quarta-feira, 20 de julho de 2011

Mulheres de coragem - Mara Lucia -

Nesta seção encontrará história de vida de mulheres que dão exemplo de coragem e ousadia, mulheres que inspiram mudanças. A primeira que trazemos  aqui é Mara Lucia.
  
Por: Joelma do Couto no blog Inventar a vida

Morou na rua, criou os filhos e adotou outros tantos. Enfrentou o descaso do poder público, o preconceito e o racismo de uma sociedade hipócrita e injusta. Tinha tudo para se sentir perdedora, para negar a VIDA, para se desiludir. Por alguma razão que eu desconheço, Mara Lucia afirma a VIDA, enfrenta um sistema excludente incluindo corpo e espírito na pauta de todo o dia, segue em frente, luta com ternura sem se deixar enganar. Nos ensina todo dia que temos muito a aprender


Laíssa voluntária da ONG UTPMP fazendo casas de emergência enquanto sofre ação de despejo de sua própria casa.

Laíssa Sobral Martins matricula-se no curso de gestão ambiental de uma universidade privada. Mais tarde voltaremos ao tema.
Esta história poderia começar de muitas maneiras, mas resolvi começar pela mãe, afinal, a mãe é o principio, é onde todos começam.
A mãe de nossa personagem, Laíssa, chama-se Mara Lúcia Sobral Santos. Baiana, vive desde muito pequena em São Paulo. Mara Lúcia, aos nove anos, perdeu a mãe. Se com a mãe a vida já não era fácil, sem ela, o que dizer. Mara Lúcia e suas três irmãs foram parar em um abrigo para menores. De lá, ela fugiu, negou-se a aceitar os maus tratos. Foi para as ruas e, lá, aprendeu com a vida a se virar. As ruas do centro da cidade foram sua escola, sua vida, seu diploma e seu carrasco. Mas Mara Lúcia preferia assim, era um preço alto pela liberdade, porém, era a liberdade.

