (Puebla 491). Se o capitalismo fosse ateu, talvez a fé cristã não tivesse tanta força subversiva. A fé no Deus de Jesus exige confessar o ateísmo diante dos ídolos do capital (cf. Mt 6, 24=Lc 16, 13).
A ÉTICA

As vítimas, primeiras destinatárias do ethos cristão

É um problema ético antigo. O povo de Israel sentiu em sua própria carne o que era trabalhar e viver desterrado (Gn 12, 1-10; 26,1-6). José, filho de Jacó, aparece na Bíblia como primeira vítima do tráfico de pessoas (Gen 37,13-28). Salvo da morte por Rubem, seu irmão mais velho, pois José "é nosso irmão, nossa carne”. Era mais vantajoso vendê-lo do que matá-lo e ocultar seu sangue para abafar a justiça. foi abandonado em uma cisterna vazia, encontrando por comerciantes madianitas que logo o venderam por vinte ciclos e levado ao Egito para trabalhar como escravo. Quando o irmão mais velho volta à cisterna "José não estava mais lá. Rasgou suas vestes e voltou para seus irmãos dizendo: o menino não está mais lá! E eu, para onde irei?” (Gn 37, 30). Rubem fracassou em sua tentativa de salvar seu irmão. E fica indignado ante a indiferença dos demais irmãos diante do desaparecimento do irmão mais jovem.
Mais tarde, os irmãos assumem sua culpa pelo ato e sua insensibilidade diante dos gritos desesperados do irmão clamando por não ser abandonado (cf. Gn 42, 21-22). Este relato bíblico sobre tráfico de pessoas revela que na fé cristã, a ética somente começa quando junto ao "eu” aparece um "tu”. Quando digo para outra pessoa "quero que tua liberdade e autonomia sejam”. O rosto do outro, como diz Lévinas, me solicita, me interpela. Para o cristão, a responsabilidade pela vítima se converte em imperativo ético: "amo-te como a mim mesmo”. Este "te” são todos os outros, sejam eles anônimos ou não. Por isso que as vítimas desconhecidas e anônimas do tráfico de pessoas e do trabalho escravo irrompem na consciência humana clamando por uma resposta ética e de justiça. Esta é a síntese de toda a Lei e dos Profetas:
"Tudo aquilo que quereis que os homens façam a vós, fazei-o vós mesmos a eles” (Mt 7,12; Lc 6,31).
O sofrimento e humilhação das vítimas é a chave de leitura para refletir e agir. Fortemente alicerçada no pólo do "eu” – no individualismo hedonista - nossa sociedade se caracteriza por uma radical aversão ao sofrimento, ao fracasso e à humilhação. Chegamos ao século XXI com níveis críticos de egoísmo e indiferença para com a dor do outro. Diante de tanta indiferença, o cristão tem uma tarefa crucial: revelar ao mundo que o outro existe e que seu sofrimento é real! A ética cristão é essencialmente profética, pois fizeram os profetas:
- "Ai daquele que constrói seu palácio desprezando a justiça, e amontoa seus andares a despeito do direito; que obrigam os outros a trabalhar de graça, sem pagar-lhes salário (...). Só tens olhos e coração para o lucro, para derramar sangue do inocente, para agir com brutalidade e selvageria” (Jr 22, 13.17).
- "Vendem o justo por dinheiro e o indigente por um par de sandálias” (Am 2,6).
- "Lançaram sortes sobre o meu povo; deram um menino por uma meretriz, e venderam uma menina por vinho, para beberem (Joel 4,3).
Em segundo lugar, o ethos cristão é mistagógico. No cristianismo a condição humana é lugar de encontro com Deus. A condição humana das vítimas é de sofrimento e de humilhação. O cristão é chamado a decidir-se diante da realidade do sofrimento da mesma forma como se posiciona seu Deus, ou seja, junto do sofredor. "Ele foi desprezado e rejeitado pelos outros... como alguém de quem os outros escondem sua face”(Is 53,1). A rejeição sofrida por Jesus é expressão máxima de um Deus que se deixa crucificar e rejeitar com os desprezados e humilhados. È sua resposta divina à crueldade e á violência infligida contra seus filhos e filhas.
O sofrimento das vítimas irrompe como lugar ético-teológico. Confessamos e professamos um Deus crucificado e solidário com todos os rejeitados. A cruz exposta em nossos altares é o maior dos símbolos de protesto: Ali também estão os indefesos, os torturados e escravizados. È Cristo identificado e crucificado com eles (Mt 25,31-46). Portanto, o amor primordial a eles é o grande sinal de incorporação do cristão ao crucificado (cf. Jo 13,34-5).
O sofrimento das vítimas é lugar privilegiado de experiência de Deus e da decisão ética: Conhecer-me é fazer justiça ao indefeso (Jr 22,15-17). A teologia desemboca na ética da compaixão indignada e libertadora. A consciência cristã não pode sentir-se livre enquanto existirem escravos. O ethoscristão coloca o cristão junto com todas as vítimas do tráfico. O cristão está sendo vendido em cada ser humano traficado. O ethos cristão coloca o cristão junto com cada trabalhador e trabalhadora escravizada. O cristão está sendo explorado em cada pessoa explorada, espoliada. A violência sobre as vítimas dói em mim: amar as vítimas do tráfico como a nós mesmos (Lv 19, 33-34).
Alguém disse algo semelhante: "Se você é capaz de tremer de indignação a cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então somos companheiros. Acima de tudo procurem sentir no mais profundo de vocês qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo” (Che Guevara).
A AÇÃO DA IGREJA

