A exploração sexual de adultos e crianças na Amazônia é um fenômeno antigo que tem raízes profundas e está relacionada ao mercado de trabalho e à formação da região amazônica. Durante o processo de colonização e desenvolvimento local, o tráfico e a exploração mudaram de configuração, mas continuam “expressando a forma como as relações de trabalho e de convivência se organizam no contexto da ocupação colonial e capitalista da região”, aponta Hazeu à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail.
Pesquisador da ONG Sociedade de Defesa dos Direitos Sexuais da Amazônia (Só Direitos), de Belém do Pará, Marcel Hazeu estudou o tráfico de mulheres do Brasil e da República Dominicana para o Suriname e enfatiza que o tráfico e a exploração sexual na região se intensificam porque há “poucas oportunidades para a população local”. O mercado do sexo, “vinculado a todas as atividades econômicas (construção, transporte, mineração, etc.)”, facilita e possibilita a entrada de crianças e adolescentes em um ciclo de prostituição que se repete a cada nova geração.
Marcel Hazeu é autor da dissertação Migração internacional de mulheres na periferia de Belém e atualmente cursa doutorado em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal do Pará. Ele coordenou pesquisas sobre exploração sexual de crianças e adolescente e sobre tráfico de pessoas na Amazônia, entre as quais citamos Tráfico de Mulheres: um novo / velho drama amazônico.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que motivos favorecem a exploração sexual na região amazônica?
Marcel Hazeu – A exploração sexual faz parte de um dos problemas que cercam o tráfico de mulheres, o qual precisa ser entendido a partir da questão constituinte, que é a exploração do trabalho em combinação com o impedimento do direito de ir e vir, ou seja, situações análogas à do trabalho escravo. Estas situações podem ser identificadas no contexto do mercado de trabalho formal e informal, tanto na esfera pública quanto privada. O deslocamento de um lugar para outro é um segundo elemento necessário para falar em tráfico de mulheres, uma vez que a saída de uma realidade, onde elas contavam com uma rede social mínima de proteção e o domínio mínimo do espaço para uma nova realidade, torna-as estranhas e sem acesso às relações sociais locais e, portanto, mais vulneráveis e dependentes das pessoas que organizaram sua viagem e seu lugar de estada.
Discutir tráfico de mulheres na Amazônia começa, portanto, com uma análise do mercado de trabalho, neste caso específico de mulheres de classes populares. Como estas mulheres na Amazônia se inserem no mercado trabalho local e internacional? Quais são as possibilidades e nichos de trabalho para mulheres na Amazônia? O que é considerado trabalho?
O mercado do trabalho na Amazônia se estruturou historicamente em decorrência da exploração de suas riquezas e da implementação de infraestruturas para a segurança nacional no sentido de escoar as riquezas ou providenciar recursos energéticos para a produção industrial vinculada à exploração de recursos naturais. Através de estímulo à migração espontânea, de organização da migração oficial e do aviamento de homens e mulheres de outras partes do Brasil, onde suas condições de vida impediram sua permanência com qualidade ou perspectivas, pessoas chegaram à Amazônia. O mercado de trabalho abriu espaço para mão de obra masculina na construção de obras e na garimpagem. Para as mulheres, o trabalho significava cuidar desta mão de obra masculina e, portanto, elas atuavam como cozinheiras, prostitutas, lavadeiras, etc., além de exercerem atividades de compra e venda. Muitos homens e mulheres chegaram e chegam à Amazônia através de esquemas de tráfico de pessoas, aqui chamado de aviamento, ou seja, escravidão por dívida, isolamento, ameaças, violência e vigilância.
Esta lógica se perpetuou nas últimas décadas da ocupação/invasão da Amazônia apesar da diversificação do mercado, do crescimento das cidades e dos meios de transporte e comunicação. Uma novidade das últimas décadas é a ampliação destes esquemas de migração e tráfico de pessoas para países vizinhos (muitas vezes vinculados à atividade garimpeira) e para países europeus.
Ideologicamente, ocorreu outro movimento que prejudicou o entendimento e o enfrentamento desta situação: o descredenciamento de vários tipos de trabalho de mulheres como trabalhos propriamente ditos. Por exemplo, o trabalho doméstico e o trabalho na prostituição. Em vez de serem consideradas como trabalhadoras exploradas, traficadas e escravizadas, sua situação foi enquadrada como não trabalho, vagamente identificada como algo que deve ser considerado "atividades naturalmente informalizadas de reprodução" ou como "atividades moralmente condenáveis".
