“A religião, em seu processo de construção social, é marcadamente influenciada pelo masculino. Um dos exemplos mais marcantes que observamos está no cristianismo, que encontra em seu processo de evolução histórico-social um sistema patriarcal, em que a mulher desaparece no relato dos evangelhos como parte do movimento de Jesus”.
Fernanda Lemos, professora na Faculdade de Teologia Avivamento Bíblico, possui graduação em Teologia pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) e mestrado em Ciências da Religião pela mesma instituição. Atualmente, é doutoranda na área de Ciências Sociais e Religião da UMESP. A professora é também membro do Grupo de Estudos de Gênero e Religião Mandrágora/NETMAL do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da UMESP. Ela tem experiência na área de sociologia, com ênfase em Sociologia da Religião, atuando principalmente nos temas de religião, gênero, modernidade, discurso religioso e masculinidade. Ela concedeu a entrevista que segue, por e-mail, para a IHU On-Line. Em suas respostas, Fernanda Lemos afirma que “a religião, em seu processo de construção social, é marcadamente influenciada pelo masculino. Um dos exemplos mais marcantes que observamos está no cristianismo, que encontra em seu processo de evolução histórico-social um sistema patriarcal, em que a mulher desaparece no relato dos evangelhos como parte do movimento de Jesus”.
IHU On-Line - Como se dá a relação entre a representação social da masculinidade e a religiosidade contemporânea? A religiosidade hoje é mais caracterizada pelo masculino? Quais as conseqüências sociais disso?
Fernanda Lemos - A relação entre masculinidade e religiosidade é muito tênue, poderíamos até considerar que há um processo de imbricação entre essas duas esferas sociais. Se por um lado a religião informa ao homem e à mulher como devem se representar socialmente, por outro, há indivíduos que aceitam as imposições representativas legítimas da religião. A religião, em seu processo de construção social, é marcadamente influenciada pelo masculino. Um dos exemplos mais marcantes que observamos está no cristianismo, que encontra em seu processo de evolução histórico-social um sistema patriarcal, em que a mulher desaparece no relato dos evangelhos como parte do movimento de Jesus. Após longos séculos de institucionalização do cristianismo, observamos uma religião “masculinizada” em que os acessos ao poder institucional estão legitimados pelo sexo. Dessa forma, ser homem ou ser mulher no âmbito religioso pode significar mais que uma representação sexual, e sim o acesso ao poder religioso. Esse fenômeno de “masculinização da religião” é possível graças aos símbolos que o cristianismo cristalizou. Um exemplo disso é que a própria imagem de Deus é humanamente associada à figura masculina. Pensar em um deus cristão feminino é simplesmente cair na heresia e “decretar a caça às bruxas”. O imaginário religioso é de um deus macho, forte e racional, logo, com características atribuídas ao masculino. Enquanto o imaginário da figura feminina sempre esteve associado à emoção e à fraqueza.
A imagem de Deus como homem
Numa pesquisa que realizei com homens que trabalhavam em uma universidade da região do grande ABC, no estado de São Paulo, grande parte deles afirmaram que imaginavam Deus como homem, pois o consideravam forte, com barba e racional, isto é, representações sociais masculinas informadas por longos séculos pela religião. Esse imaginário religioso masculino implica um problema contemporâneo para o homem e para a mulher. Para o homem contemporâneo todos os atributos e imposições representativas fazem-no ter que assumir posturas “másculas”, a fim de demonstrar uma identidade forte, grosseira, racional e violenta. Além do mais, a paternidade e a providência familiar colocam-no no topo da masculinidade, a hegemônica, aquela legitimada pela sociedade e pela religião. Mas pergunto: e quando o homem não consegue atingir as exigências da masculinidade hegemônica? Isso implica um problema contemporâneo, um beco sem saída. Se há uma pluralidade identitária oferecida pela modernidade, as masculinidades estão em constante conflito com “a masculinidade” da religião. Para a religião cristã, a homossexualidade ainda é compreendida como desvio de comportamento, logo, um homem que assuma sua sexualidade homossexual está sujeito a perder seu status na religião da qual faz parte, visto que converge com a masculinidade heterossexual imposta pelos sistemas religiosos.