Cuidar das pessoas: Missão recebida de Jesus

A razão de ser e de agir da Igreja está fundamentada na missão e na pessoa de Jesus. É missão da Igreja colocar-se a serviço da vida. "A Igreja recebeu de Jesus a missão de cuidar do ser humano. Ao se fazer ser humano, Jesus revela o valor sagrado da pessoa. Tal missão pertence ao mais profundo de sua consciência evangélica" (CNBB, Doc.40, 203-204). Faz parte da identidade eclesial contribuir "com a dignificação de todos os seres humanos, juntamente com demais pessoas e instituições que trabalham pela mesma causa” (Aparecida, 398).A ação pastoral junto ao tráfico de pessoas e do trabalho escravo é expressão visível e privilegiada do ministério da evangelização. É a expressão concreta de uma Igreja consciente da sua missão de servidora do Evangelho. Não pode ser tratada como uma nota de rodapé.
Para cumprir tão sublime missão, a Igreja apóia-se no agir de Deus. No AT, Deus se revela como um libertador dos prisioneiros e humilhados. O modo de ser e de agir de Deus é de libertação. Deus quer um povo livre, solidário, irmanando, sem exploração. O ser e agir de Jesus levou a plenitude o ser e agir de Deus. Sua missão: proporcionar vida em abundância para todos (Jo 10, 10), mas principalmente aos mais pobres e abandonados (Lc 4, 14-21).