Exploração sexual
O termo “exploração sexual” foi adotado no Brasil como expressão para a realidade de crianças e adolescentes que se encontraram no mercado de sexo, uma forma de trabalho infantil a ser banida. Para mulheres e homens adultos, o termo não tem uma definição clara e é usado no combate à prostituição em geral (abolicionismo). Tentativas de definir exploração sexual como prostituição forçada ou escravidão sexual não dominam o debate.
Finalmente, respondendo à pergunta: A história da colonização da Amazônia se confunde com as histórias de tráfico de mulheres. Ou seja, não se trata de um fenômeno novo, mas de uma realidade que muda de configuração ao longo do tempo, expressando a forma como as relações de trabalho e de convivência se organizam no contexto da ocupação colonial e capitalista da região.
Podemos identificar o seguinte:
• A escravidão de mulheres indígenas e, posteriormente, de mulheres africanas nas plantações na Amazônia e nos centros urbanos na época colonial até a abolição da escravidão.
• O aviamento de homens e mulheres vinculado à exploração da borracha.
• O aviamento de homens e mulheres vinculado à construção de grandes obras na Amazônia.
• O aviamento de homens e mulheres vinculado à atividade garimpeira no interior da Amazônia.
• O tráfico de mulheres para países da pan-amazônia e para Europa.
• O aviamento de homens e mulheres vinculado à exploração da borracha.
• O aviamento de homens e mulheres vinculado à construção de grandes obras na Amazônia.
• O aviamento de homens e mulheres vinculado à atividade garimpeira no interior da Amazônia.
• O tráfico de mulheres para países da pan-amazônia e para Europa.
IHU On-Line – Que aspectos favorecem a exploração sexual infantil na Amazônia?
Marcel Hazeu – A exploração sexual de crianças e adolescentes na Amazônia tem sido favorecida por diversos aspectos:
1. Pelas relações de desigualdade de poder local, onde fazendeiros, comerciantes, políticos e outras autoridades locais mantêm um sistema de clientelismo que gera uma dependência direta entre este grupo e a população pobre e, ao mesmo tempo, a sensação de um poder ilimitado a ser gozado por este grupo em relação a tudo que a população pobre tem: seu trabalho, seu voto e sua sexualidade.
2. Pela organização do mercado local. As atividades econômicas na região apresentam poucas oportunidades para a população local, com exceção do mercado de sexo que está presente, vinculado a todas as atividades econômicas (construção, transporte, mineração etc.) e que se organiza fora da lei (oficialmente proibido como mercado), dando margem a todos os tipos de exploração sem a devida proteção e intervenção do Estado. Este mercado tem valorizado a “juventude” e encontrado formas de aliciar e estimular a entrada de adolescentes e crianças.
3. A impunidade de exploradores sexuais (o que tem a ver com o poder que gozam dentro da sociedade) estimula a atuação de exploradores e aumentam a vulnerabilidade e impotência dos explorados.
4. As campanhas e intervenções que confundem exploração sexual de crianças e adolescentes com pedofilia têm livrado o abuso e a exploração sexual vinculados ao exercício abusivo de poder para discutir distúrbios sexuais de alguns abusadores.
A prostituição forçada de mulheres (forçando a sua entrada involuntária ou impedindo sua saída da atividade) na Amazônia também é favorecida pela organização do mercado de sexo através de aviamento. Em outras palavras, essa escravidão é favorecida pela dívida e pelo isolamento dos lugares de trabalho, vinculados a garimpos, pelas novas construções, fazendas etc. As dimensões amazônicas e a ausência de controle do Estado, em muitos lugares e atividades econômicas, favorecem os empresários do mercado de sexo para explorar prostitutas e prostitutos.
IHU On-Line – Quais são as rotas internacionais do tráfico de mulheres?
Marcel Hazeu – Através de pesquisas que foram realizados pela rede Txai e pela ONG Só Direitos (pestraf Amazônia; tráfico de mulheres do Brasil e da República Dominicana para o Suriname; Mulheres em Movimento), e outras fontes, identificamos algumas rotas que, pela dinâmica do mercado internacional, podem já ter se reconfigurado, mas provavelmente ainda tem algum significado. A reconfiguração significa que o formato de migração e de relações análogas à escravidão podem ter diminuído de significância, uma vez que as comunidades brasileiras naqueles lugares se estabeleceram e se fortaleceram. Portanto, as rotas são Amazônia-Suriname; Amazônia-Espanha; Amazônia-Portugal; Amazônia-Guiana Francesa; Amazônia-Venezuela/Caribe. Além dessas, existem as rotas internas para lugares de novos investimentos em função das hidrelétricas em construção, por exemplo.
