Roberto Arriada Lorea, juiz titular do Juizado de Violência Doméstica contra a Mulher de Porto Alegre (RS), avalia o que mudou no Judiciário nestes cinco anos de implantação da Lei Maria da Penha e o que ainda falta para que a mulher que passa por violência doméstica seja atendida de forma adequada.
A Lei Maria da Penha trouxe maior visibilidade para a violência contra as mulheres no Judiciário
Assim como ocorreu com os direitos da infância e da juventude, área na qual juízes, promotores, defensores públicos e agentes de outros saberes se especializaram, a Lei Maria da Penha constituirá um campo de violência doméstica no Judiciário.
Em Porto Alegre, há apenas um Juizado, mas se está na iminência de criar novos juizados de violência doméstica, quando teremos diferentes operadores do Direito e profissionais se especializando nessa área. Participei recentemente de uma capacitação sobre violência doméstica em que estavam presentes policiais, oficiais de justiça e servidores de várias áreas, e propus que este tipo de evento aconteça periodicamente, para que haja a oportunidade de discussão com os diferentes agentes sobre a complexidade da violência contra as mulheres.
Um passo decisivo é quando a mulher rompe o segredo da violência doméstica
É importante que todos os profissionais envolvidos compreendam a dificuldade da mulher para tornar pública essa situação. É como se houvesse um “segredo”; geralmente o homem não sai comentando no trabalho, nem tampouco a mulher conta para parentes ou amigas que ela sofre uma situação de violência doméstica.
Mas, no momento em que a mulher se sente estimulada ou segura, por alguma razão, para procurar ajuda e postular uma medida protetiva e o agressor é intimado, há uma ruptura desse “segredo”. Este é um passo importante para a proteção da mulher.
A Lei Maria da Penha já provocou uma transformação cultural
O fato de, cada vez mais, os agressores serem intimados e de a violência doméstica se tornar pública está fazendo com que eles se dêem conta e se identifiquem como agressores. Ou seja, a Lei Maria da Penha está provocando uma mudança no imaginário da população. Antes, era mais comum ouvirmos dos agressores: “Mas eu não sou bandido, sou honesto, trabalhador, não fiz nada”.
Se o sujeito rouba ou é traficante e vai preso, ele tem mais facilidade para compreender, pois sabe que isso faz parte do sistema. Já se é detido por ser um agressor, sofre um impacto e um choque cultural.
Nós, promotores de justiça, percebemos que a população está assimilando que é crime bater na mulher. Também há agressores, de acordo com depoimentos das vítimas, que dizem: “Não vou quebrar você toda por causa da Lei Maria da Penha”.
A Lei tem eficácia simbólica
Uma situação interessante e que acontece com bastante frequência é a mulher que pede o afastamento do agressor do lar. Eu indefiro o pedido e marco uma audiência. Quando ela chega na audiência, diz: “doutor, o senhor mandou tirar ele de casa, ele já foi embora, para mim já está resolvido”.
Mas eu não mandei tirá-lo de casa; quando ele é intimado para vir à audiência, em muitos casos, ele vai embora. O fato de ter rompido o segredo da violência e de o agressor ser chamado em juízo já faz com que ele saia de casa. Trata-se, portanto, de uma eficácia simbólica impressionante. Em primeiro lugar, pela atitude da mulher, que reagiu à agressão. Muitas vezes ela sofreu por muito tempo e é a primeira vez que busca a justiça. Esta mudança de postura impacta no agressor.
Mas eu não mandei tirá-lo de casa; quando ele é intimado para vir à audiência, em muitos casos, ele vai embora. O fato de ter rompido o segredo da violência e de o agressor ser chamado em juízo já faz com que ele saia de casa. Trata-se, portanto, de uma eficácia simbólica impressionante. Em primeiro lugar, pela atitude da mulher, que reagiu à agressão. Muitas vezes ela sofreu por muito tempo e é a primeira vez que busca a justiça. Esta mudança de postura impacta no agressor.
Claro que não dá para generalizar e cada caso é um caso. Há estatísticas que revelam que a reação da mulher pode expô-la a uma situação de risco maior, porque, ao querer romper com a dominação masculina, isso faz com que o agressor passe a ameaçá-la ainda mais para não perder o domínio sobre ela.