Do jeito de Jesus

O jeito de Jesus é a melhor atitude da Igreja diante das multidões atormentadas pela perversidade dos traficantes e dos capatazes. Duas atitudes: ação imediata e indignação profética. De um lado, Jesus trata de agir, pois ver o próximo humilhado lhe é intolerável (cf. Mt 8,14; Mc 3,1-4; Lc 13,10-13; Jo 11,35). De outro, indignação ante a indiferença e dureza de coração (cf. Mc 3,5; 10,5; Lc 13, 15-16). Na cruz, seu sofrimento não está centrado sobre si mesmo, pois ao assumir a figura do servo sofredor(Mt 8,17), assume a dor e a humilhação do povo como suas (Mt 11,28; 25,31-46).
Se Jesus identifica-se com cada encarcerado e humilhado e nas vítimas do tráfico de pessoas, a Igreja deve ter o mesmo sentimento. O problema do tráfico não é somente um problema sociológico, é, também, eclesiológico. A Igreja é ofendida e agredida em cada vítima do tráfico. É lugar teológico, onde o Deus de Jesus confessado pela Igreja se manifesta como impotente, débil, desprezado. Deus que faz do direito do oprimido seu próprio direito e causa. Para a Igreja, assim como para Jesus, não há nada mais valioso que a vida humana (Mt 5,23-24; 6,26-30; Mc 2,23-27; 12,33). É um problema de Deus, é um problema da Igreja, porque nas vítimas está em jogo a causa do Deus revelado em Jesus: Eu e o Pai somos Um (Jo 10, 30). E tudo o que a Igreja fizer a um destes pequenos, estará fazendo a Jesus (Mt 25, 31-46).
O compromisso da Igreja é o mesmo de Jesus: resgatar a vida e dignidade dos humilhados (Puebla, 114). Agir como Deus, defendê-los e amá-los (Puebla 1.142). O agir de Deus é amor. Presente nos humilhados, Deus espera da Igreja uma resposta de amor (1 Jo 4,19). Porque ela vê em cada ser humano, a imagem do próprio Deus vivo. No rosto das vítimas a Igreja identifica algo do resplendor da glória de Deus. Cristo, o Filho de Deus, com a Sua encarnação, num certo sentido, se uniu a cada mulher e homem.
O mistério pascal de Cristo - centro da liturgia da Igreja - é um mistério de libertação, que exorta e provoca continuamente a assumir a liberdade como tarefa. Karl Rahner dizia que "a Igreja deveria ser um bastião da liberdade; ensinar, viver e proteger a dignidade e, por extensão, a inviolabilidade do individuo: seu caráter de pessoa, seu destino eterno, sua liberdade”[6].

Todo cristão é um abolicionista

Segundo Paulo, o evangelho pode resumir-se em uma palavra: liberdade. Jesus, o grande libertador, proclamou o Evangelho da Liberdade. É o que nos narram aos evangelistas. Sua pregação na sinagoga soa como proclamação: Nunca mais a escravidão, nunca mais o cativeiro, nunca mais a opressão: "O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a remissão aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos, e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4, 18-19).
Somos ungidos no batismo para sermos abolicionistas como Jesus. Ungidos para proclamar e defender a liberdade e levar a Boa Notícia da libertação para todas as vítimas da escravidão. Assumir esta missão divina com a consciência de que o alcance da escravidão vai além dos milhões de vitimas do tráfico e do trabalho escravo no mundo. Somos desafiados a libertar toda a sociedade do jugo das estruturas de pecado enraizadas no pecado mortal da idolatria ao deus capital.
Como resposta ética à verdade do ser humano, sua dignidade última (teológica), a responsabilidade deve estar na raiz dos processos de libertação das desumanizações históricas. Precisamente neste ponto, no enraizamento da liberdade na verdade da dignidade humana e da criação, é imprescindível escutar aqueles para os quais a liberdade foi roubada.
Os cristãos, agindo individualmente, ou coordenados em grupos, associações e organizações, devem saber propor-se como «um grande movimento empenhado na defesa da pessoa humana e na tutela da sua dignidade» (Centesimus annus, 3). Toda ação social deve inspirar-se no princípio fundamental da centralidade da pessoa humana (Mater et magistra, 453). A promoção da dignidade de toda pessoa, o bem mais precioso que o homem possui, é «a tarefa central e unificadora do serviço que a Igreja é chamada a prestar à humanidade» (Gaudium et spes, 91).
Resgatar e acolher a imagem viva de Deus refletida no rosto dos oprimidos: Eu estive preso (Mt 25, 35). Servir as vítimas é adorar a Deus em espírito e verdade, é o verdadeiro culto espiritual de que fala Isaías. É contemplar seu rosto no rosto de todo prisioneiro clamando por libertação (Mt 25, 35). Em todo ser humano está a imagem viva de Deus esperando para ser amado e acolhido como tal, pois "Cristo é tudo e está em todos” (Col 3, 11). No abraço da cruz se rompem todas as barreiras da violência (Ef 2,16). O sangue de Cristo nos torna próximos uns dos outros (Ef 2, 13).