As conseqüências para as mulheres de uma religião “masculina”
Enquanto para o homem, as conseqüências sociais de uma religião marcadamente influenciada pelo masculino impõem o conflito, do que a religião espera que ele seja e o que de fato ele é, para as mulheres as conseqüências são outras. O próprio mito de criação cristão informa que a mulher é responsável por toda a desgraça humana, que por ter dado ouvido à voz da serpente, todos os conflitos sociais – deste período até a contemporaneidade – existem em decorrência dela, por sua culpa; graças a este episódio, ela é obrigada a ser submissa ao homem, e eternamente pagar por sua dívida irremediável e milenar. Essa relação entre masculinidade, feminilidade e religião contribui para a perpetuação das desigualdades de gênero, a violência simbólica vivida pelas mulheres e a imposição sobre o homem de possuir os atributos de Deus. Daí que no longo processo de construção social do masculino e do feminino a lógica é “se o homem é a representação de Deus aqui na terra, a mulher o é do diabo”.
IHU On-Line - Em que sentido a masculinidade influencia o campo religioso? E como se dá o processo inverso (influência do campo religioso na masculinidade)?
Fernanda Lemos - A masculinidade influencia no campo religioso da mesma forma que o campo religioso influencia a masculinidade. É um processo dialético e interdependente. Max Weber[1], um teórico da sociologia clássica, em sua obra A ética protestante e o espírito do capitalismo, no início do século passado, percebeu o imbricamento existente entre o campo religioso e o social. Observando a ética protestante, percebeu que há indícios de que a forma de vida ascética dos protestantes do século XVIII influenciou no surgimento do capitalismo. Esses indivíduos não freqüentavam bordéis, bares, festas, logo, todo o dinheiro que ganhavam servia para a subsistência e acúmulo de capital, o lema era “trabalhar o máximo possível e guardar tudo o quanto puder”. Essa ética protestante foi responsável pela formação da burguesia e toda sua forma de constituição do núcleo familiar.
A masculinidade como um projeto burguês
No que diz respeito à masculinidade e à religião, a pesquisa de Weber contribui para a percepção de que a masculinidade nada mais é que um projeto burguês, ancorado sem dúvida pelas idéias religiosas. Ser homem na religião implica assumir características da masculinidade “ditada” pelo sistema religioso, o desvio de tais características certamente resultará na exclusão do grupo. A masculinidade burguesa é aquela marcada pela paternidade associada à provisão do núcleo familiar, a fim de garantir a organização do estado moderno. Desse modo, o estado encontra na religião uma grande aliada, pois esta é responsável pela manutenção de paradigmas fundamentais à manutenção do estado. Os dogmas religiosos ajudam na compreensão de que ser homem e ser mulher na sociedade é uma determinação divina, e que o desvio da heterossexualidade é um pecado mortal e diabólico, pois, segundo o mito de criação, Deus criou o homem e a mulher para se multiplicarem e reproduzirem, algo impossível numa relação homossexual. E mesmo com o processo de secularização e laicização do Estado, essas idéias ainda são presentes nos sujeitos religiosos contemporâneos, que encontram no campo religioso símbolos para legitimar seus conflitos. Apesar de toda influência religiosa, o sujeito religioso moderno é um sujeito relativamente autônomo que absorve da religião apenas o que lhe interessa, haja vista que apesar da proibição papal católica no uso de métodos contraceptivos, o que se observa é a utilização desses métodos pelos fiéis. Além disso, não podemos desconsiderar que, apesar de um estado laico, a formação do Ocidente se dá influenciada pelo cristianismo, e por um longo processo de socialização dos indivíduos.
IHU On-Line - Como se deu a construção e a evolução social da masculinidade e da feminilidade? O que mais mudou no homem e na mulher, comparando a modernidade com a contemporaneidade?
Fernanda Lemos - Com toda a certeza, a construção e a evolução social da masculinidade e da feminilidade se deram na diferença. As relações sociais de sexo se construíram, ao longo do processo histórico da humanidade, em oposição. A construção social da masculinidade se dá na misoginia[2], no horror a tudo que se apresente como feminino. Isso se torna evidente em alguns grupos específicos, como, por exemplo, colégios militares de rapazes. Toda e qualquer ação que lembre atitudes femininas são coagidas pelo grupo; elementos como força, coragem, agressividade são exaltados como características fundamentais para o grupo dos homens. Em grupos indígenas, também observamos situações muito bem definidas para a definição do gênero, a casa das meninas e a casa dos meninos, onde o trânsito é proibido e coagido. Nascemos com poucas opções identitárias, ou somos homens ou somos mulheres, opções estas que estão condicionadas ao corpo com o qual nascemos. Em nosso corpo biológico, é expresso o gênero, sem que tenhamos a liberdade de escolha. Pertencer ao sexo feminino ou masculino nos informa inúmeras possibilidades, dentre elas, nossa capacidade e/ou incapacidade de atuação social. E nisso reside a evolução social do gênero.