Nas idas e vindas da vida, Mara Lúcia conheceu homens e mulheres, teve amantes, amados e odiados. Teve dois filhos, Laíssa e Everton. Com duas crianças nos braços, teve que deixar as ruas, precisava um porto seguro. Voltou às raízes, foi para a região do Grajaú, mais exatamente para a Vila Rubi, onde cresceu. Ocupou um barraco, sem telhado, cobriu com uma lona. Lá nasceu a bela Rafaela.
Para criar os filhos, trabalhou como doméstica, vendeu balas nos pontos de ônibus, fez de tudo um pouco.
A pequena Laíssa aos poucos viu seu pequeno barraco se encher de caras novas, a mãe, coração mole, foi abrindo a casa para outras crianças e adolescentes vítimas de violência e de abandono. Vieram os gêmeos, um morreu. A Joana com seus dois filhos. Enfim,nove irmãos adotivos, todos dentro de um barraco de quatro cômodos em cima de um córrego.Mas felizes e protegidos.
Aqui a história da Laíssa começa a mudar.  Um dia, sua mãe fica sabendo que no bairro da Granja Julieta, zona sul de São Paulo havia sido criada uma cooperativa de catadores, era a gestão de Marta Suplicy.
Mara Lúcia então começa a trabalhar na cooperativa, juntamente com sua filha adotiva, Joana. Laíssa e o irmão, Everton, ficam em casa com os irmãos menores. Não sobra muito tempo para os estudos. Também não há uma preocupação, digamos que os estudos não são prioridade. Na favela, lugar por muitos chamados de senzala moderna, poucas pessoas sonham em ir para a universidade. Em meio a enchentes, incêndios, ratos, tráfico de drogas, violência policial, pagar o aluguel, comer, garantir creches para os filhos etc., etc…. Universidade é o de menos, se completar o ensino fundamental já “tá no lucro”. Para Everton, irmão de Laíssa, “A Universidade é algo muito distante de nós, muito longe de mim”.
Da cooperativa de reciclagem, sua mãe tira tudo que precisam pra a sobrevivência, bolsas, móveis, brinquedos, o salário que no fim do mês alimentará a todos. A vida não é fácil, mas, para Mara Lúcia é mais difícil. Trabalhar numa cooperativa de catadores não é trabalho fácil. Na cidade de São Paulo, não existe uma política pública que incentive e apoie a catação. Existe um decreto do prefeito Gilberto Kassab, que não é devidamente aplicado.
Para uma mulher com 12 filhos, sem marido, o que sobra da sociedade é ouro. Laíssa sente no dia a dia a dor da mãe que se esforça para mantê-los longe das drogas, da prostituição. Mara Lúcia luta, luta para conseguir dar a seus filhos o lar que não teve. Laíssa comenta, “Lembro bem de uma aula de história em que meu professor contava a história da feijoada: a princípio era alimento dos negros escravos, feito com os restos que o senhor da casa-grande não comia. Depois, os brancos ricos descobriram o valor da feijoada e se apossaram dela. Hoje vejo mesmo acontecer com o lixo que nossas famílias coleta e vendem para a reciclagem a mais de 60  anos. Os ricos descobriram o valor da reciclagem e querem mais uma vez nos passar a perna”.
Como já disse, nada na vida de Mara Lúcia e seus filhos é fácil. Numa noite, meados de dezembro, mais precisamente dia 9 dezembro de 2008, alguém passa pela Avenida Alceu Mainardi de Araújo e atira fogo na cooperativa. Rapidamente o fogo que em contato com muito papelão, se espalha e destrói os sonhos, sonhados ou não de cerca de 80 trabalhadores que daquele espaço retiravam seu sustento.
Neste momento a vida de Laíssa se transforma totalmente. Sua mãe por não concordar com as atitudes que considera desumanas, por parte da presidente da cooperativa, Marcia Abadia, está trabalhando em outra cooperativa, mas ao ser chamada pelos antigos colegas de trabalho para somar na luta pela reabertura da cooperativa, joga tudo pelos ares, e vai, insanamente, lutar contra a Prefeitura da cidade de São Paulo e todos aqueles que não querem a cooperativa no local por questões imobiliárias ou por questões econômicas. O mercado da reciclagem é um mercado bilionário.
Durante o ano de 2009, Laíssa viu faltar sabonete, tomou banho gelado no rigoroso inverno, faltou leite para os pequenos, faltou animo para estudar. Laíssa que estava no terceiro ano do ensino médio, repetiu. No entanto, naquela altura do campeonato, o que significava perder o ano para quem não tinha o que colocar na mesa?
Mara Lúcia enfrentou a revolta dos filhos que não entediam porque ela deixou um emprego certo para lutar por uma causa que nem era sua, era do pessoal da Granja. Na comunidade Mara e seus filhos eram motivo de chacota, até mesmo na escola, os chamados Lixeiros, eram humilhados.