CONCLUSÃO: CAUSA DAS VÍTIMAS, CAUSA DE DEUS

O combate ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas está contemplado de forma oficial, assumido definitivamente pela Igreja no Brasil: "O serviço à vida começa pelo respeito à dignidade da pessoa humana (CNBB, Diretrizes gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil2011-2015, n.107). N. 111: "Atenção especial merecem também os migrantes forçados pela busca de trabalho e moradia...; c) as vítimas do tráfico de pessoas”. Que a Igreja jamais esconda sua face diante de tantos servos sofredores (Is 53,1) clamando por seus direitos e por justiça. Não podemos permitir que se quebre esta cana rachada e nem que se apague a mecha que ainda fumega... até que seja estabelecida a verdadeira justiça sobre a terra (Is 42, 2.4=Mt 12, 18-21).
A crueldade do escândalo do tráfico de pessoas e do trabalho escravo exige uma opção pastoral decidida e inegociável. Sua presença dolorosa e perturbadora é sacramento da presença de Deus clamando por libertação. Em última análise, significa muito mais do que uma ação pastoral. É um autêntico ato de religião. É fazer a vontade do Pai assim na terra como no céu. É profissão de fé levada às últimas conseqüências. É Deus, através de nós, amando e libertando as vítimas: "amai-as como Eu as amo” (Jo 13,34). Neste tipo de amor, já não somos apenas nós que amamos, mas é Deus amando em nós (Jo 17,21.26). Este gesto de humanidade revela a divindade que habita em nós. Enfrentar o tráfico de seres humanos é assumir a "causa de Deus”. Deus tanto amou o mundo que enviou seu Filho Único, a fim de que "o carrasco não triunfe sobre a vítima”.
Empenhar-se nesta causa de Deus, é combater o bom combate (2Tm 4,7), é ser uma carta de Cristo (2 Cor 3,3), é assumir o ministério da Justiça de Deus (2 Cor 3,9), é ser movidos pelo Espírito da liberdade, pois onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade.
Notas:
(1) Texto apresentado no II Seminário Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo. Brasília, 11-13/08/2011.
(2) PAULO VI, Sínodo dos bispos: A Justiça no mundo, 1971. In: http://www.vatican.va/roman_curia/synod/documents/rc_synod_doc_19711130_giustizia_po.html(3) Puebla (1979) considera como situação de pecado o enorme abismo entre ricos e pobres (28) originada por estruturas sociais, políticas e econômicas injustas (1155) "que obstaculizam a passagem de situações menos humanas a mais humanas” (16). Puebla qualifica como estruturas de pecado aos fatores causadores de miséria, um autêntico escândalo para fé cristã e que, por isso, devem ser superadas (28). A Assembléia do Sínodo sobre Reconciliação e Penitência (1985) também trata do pecado social e o pecado estrutural.
(4) LAFARGUE, Paul. A Religião do Capital. Rio de Janeiro: Achiamé, s/d (original de 1886), s/d, p. 16.
(5) Para uma análise dos textos bíblicos sobre a idolatria veja-se o excelente estudo de Pablo RICHARD, Nossa luta é contra os ídolos, em: VV.AA. A luta dos deuses: os ídolos da opressão e a busca do Deus Libertador. São Paulo: Paulinas, 1985. 9-38.
(6) RAHNER, K. Dignidad y libertad del hombre, em: Escritos de Teología - vol. II, Madrid: Taurus, 278.
[Autor de Fe cristiana y sentido del trabajo. Madrid: Paulus, 2011; O sentido do trabalho no capitalismo global: atualidade da Doutrina Social da Igreja. Paulinas, 2011].
Fonte: adital

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