Há uma visão distorcida: a mulher nunca desiste de acabar com a violência doméstica
As ocorrências de violência doméstica que envolvem relações de intimidade muitas vezes acabam gerando um sentimento de frustração em vários profissionais envolvidos. É o oficial de justiça que vai retirar o agressor de casa e a mulher já não quer que tire. É a brigada militar que vai atender a ocorrência e a mulher não quer que prenda o sujeito. E quando esses profissionais chegam até a mim eu digo a eles: a situação pode ser vista de duas formas: a primeira, que é a mais simples, é que essa mulher não sabe de fato o que deseja; ela aciona a segurança pública e a justiça para depois recuar; a segunda opção, e a que me parece mais adequada, é que nós não estamos sabendo identificar qual é o problema e a necessidade dessa mulher para, só então, prestar o apoio e o serviço necessários; pois ela já pediu ajuda reiteradas vezes.
Muitas vezes, elas querem ajuda para que o companheiro pare de beber; que se trate porque está usando crack; que deixe de ser ciumento; que arrume um emprego; que deixe a amante. Por não terem aonde recorrer, elas acabam procurando a Delegacia da Mulher, que é a referência dessa mulher em Porto Alegre. Porém, não é oferecido atendimento psicológico, entrevista com assistência social ou orientação jurídica, atendimentos de que elas precisam antes de decidir se vão ou não abrir o processo criminal.
Em geral, essa mulher não quer abrir um processo na justiça, mas uma mudança de comportamento do companheiro. Mas a delegacia é sua única referência: todo mundo sabe onde fica. Ela é, inclusive, estimulada a ir até lá, onde faz boletim de ocorrência. São dezenas de mulheres que recorrem à delegacia das mulheres todos os dias. Surge, então, a expectativa de que elas querem processar criminalmente alguém, o que não corresponde muitas vezes à verdade.
Quando a mulher chega à audiência e diz ao juiz que não quer um processo criminal, só deseja que o juiz converse com o marido, porque ela quer se separar e não tem para onde ir, ela entra para as estatísticas como uma mulher que desistiu do processo, quando, na realidade, ela nunca desistiu de nada, pois nunca quis processar criminalmente. Está havendo, portanto, uma distorção.
O que quero deixar claro é que nem toda mulher que chega em juízo e decide não processar criminalmente está desistindo de alguma coisa. Muitas dessas mulheres nunca quiseram isso de fato. Porém, todos esses casos vão aparecer no sistema e na estatística como desistência.
É muito importante, portanto, que a mulher seja orientada de que o Judiciário só deve ser usado para os casos em que se deseja de fato processar o agressor criminalmente, inclusive com a possibilidade de eventual prisão, pois trabalhamos com a ferramenta da prisão preventiva nos casos graves.
Falta uma rede efetiva de atenção nas áreas de assistência social, psicológica e orientação jurídica
As prefeituras precisam, com urgência, manter Centros de Referência de Apoio à Mulher que acolham e orientem a mulher vítima de violência. É fundamental a expansão desses serviços até para acompanhar as mulheres, caso elas decidam registrar uma ocorrência, para que elas tenham acolhimento durante o processo no Juizado. Esses serviços têm papel chave na identificação do que realmente a mulher necessita; qual é a situação de cada caso; quais são os apoios emergenciais para a mulher e para os filhos etc.
Ao dar visibilidade para a violência, a Lei Maria da Penha estimulou que mais mulheres procurassem ajuda, mas nenhum Judiciário estadual do país está preparado para essa avalanche de processos. Todos os Judiciários estaduais já estavam abarrotados de processos, com morosidade crônica, dificuldades materiais e humanas, e surgiu a Lei Maria da Penha. Não há estrutura; não se imaginava que haveria uma demanda tão grande
O Conselho Nacional de Justiça preconiza que o Juizado da Violência Doméstica tenha até 2 mil processos. Aqui, em Porto Alegre, nós temos 20 mil e há lugares em que esse número ainda é maior.
A própria Lei Maria da Penha anuncia que o Direito Penal não dá conta do problema da violência doméstica.
Fonte: Agência Patrícia Galvão
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