Sem apoio das outras cooperativas que morriam de medo da Prefeitura, Mara Lúcia encontrou apoio no Movimento Nacional do Povo da Rua. Lá a vida de Laíssa começou a mudar. O movimento do povo da rua é organizado. Por ironia, foi com o povo da rua que Laíssa começou a entender que tinha que voltar a estudar. Aprendeu o valor da Educação. Uma vez por mês o povo da rua se reúne para, no “Fala Rua”, discutir, debater, criar politicas púbicas capazes de diminuir a exclusão social. Com o povo da rua, Laíssa conheceu a Rede Rua de Comunicação, a Revista OCAS, e muitas, muitas pessoas sérias comprometidas com a construção de um país mais justo para todos. A família de Mara Lúcia, liderada por Laíssa, cria uma banda, a banda da cooperativa Granja Julieta. A banda toca em dezembro de 2009 (um ano após o incêndio) para o Presidente Lula. No Natal Solidário toca para pessoas em situação de Rua na Praça da Sé, centro de São Paulo. Laíssa começa a viajar, participar de seminários de formação, de palestras, sua mente se abre para um mundo que até então ela não conhecia.
Comovido com a luta de Mara Lúcia e seus companheiros catadores, o Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, telefona para o então Prefeito da Cidade de São Paulo Gilberto Kassab e pede que este reabra a cooperativa. No dia 27 de dezembro de 2009, um domingo, a pedido o Presidente da República o Prefeito visita o espaço onde funcionará a cooperativa de catadores da Granja Julieta.
Algo que parecia impossível aconteceu, a cooperativa da Granja Julieta reabriu. Devido a muitas brigas, empurra-empurra, a cooperativa passa a funcionar na Rua Carmo do Rio Verde próxima ao antigo espaço à Avenida Alceu Maynard de Araújo. Sem estrutura, o trabalho na cooperativa não é fácil, porém necessário. Laíssa começa a trabalhar com sua mãe. O Trabalho duro e braçal. Eles não têm empilhadeiras, esteiras, caminhões, a estrutura básica para um trabalho digno. Apesar de o governo federal ter disponibilizado seis milhões de reais há três anos, para a Prefeitura investir em suas centrais de triagem, o dinheiro continua na Caixa Econômica, sem uso.
Na casa de Laíssa uma mudança: Joana passa a ficar em casa para cuidar das crianças e, Laíssa e Everton, já maiores de idade, vão trabalhar com a mãe. Laíssa dorme na cooperativa. Transferiu-se para uma classe de EJA (Educação de Jovens e Adultos), na Escola Estadual Plínio Negrão, próxima a cooperativa. Para Laíssa a mudança não foi tão simples como se parece, sua mãe não queria permitir que ela dormisse na cooperativa; “Se ela ficar aqui dentro, comer, trabalhar, dormir, fizer da cooperativa seu lar, estará imersa no lixo e isso não é bom”, afirmava Mara Lúcia. Mas, Laíssa insistiu, trabalhar o dia todo, estudar a noite e voltar para casa seria muito cansativo, “se eu dormir aqui, (na cooperativa) ganharei umas horas a mais de sono e de estudo”.
Durante o ano de 2010, Laíssa fez cursos de formação ministrados por ONGs, pelos movimentos sociais e conheceu o Teto. A ONG “Um Teto para meu país”, criada, no Chile, em 1997, pelo Padre Felipe Berríos. O Teto como é chamada carinhosamente pelos universitários busca construir casas de madeira pré-fabricadas, para famílias em situação de risco. Num primeiro momento integrante da ONG procuram o poder público local e a comunidade para negociar e expor suas propostas. Em um segundo estágio constroem as casas. A construção é feita por universitários em férias. A ONG que chegou ao Brasil em 2002,construindo 20 casas no estado de Pernambuco. Laíssa e seu irmão Everton, em julho de 2010, ajudaram a construir cerca de 50 casas na Favela da Padroeira, em Osasco. Desta parceria, brotou em Laíssa e Everton o desejo maior de serem universitários. Da experiência nasceram belas amizades entre estudantes de classe média alta e adolescente favelados, que nunca haviam pensado na possibilidade de frequentar uma universidade ou fazer um intercambio. Mas Laíssa não se sentia verdadeiramente do Teto, não é universitária. A experiência foi frutífera, porem dolorida. Laíssa se lembrou dos tempos em que sua mãe mal tinha o que colocar na mesa para eles comerem e ainda tinha que se concentrar e continuar lutando, pois a cooperativa estava reaberta, o trabalho garantido, apesar da falta de estrutura. Só que a Prefeitura está realizando uma obra de canalização de córrego bem no córrego da Vila Rubi, Laíssa, sua mãe e seus irmãos deverão deixar o lar que conhecem para um local sabe se lá onde. A preocupação é imensa, mal acabaram de sair de uma luta e já estão em outra. Para Mara Lúcia, “nós pobres somos como ping-pong nas mãos dos ricos: se estamos aqui nos jogam lá, se estamos lá nos jogam acolá”. Depois de muita negociação e do apoio do Senador Eduardo Suplicy a Secretaria de Habitação da Prefeitura de São Paulo resolveu pagar 3 aluguéis para Mara Lúcia, afinal naquele lar em cima do córrego moram 12 pessoas mais aí começa outro problema, agora eles tem o dinheiro para alugar uma casa descente para todos até que saia o apartamento prometido pela Prefeitura, mas quem será  o fiador? Uma solução seria pagar o seguro fiança, 2500,00 reais por ano. A família não tem dinheiro para mais este gasto.  