IHU On-Line – Você elaborou um estudo sobre o Tráfico de Mulheres do Brasil e da República Dominicana para o Suriname. O que evidenciou com essa pesquisa?
Marcel Hazeu – Este estudo foi o resultado de um trabalho em equipe e com participação de várias organizações, coordenado por mim e por Lucia Isabel Silva.
Muitas das mulheres traficadas que contatamos passaram por uma primeira experiência de tráfico quando foram “empregadas” como trabalhadoras domésticas infanto-juvenis.
Quase todas tiveram filhos na adolescência sem poder contar com apoio dos pais das crianças, e buscavam oportunidade de sustentar e estruturar a sua vida com filhos, o que parecia quase impossível no Pará (pela pouca escolaridade e falta de mercado de trabalho). Essa situação as vulnerabilizou para aceitarem convites que respondiam aos seus anseios.
Nenhuma das mulheres entrevistadas conseguiu mudar de vida em Belém e alcançar a sonhada independência e estruturação. Mesmo depois de vários anos, vivenciando inicialmente a realidade de escravidão, depois a vivência do garimpo, um “amigamento” ou prostituição mais independente, não alcançaram perspectivas concretas de mudança.
Esta mudança parecia somente possível através de um relacionamento com um homem (brasileiro, surinamês ou outro estrangeiro) que oferecesse melhores condições de vida. Este movimento para independência através de migração se tornou, para elas, uma dependência inicialmente de traficantes de pessoas e, posteriormente, de homens parceiros.
A prostituição no Suriname se organiza através de várias lógicas: clubes fechados, onde trabalham principalmente brasileiras e dominicanas; em discotecas e festas onde atuam brasileiras e surinamesas, que se misturam com os frequentadores; casas de massagem com presença dominante de surinamesas; via jornais e nos clubes no garimpo. O tráfico se organizava principalmente vinculado à prostituição nos clubes.
IHU On-Line – Qual é o significado da mulher na sociedade amazônica?
Marcel Hazeu – É uma pergunta à qual sinto dificuldade de responder. Não existe “a mulher” e sim mulheres amazônicas, desde guerreiras até escravizadas. Conta-se com um dos mais altos percentuais de mulheres-chefes de família, forte presença de mulheres líderes de lutas sociais; há muitas mulheres que encaram sozinhas a migração. Muitas têm identidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, pescadoras, rurais e urbanas; o significado é sempre múltiplo.
Elas significam a mãe terra, quando pensamos na sua relação com a natureza abundante e seu vínculo com a vida e reprodução; elas significam a identidade amazônica desde a sua origem lendária até sua luta pela permanência e vivência com qualidade na região; elas significam o futuro da Amazônia, porque não abandonam seus filhos e procuram preservar as condições para seu futuro.
IHU On-Line – Como a população se comporta em relação à exploração de mulheres na região?
Marcel Hazeu – Como há uma confusão de compreensão sobre o mercado de sexo, tráfico de pessoas e exploração sexual, a população em geral não reprime a busca de oportunidades de mulheres através do mercado de sexo. Há um pacto silencioso de reprovação moral e aceitação prática ao mesmo tempo. As pessoas se pronunciam somente em casos concretos de denúncias de escravidão e assassinato vinculados ao mercado de sexo. Também se mobilizam para o enfrentamento à exploração sexual de crianças e adolescentes.
IHU On-Line – Como avalia a atuação dos órgãos de direitos humanos no país em relação ao turismo sexual?
Marcel Hazeu – Entendo o turismo sexual como atividade criminosa vinculada à exploração sexual de crianças e adolescentes. Turistas que vêm em busca de sexo com brasileiras e brasileiros adultos, que são profissionais de sexo, não são exploradores. Aqueles que vêm em busca de sexo com adultos, que não são profissionais de sexo, e que as abordam e procuram para explorar a situação de vulnerabilidade e pobreza para satisfazer seus desejos sexuais se movimentam num espaço crítico para uma intervenção.
A atuação dos órgãos de direitos humanos tem levado a uma intervenção generalizada contra qualquer forma de relações sexuais entre turistas e brasileiros, inclusive aquelas que envolvem profissionais de sexo. Assim dificulta o exercício da prostituição “legítima”.
As campanhas contra exploração sexual de crianças e adolescentes vinculadas à atividade turística têm gerado um efeito bastante positivo, envolvendo o setor hoteleiro e de diversão. Falta, entretanto, um trabalho de esclarecimento e de prevenção com homens e mulheres que sonham com as oportunidades através de uma relação com um turista e que sofrem, muitas vezes, com as falsas perspectivas apresentadas por estes.
Fonte: www.ihu.unisinos.br
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