A mulher como sujeito de sua própria história
A contemporaneidade contribuiu muito para a inserção da mulher como sujeito de sua própria história. Entretanto, as relações sociais de sexo ainda são desiguais, principalmente no campo religioso. Um exemplo disso está no fato de que algumas mulheres pentecostais, possuidoras de carisma, não podem exercer funções de liderança em suas comunidades locais por serem simplesmente mulheres. No entanto, elas – para exercerem seu carisma – fundam movimentos religiosos autônomos. Com o passar do tempo, tais movimentos assumem a dimensão mais burocrática de grupo e são cooptados pelos homens que as impediram de liderar. Elas, por sua vez, são afastadas da liderança dada pelo carisma pessoal, e retornam a suas atividades de meras espectadoras. Um outro exemplo nítido pode ser percebido na conquista das mulheres no campo do trabalho. Inúmeras mulheres enfrentam uma jornada diária de trabalho de aproximadamente oito horas, ganham seus salários, encontram uma relativa autonomia individual, pois são as grandes mantenedoras do núcleo familiar. Entretanto, apenas acumularam funções. Elas, além de manterem uma jornada diária de trabalho, continuam sendo donas de casa, mães e esposas, ou seja, uma tripla jornada de trabalho semanal.
Ainda falta mudança nas relações de gênero
Pergunto se as mudanças contemporâneas trouxeram benefícios ou malefícios às mulheres, visto que ainda observamos um mercado capitalista que absorveu a força produtiva feminina a um custo menor do que é pago ao homem. Esses fatores evidenciam que ainda não ocorreu uma mudança estrutural significativa nas relações de gênero, pois a violência simbólica ainda é um dado presente em todos os setores sociais, bem como a materialização dessa violência, que culmina inevitavelmente na agressão física. O que se pretende, ao questionar a contribuição da contemporaneidade nas conquistas femininas, não é a vitimização das mulheres, mesmo porque as teorias de gênero colocaram as mulheres em percepção de que são sujeitos de sua história. Entretanto, é impossível negar os dados das delegacias de mulheres de todo o Brasil e a observação empírica do campo religioso.
IHU On-Line - A autonomia da mulher contemporânea incomoda o homem? Como ficam as relações de gênero e as relações sociais em geral se considerarmos uma mulher mais autônoma e mais auto-suficiente em relação ao homem?
Fernanda Lemos - Mas será que a mulher contemporânea alcançou sua autonomia? O problema é que quando falamos “da mulher contemporânea” damos esta caracterização a todas as mulheres, sejam elas indígenas, asiáticas, brancas, latino-americanas, européias, afro-descendentes, negras, empobrecidas, ricas, empregadas, desempregadas, casadas, solteiras. Não existe apenas um modelo de mulher contemporânea, existem inúmeras, cada uma com sua história sociocultural. A autonomia está associada a uma série de fatores sociais e culturais, dentre eles aspectos de classe. É simples pensar em uma mulher autônoma que seja de classe média e socialmente estabelecida. É difícil, porém, pensar na autonomia de uma mulher empobrecida que depende de seu companheiro para sustentar os filhos e a si própria. É certo que a mulher, na contemporaneidade, alcançou sua autonomia, mas vale ressaltar que apesar de toda luta do movimento feminista e das teorias de gênero para desconstruir as desigualdades sociais e de sexo, ainda há muita estrutura a ser balançada. Não diria que a autonomia da mulher contemporânea incomoda o homem, mas que as transformações sociais trazidas pelo movimento feminista e a reinvindicação das mulheres fizeram os homens repensarem a forma como a sociedade estava organizada, e isso gerou uma crise, se considerarmos que os homens sempre foram os sujeitos legítimos da história da humanidade.
A tão conhecida e falada “crise da masculinidade” não está associada à perda de espaço dos homens na conquista de espaço pelas mulheres. Atualmente sabemos que muitas mulheres sustentam sozinhas suas casas, enfrentam uma jornada diária de trabalho e ainda educam seus filhos; que o número de mulheres nas universidades é superior a dos homens; que dentro das religiões elas são a maioria, apesar de ainda não ocuparem os cargos de liderança em proporção à sua participação. Poderíamos dizer que a inserção das mulheres em campos que outrora eram considerados masculinos trouxe ao homem um desconforto e a necessidade de reorganização de seu papel na sociedade. Os espaços públicos sempre foram dos homens, as mulheres estavam destinadas ao espaço privado da casa e da família. Na contemporaneidade, essa linha que demarcava o espaço público e privado, ou seja, o sexo está se decompondo paulatinamente. Na verdade, ela não se tornou simplesmente auto-suficiente, mas, ocupou espaços que outrora eram exclusivamente dos homens.
IHU On-Line - Como a senhora avalia o impacto das teorias feministas e das reivindicações das mulheres no mundo acadêmico?