Mais uma vez Laíssa volta no tempo e fala da Lei de terras de 1850. “A lei de terras de 1850 deixou os negros de fora, transformou a terra em algo lucrativo, era um bem que só quem tinha dinheiro podia comprar. Para negros foros era apenas uma ilusão”. Mara Lúcia complementa a fala: “Era melhor quando éramos escravos, nessa época sabíamos que nosso lugar era a senzala, e agora qual é o nosso lugar? Me diga um lugar nesta cidade onde os pobres não estejam sendo expulsos”.
O medo é constante, a incerteza uma companheira de horas eternas. Só que neste momento o coração de Laíssa tem mais um motivo para sangrar. Ela quer estudar. Quer sair da favela, quer uma segurança, segurança esta que ela tem certeza só encontrará estudando muito.
Concentrar-se numa escola depois de um dia de trabalho na reciclagem não é fácil. Na cooperativa da Granja Julieta o trabalho é duro, eles precisam conviver com pessoas com sérios problemas mentais, dependentes químicos, deficientes físicos, trabalhar no sol e na chuva, no fim do dia o corpo e a mente estão “acabados”. Para piorar, Laíssa estuda em uma sala com mais de 60 alunos. A sala é pequena para tanta gente, quem chega atrasado tem que ir buscar carteiras em outras salas, atrapalhando assim a aula já em andamento. O calor é intenso mesmo no inverno. Laíssa, que tem bronquite, sofre com crises de falta de ar. “Noutro dia – conta Laíssa – uma colega de sala teve um ataque de nervos. Depois que a acalmamos ficamos sabendo o motivo: ela é deficiente auditiva e não conseguia entender o que a professora explicava”.
Houve um movimento na escola para dividir a sala, mas disseram que não havia motivo para tanto, que em pouco tempo muitos alunos deixariam de frequentar o curso e a sala ficaria mais“vazia”.
Às vezes Laíssa chora, sente além das dificuldades o preconceito, daqueles que a veem como lixeira e não como agente ambiental. Noutro dia no banheiro do colégio ouviu algumas colegas “tirarem um sarro” de sua profissão, falavam com desprezo e descaso. Também diziam que era mentira que ela fazia parte dos movimentos todos que ela contava na sala de aula. A forma pejorativa a que se referiam a ela e seus colegas de trabalho doeram fundo, a fez inclusive pensar em deixar a escola. Na cooperativa a história acabou virando piada, pois catadores de origem mais humilde queriam ir até a escola tirar satisfação com as meninas que tinham magoado a Lalá. Um deles queria ir até a polícia, pois “brulim” é crime. Como na cooperativa da Granja tudo é motivo para festa, o “brulim” da Lalá virou mais um motivo para o riso.
Apesar das dificuldades Laíssa não se queixa dos professores, tem carinho e respeito por todos. Aprendeu desde cedo que a vida não é fácil, mas que não existe outra forma de enfrentá-la que não seja de frente.
Lembram-se da frase inicial “Sexta-feira, 12 de novembro de 2010. Laíssa Sobral Martins matricula-se no curso de gestão ambiental de uma universidade privada”, a guerreira Laíssa, está na universidade. Mais uma menina negra, favelada, sofrida, adentra pelos portões das universidades brasileiras. Dentre em pouco ela deixará ser uma catadora e será uma gestora ambiental.
Laíssa entra para as estatísticas que mostram que em sete anos mais jovens negros e pardos entraram para a universidade do que nos últimos 500 anos. Em 2004 quando o governo Lula implantou o sistema de cotas na Universidade de Brasília (UnB) apenas 2% dos estudantes universitários brasileiros eram negros, apesar de a população negra representar mais de 46% da população brasileira. Atualmente quase um milhão de estudantes negros estão em cursos superiores.
Mas, como a vida não é fácil, ela tem medo muito medo do preconceito que encontrará na universidade, pois diferentemente dos outros alunos o pagamento de sua mensalidade sairá de seu trabalho na cooperativa. Trabalho este que, muitos brasileiros ainda não conhecem e não entendem o valor.
Na sexta-feira, 12 de novembro de 2010, lembrei-me de um encontro do Presidente Lula com os catadores, no qual ele disse que sonhava em ver não só os filhos dos catadores na universidade, como também os catadores.
Laíssa é o primeiro diploma da família. Mara e suas irmãs não completaram nem o fundamental. Agora, Laíssa, catadora e filha de catadora é universitária.
Que venham muitas Laíssas.

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