Fernanda Lemos - Assim como o campo religioso, o mundo acadêmico ainda é masculino, apesar das diversas especializações e pós-doutorados, as mulheres ainda têm que provar que são capazes de assumir as funções consideradas “dos homens”. No seu início, as teorias feministas foram motivos de “chacota” no meio acadêmico. As feministas eram consideradas mulheres “mal-amadas”, que “rasgavam sutiã” e que “odiavam homens”. Hoje esse ranço de certa forma ainda existe, mas as teorias feministas conseguiram se inserir no meio acadêmico e mostrar a que vieram. Não dava mais para dizer que relações sociais desiguais de sexo eram uma fantasia, mesmo porque havia evidências sociais demonstrando que os campos sociais expressam diferenças significativas de gênero. O movimento feminista foi fundamental para a percepção de que as mulheres poderiam ser sujeitas de sua própria história. A radicalidade do movimento foi necessária para a mudança social, e a constatação de que as mulheres não queriam apenas “serem superiores aos homens”, mas, alcançar a eqüidade.
As teorias de gênero
Na década de 1990, surgem as teorias de gênero, que das ciências sociais compreenderam que as relações sociais de sexo eram construídas de uma dialética entre o homem e a mulher, ou seja, falar dos problemas das mulheres implicava fundamentalmente falar dos homens, visto que a luta de poder se dá na relação. Decorrentes disso também, as teorias feministas contribuíram para a discussão das masculinidades e dos problemas contemporâneos dos homens, visto que entender a representação social da masculinidade implica compreender a violência física e simbólica pela qual as mulheres vivenciam. Dessa forma, poderíamos afirmar que a reivindicação das mulheres e o impacto das teorias feministas no mundo acadêmico foram fundamentais para a inserção da mulher neste campo. Todavia, elas ainda são minoria e quando concorrem a um cargo têm que provar que são capazes, enquanto os homens têm sua capacidade legitimada simplesmente por serem homens. Atualmente, no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, temos um corpo docente formado por dezenove professores, dos quais apenas dois são mulheres. Esse dado demonstra que, apesar da inserção das mulheres no mundo acadêmico e a influência significativa das teorias de gênero neste mundo, os números ainda expressam as desigualdades.
IHU On-Line - Quais as possibilidades e contribuições das mulheres em meio às transformações atuais no âmbito da cultura, da ecologia, das religiões...?
Fernanda Lemos - As possibilidades e contribuições das mulheres nos campos sociais são inumeráveis. Assim como os homens, elas são evidentes e factuais. Vivemos num período de profunda transformação, visto que a modernidade trouxe consigo a possibilidade da transformação e rompimento das verdades absolutas. No âmbito da ecologia, as mulheres já vêm contribuindo há muito tempo com o ecofeminismo. As teorias ecofeministas têm se preocupado há muitas décadas com a relação de dominação que os homens desenvolveram com a natureza; a exploração desenfreada sempre foi um questionamento das feministas, mesmo porque ela é reflexo da dominação masculina sobre as mulheres. No que diz respeito às religiões, a inserção das mulheres nas lideranças religiosas ainda é muito vagarosa, por causa da resistência das hierarquias clericais que são predominantemente masculinas. Mesmo assim, elas têm discutido sobre uma teologia feminista, que inclua as mulheres como participantes do pensar sobre Deus, de suas experiências e não somente da experiência dos homens. Tais assuntos são discutidos em nosso Grupo de Estudos de Gênero e Religião Mandrágora/NETMAL, do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. O grupo é composto por estudantes do Programa de Ciências da Religião interessados/as na contribuição de homens e mulheres em todos os setores da sociedade, principalmente no campo religioso.
--------------------------------------------------------------------------------
[1] Max Weber (1864-1920): sociólogo alemão, considerado um dos fundadores da Sociologia. Ética protestante e o espírito do capitalismo é uma das suas mais conhecidas e importantes obras. A edição brasileira mais recente foi publicada em 2004, pela Companhia das Letras, Rio de Janeiro. Com o título Max Weber: a ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Cem anos depois, a IHU On-Line dedicou-lhe a sua 101ª edição, de 17-05-2004. De Max Weber o IHU publicou o Cadernos IHU em Formação nº 3, 2005, chamado Max Weber – o espírito do capitalismo. (Nota da IHU On-Line)
[2] Misoginia é um movimento de aversão ao que é ligado ao feminino. Algumas teóricas feministas pensam que a sociedade patriarcal é construída nesse movimento de expurgar o que é feminino, e de expurgar as mulheres, torná-las alheias, abjetas. (Nota da IHU On-Line)
(Fonte: http://www.unisinos.br/ihu)
Nenhum comentário:
Postar um comentário